Texto: Eugênio Martins Jr
Foto: Divulgação
Ele nasceu da fusão do grito de dor, dos sussurros de amor e das canções de trabalho dos negros lá nos confins do estado do Mississipi, nos Estados Unidos. No começo, essencialmente rural, ganhou os estados do sul até expandir-se em todo o país e sempre quando é dado como morto ressurge ainda com mais força. Foi assim em Chicago, com Willie Dixon, Muddy Waters e Howlin’ Wolf, na década de 1940; Buddy Guy, Otis Rush e Magic Sam, nos anos cinquenta; na Inglaterra, com Eric Clapton, John Mayall e Rolling Stones, nos anos sessenta; e no Brasil com André Christovam, Blues Etílicos (foto) e Nuno Mindelis, na década de 1980.
Isso mesmo, no Brasil, o bom e velho blues está completando duas décadas e, ano após ano, ótimos músicos vêm se dedicando ao gênero, pequenos selos estão aparecendo e festivais acontecendo país afora. No entanto, a cena ainda não está forte, os principais fatores são a falta de casas noturnas, o pouco espaço nos principais meios de comunicação e própria força da música brasileira. Como pouca gente toca no assunto, o Mannish Blog vai fazer um balanço dessa história. Do ponto de vista dos protagonistas.
Na lembrança do guitarrista André Christovam, o show de B. B. King, em 1979, no Festival de Montreux, em São Paulo, foi o marco zero. Há quem diga que as sucessivas apresentações de Buddy Guy e Junior Wells, no 150 Night Club, bar do hotel Maksoud Plaza, em 1985, foi o evento que abriu os olhos dos brasileiros para o blues. Há ainda o advento do Festival Internacional de Blues de Ribeirão Preto, realizado em 1989, no Parque Cava do Bosque. O evento contou com as participações de Buddy Guy, Junior Wells, Albert Collins, Etta James, Magic Slim, André Christovam e Blues Etílicos.
Porém, foram os lançamentos de Água Mineral - o segundo do Blues Etílicos -, e Mandinga, disco de estreia de André Christovam, ambos em 1989, pela gravadora Eldorado, que começaram a mudar o curso da história.
Até então os registros fonográficos não eram nada animadores. A discografia internacional sempre foi pífia, quando não, calcada em coletâneas. A nacional dava pena. O disco mais conhecido é o Som na Guitarra, lançado em 1984, pelo guitarrista e cantor carioca Celso Blues Boy. Vinha com os sucessos Aumenta que isso aí é rock and roll e Blues motel. Ele foi o primeiro artista brasileiro a adotar a palavra blues no nome. O apelido foi dado por Luiz Carlos Pereira de Sá, da dupla Sá e Guarabira. A alcunha “Blues Boy” é uma homenagem a Blues Boy King, ou B.B. King. Outro disco conhecido é de uma banda paulistana chamada Ave de Veludo, também de 1984. Mas esse nem vale a pena comentar.
Segundo Christovam, Mandinga, Água Mineral, além do seu A Touch of Glass (1990), e San-Ho-Zay (1990), do Blues Etílicos, venderam mais de 40 mil cópias. “Juntos, os quatro venderam mais do que todos os discos de blues nacionais e internacionais lançados no Brasil até então”, revela.
O atual diretor artístico e produtor do Bourbon Street Music Club, em São Paulo, Herbert Lucas, que na época foi o produtor de Mandinga, conta que o disco foi o primeiro a ser lançado oficialmente por uma gravadora como disco de blues brasileiro. “Na verdade, nós estávamos no lugar certo na hora certa. Logo depois dos lançamentos desses dois discos aconteceu o Festival de Blues de Ribeirão Preto, organizado pelo produtor César Castanho e bancado pelo Governo do Estado. Quer dizer, aí o blues entrou na pauta”, lembra Lucas, um dos responsáveis por colocar o Brasil na rota.
Pelas suas contas, desde que começou como o diretor artístico do Bourbon Street, ele foi o responsável por cerca de 400 shows internacionais. Desses, 120 foram de blues. Os principais nomes do gênero dos últimos anos vieram ao Brasil pelas suas mãos: B.B. King, Buddy Guy, Ray Charles, Robert Cray, John Mayall, Etta James, Koko Taylor, Charlie Musselwhite e muitas outras atrações de Chicago e New Orleans. Entre os jazzistas, Nina Simone, Herbie Hancock, Diana Krall, Diane Schuur, Betty Carter, Jean Luc Ponty, David Samborn, Yellow Jackets, Stanley Clark, Maceo Parker; além dos grandes nomes da guitarra como Steve Vai, Mike Stern, Robben Ford e Steve Morse.
Dilema - Se nos anos 1980 a cena era forte, nos noventa não dá pra dizer o mesmo. André Christovam, autor de Confortável, que nada mais é do que uma versão de Built for Confort, de Howlin Wolf, afirma que os blueseiros brasileiros perderam a oportunidade de popularizar o gênero quando decidiram optar por cantar as letras em inglês. “Na época não tivemos alguém para direcionar isso. Num dia ruim o pessoal do blues tocava muito melhor do que qualquer um do rock em dia bom. Se tivéssemos tido essa visão, teríamos deixado todo mundo no chinelo. Eu mesmo não tive essa competência”, analisa.
Cantar em inglês ou português sempre foi o grande dilema dos blueseiros brasileiros. O guitarrista e produtor Big Joe Manfra fica no meio do caminho. “Cantar em português seria legal para fazer divulgação, mas onde, se não temos rádios que tocam blues. Alguém discute se o Sepultura deveria cantar em português? Seria legal se fosse a nossa realidade, mas em CD de blues não existe música de trabalho”, pontua.
Segundo Manfra, um lançamento chega ao mercado com duas ou três mil cópias e conforme vai acabando o artista reedita na base de mil cópias. O custo de produção varia entre 10 e 15 mil reais. “Antigamente lançávamos mil cópias de saída, mas hoje, com as vendas em loja e em shows, o número de CDs vendidos chega a cinco mil em dois anos”, revela. Nos shows, como a venda é direta, um CD custa quinze reais, no máximo vinte. Nas lojas, só o Divino sabe.
A Blues Time Records foi fundada em 2000, pouco depois de Manfra lançar seu primeiro CD, de maneira independente. O fato coincidiu com uma viagem do gaitista Jefferson Gonçalves aos Estados Unidos. “Ele chegou dizendo que lá fora todo mundo estava produzindo CDs de blues independentes”, conta Manfra. A sociedade deu certo e, desde então, o Blues Time se tornou o principal selo nacional do gênero, e vem arregimentando blueseiros brasileiros e estrangeiros. São mais de trinta títulos de conjuntos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná.
Hit the road - Blueseiro brasileiro é como o Ronaldo Fenômeno, não desiste nunca. A teimosia de André Christovam o levou ao número 2120 da Michigan Ave, em Chicago, nada mais, nada menos, nos estúdios da Chess Records, a lendária gravadora de blues. “Fiz uma jam de 40 minutos no Buddy Guy Legends e o empresário do Buddy me disse que o entrosamento com os músicos estava tão bom que ele pagava pra gente entrar em um estúdio e gravar um disco, mas como eu já tinha grana para gravar um outro álbum foi mais fácil. Gravamos em duas semanas ao vivo no estúdio”, lembra.
Mais uma vez André foi o pioneiro, desta vez por ser o primeiro músico brasileiro a gravar um disco de blues fora do país. O intercâmbio continuou com a vinda dos músicos de Chicago ao Brasil para a turnê de lançamento de 2120 Sessions (1991). O time era Andrew Odon (vocal), Jerry Porter (bateria) e J.W. Willians (baixo). O vocalista Andrew Odon morreu um mês após o fim dessa turnê.
Outros dois discos que passaram para a história do blues nacional são Texas Bound (1996) e Blues on the Outside (2000), do angolano radicado no Brasil, Nuno Mindelis. Ambos têm a participação de Chris Layton (bateria) e Tommy Shannon (baixo), o “Double Trouble”, duo que acompanhava o guitarrista texano Stevie Ray Vaughan. Com eles, Nuno não só ganhou reconhecimento das platéias internacionais, mas também um apelido “The Beast”.
Fugindo da guerra civil em seu país, Mindelis veio parar no Brasil em 1976, aos 17 anos. Na bagagem, sua única arma era uma guitarra Gibson Les Paul que deixou os cariocas babando. “Comprei aquela Gibson com o dinheiro que juntei varrendo o chão de uma fábrica no Canadá. Quando cheguei ao Rio, a notícia se espalhou e uma vez veio um cara querendo me conhecer, disse que era de um grupo chamado Vímana. Até hoje eu não sei quem foi. Se foi o Lulu (Santos), o Lobão, ou o Ritchie”, lembra.
Duro e desterrado, Nuno foi obrigado a exercer outros ofícios até a música exigir toda a sua dedicação. Mas nem tudo foi espinho no caminho do blueseiro africano que adotou o Brasil como país. No tempo em que morou no Canadá, assistiu a lenda do blues Willie Dixon acompanhado por Roy Buchanan e a banda oficial de Muddy Waters. Além desse show, no Café Campus, em Montreal, ele conta que as apresentações de Richie Blackmore (Deep Purple), Frank Zappa e Weather Report ajudaram a formar a sua identidade musical.
Os dois desbravadores abriram o caminho para uma legião de músicos reivindicarem sua cota lá fora. Alguns, como o gaitista Robson Fernandes, dizem que tocar no estrangeiro nada mais é do que uma estratégia para aumentar o mercado para sua música. “Quero tocar lá fora para aumentar o meu número de shows e ganhar mais dinheiro. É claro que eu vou querer detonar, fazer um bom show, mas a idéia central é distribuir a música no mundo inteiro, como B.B. King fala no livro dele. É claro, o show tem de ser bom pra vender CD e voltar aos lugares”, afirma.
Além do lado financeiro, é natural que outros músicos busquem mesmo o gostinho de ser reconhecido na terra de Robert Johnson. O gaitista Big Chico, por exemplo, lançou o ótimo Blues Dream (2006), gravado na Califórnia, com a participação de Johnny Dyer e mais uma banda só com gringos.
O álbum foi editado pelo selo Chico Blues, do blueseiro que antes de chegar a São Paulo, nos anos 1970, era catador de algodão no sertão da Paraíba, e que nada tem a ver com o Big Chico, além da amizade. Chico Blues fundou um selo cujos sete títulos são distribuídos em convênio com o californiano Pacific Blues, do produtor Jerry Hall, e que possibilita maior visibilidade para os CDs da Prado Blues Band, Robson Fernandes e Big Chico de costa a costa, nos Estados Unidos.
Além desses, Igor Prado, autor do elogiado Upside Down (2007), está prestes a lançar um CD com a participação do cantor Lynwood Slim. Ivan Márcio, gaitista da Prado Blues Band, também está com um CD no forno gravado em Chicago. Big Gilson gravou Chrysalis (2007), com a participação do cantor The Wolf, na Inglaterra. Big Joe Manfra gravou um CD com Peter Madcat Ruth, Live in Rio (2005) e ainda editou Live at the Ark (2000), de Madcat e Flyin’ High (2001), de Jamie Wood e Johnny Rover. Ou seja, as coisas estão fluindo.
Além de músico e editor, Manfra também é um dos diretores de um dos maiores festivais de blues e jazz do país, o Rio das Ostras Jazz e Blues. O evento é realizado todos os anos no balneário carioca. No campo do blues, o festival já trouxe ao Brasil James Blood Ulmer, John Mayall, Michael Hill, Roy Rogers, Eddie C. Campbell, Big Time Sarah, Magic Slim e a maioria dos artistas nacionais. Além de Rio das Ostras, Búzios, Paraty, Guarujá, Guaramiranga, Garanhuns, São Paulo (Bourbon Fest) e muitas outras cidades do Brasil possuem seus festivais durante todo o ano.