segunda-feira, 27 de julho de 2020

Eric Assmar e o legado do blues da Bahia

Eric Assmar (Sesc Santos - 19/01/13)

Texto e fotos: Eugênio Martins Júnior

Em uma das vezes que estive com o blueseiro baiano Álvaro Assmar ele me perguntou: 
- “Você já ouviu meu filho tocar?. Rapaz, o garoto está num nível muito alto. Não é por que é o meu filho não, tá?”. 
-Sei, “respondi”.
Dois anos depois tive a oportunidade de ouvir e ver Eric Assmar tocando de verdade, em uma gig com o próprio Álvaro, aqui no Sesc Santos. 
Logo depois conheci seu primeiro álbum, o Eric Assmar Trio com temas cantados em inglês e português com a guitarra como protagonista, num conjunto em formato de power trio.
Gravado em 2011, em Salvador, no estúdio Em Transe, o CD conta com 11 temas compostos pelo prórpio Eric e apresentados por Rafael Zamaeta (baixo) e Thiago Gomes (bateria). Álvaro Assmar aparece na produção e no violão em Hanna.
Mesmo tocando blues, os ares musicais da “Roma Negra” fazem bem a qualquer artista. A matriz musical é a mesma, a África. Gosto de citar isso em várias entrevistas que faço com os gringos, orgulhoso das dezenas de ritmos espalhadas pelo continente Brasil.
Orgulhoso também em saber que meus dois livros Blues – The Backseat Music serviram como material de pesquisa  para uma tese de doutorado sobre música construída por Eric Assmar. 
Eis aqui mais uma entrevista. Com um dos talentos que já está na cena há um tempo, mas só agora começa a colher os frutos do trabalho, toda uma geração de blueseiros nativos que inclui, Tiago Guy, Fillipe Dias, Pedro Bara, Leo Duarte, Simi Brothers, Bia Marquese, Bidu Sous e tantos outros.


Eugênio Martins Júnior - Como foi a tua infância musical na Bahia? Com o axé e os batuques de Salvador da porta pra fora e o blues da porta da rua pra dentro.
Eric Assmar – Sendo filho de um músico de blues e um fã de rock clássico, absorvi muito dessa influência ainda na infância. Meus pais se separaram quando eu ainda era muito guri, não vivi na mesma casa que o meu pai durante a infância, mas sempre estivemos juntos e tomei muito gosto pelo rock and roll, começando por Beatles, Black Sabbath, Deep Purple, Zeppelin, Hendrix, esses clássicos. A guitarra me fascinava. Via na figura do guitarrista algo como um super-herói, alguém com superpoderes. Gostava muito de músicas que traziam a guitarra como instrumento de destaque. Curtir esse tipo de rock antigo era algo um pouco "fora da curva" pra um guri soteropolitano nascido em 1988, mas acredito que o ambiente com o qual você convive regularmente tende a influenciar bastante essa coisa do gosto musical na infância (no meu caso, a família). A cultura baiana, de um modo geral, é riquíssima, com tradições ligadas a religiões de matriz africana que também são oriundas da diáspora negra africana, tal como aconteceu com o blues nos Estados Unidos. Tenho orgulho de ter nascido e crescido em Salvador, sou um apaixonado por essa cidade, que percebo como um lugar de muita diversidade. Existem "tribos" musicais muito variadas, inclusive uma história de muitos artistas de rock incríveis, que vieram de Salvador e se tornaram referências em âmbito nacional.

EM – A gente percebe que o teu pai era um blueseiro clássico e você já vai um passo além. Mais puxado pro blues rock. Gostaria que falasse sobre isso. 
EA - Acho que vem por conta de um caminho que talvez seja comum a muitos músicos de blues brasileiros: tive o primeiro contato com o blues diluído em canções de rock ou em versões de clássicos blueseiros gravadas por nomes do rock. É um pouco aquela coisa de primeiro descobrir Clapton, Stones e Led Zeppelin, para depois perceber que muitas daquelas canções, na realidade, são de autoria de Robert Johnson, Muddy Waters, Willie Dixon, etc. Me tornei um grande fã do formato power trio. Me fascina a ideia de ouvir uma massa sonora gorda vindo apenas de três caras tocando. Grupos como o Cream, Jimi Hendrix Experience, Band Of Gypsys, Grand Funk Railroad, SRV & Double Trouble são referências que curto bastante e me inspiraram a formar o Eric Assmar Trio, em 2009. O grupo acabou tomando mais esse caráter "bluesrocker" por conta dessas inspirações e acredito que pela minha maneira de compor. Procuro ser o mais espontâneo possível, tocar a música que tá no coração e na mente.

EM – Você gravou dois CDs nesse formato. Gostaria que contasse a história desses álbuns e falasse um pouco sobre o trio 
EA - O trio surgiu quando recebi um convite do amigo João Carlos Guia, produtor de eventos, perguntando se eu toparia montar um trabalho solo para tocar blues com a minha cara, do jeito mais espontâneo pra mim. João já tinha um contato cotidiano comigo em minha atuação como músico em bandas ou sideman, antes disso, e foi um grande incentivador desse projeto solo. Convidei meus amigos Rafael Zumaeta (baixo) e Ricardo Ubdula (bateria), começamos tocando alguns covers de blues/rock e, aos poucos, fui compondo mais e, em 2012, lançamos o "Eric Assmar Trio", já com o amigo Thiago Gomes na bateria. O Ubdula mudou-se para o Canadá nessa época. Circulamos bastante promovendo esse primeiro trabalho, que foi gravado inteiramente ao vivo em estúdio, com produção minha e do meu pai (Álvaro Assmar). Minha ideia era um disco o mais cru possível, que desse ao ouvinte a sensação de estar ouvindo uma apresentação ao vivo, sem muitos overdubs. Em 2016, já com Thiago Brandão na bateria e vocais, lançamos o Morning, que é o segundo trabalho. Nesse disco, já fui mais para a coisa das canções, deixando fluir a inspiração do momento com composições que envolvem mais elementos. Também foi uma produção minha e do meu pai e, desde que foi lançado, circulei bastante com o Trio e sou muito grato por esses dois trabalhos. No momento, sigo produzindo o terceiro.

Eric e Álvaro Assmar (Sesc Santos)

EM – Há nove anos eu perguntei pro teu pai e agora vou perguntar pra você: como vê a cena blueseira nacional aí de cima, da Bahia? O que mudou em todo esses tempo?
EA - Vejo uma cena muito fértil, são muitos artistas fazendo blues em várias partes do país, inclusive aqui na Bahia. Os festivais também são muitos e são oportunidades bem legais de congregar artistas diferentes e, também, vejo neles um ótimo potencial de formar público. O blues não é um gênero tipicamente brasileiro, mas vejo que existe um nicho grande de pessoas que gostam dessa música, e até leigos que se surpreendem positivamente ao ouvir pela primeira vez e se apaixonam. Pessoalmente, gosto da ideia de poder contar a minha história fazendo blues do meu jeito, através das canções autorais e de releituras que façam sentido pra mim em determinado momento, mas acho que a criação e o fazer musical são livres, cada músico deve fazer aquilo que o faz sentir-se bem. Nesse sentido, considero a cena do blues no Brasil bastante diversa, você tem artistas de vertentes blueseiras muito diferentes produzindo novos materiais e alguns mais focados em covers. Imagino que a demanda de mercado, mais ligada ao entretenimento, possa ter alguma influência sobre esse aspecto, mas acho que as coisas podem coexistir, perfeitamente. Acho inclusive saudável que haja essa diversidade de propostas.

EM – Você é um dos poucos músicos que compõe letras em inglês e português. O teu primeiro CD foi dividido, mas no mais recente você preferiu as letras em inglês. 
EA - Isso. Tento deixar a ideia musical o mais livre possível. Quando componho, tem vezes em que as ideias vêm em inglês, enquanto em outras vezes elas vêm em português. Acredito que compor blues em português seja um pouco mais difícil, por conta da própria sonoridade do gênero não ter originalmente sido concebida na língua portuguesa, mas nós temos ótimos exemplos de grandes letras de blues ou de canções bluesy escritas em português, o que pode ser observado, por exemplo, em alguns trabalhos do André Christovam, do próprio Álvaro Assmar, além de grandes poetas do rock brasileiro como Raul Seixas, Renato Russo, Cazuza, etc. Eu gosto de exercitar as duas coisas, mas me agrada a ideia de deixar a criação o mais livre possível. Desde que me sinta representado por aquela canção e seja algo vindo do coração, o fato de ser em português ou inglês acaba sendo uma consequência com a qual não me importo muito.

EM - Você usou um dos meus livros para formular tua tese de música na faculdade. Gostaria que falasse como foi isso.
EA - Isso! Foi, na verdade, a minha tese do Doutorado em Música pela Universidade Federal da Bahia (PPGMUS/UFBA), que concluí em 2019. O trabalho é na área da Educação Musical e trata sobre o ensino da guitarra blues no Brasil, identificando perspectivas metodológicas de materiais de estudo publicados aqui no país, entre livros, videoaulas e cursos online, e propondo algumas possibilidades nesse sentido. Os depoimentos de artistas de blues brasileiros que constam em seus livros são referenciais preciosos, pois os próprios participantes dessa cena do blues nacional contam suas histórias e as maneiras como percebem esse cenário, além, claro, dos estrangeiros que estiveram por aqui. São materiais fundamentais para entender nuances do blues nacional a partir das diferentes perspectivas das próprias pessoas "de dentro" desse universo. No meu mestrado, que defendi em 2014, escrevi uma dissertação sobre a prática do blues em Salvador, identificando falas e sonoridades dessa cena a partir de entrevistas com treze participantes. Fui costurando diálogos com essas pessoas, falando do meu lugar de pesquisador, mas sendo também um músico atuante nessa mesma cena. Aprendo bastante com a escrita desses trabalhos e percebo que isso, também, me faz perceber minha própria atuação como músico de outra maneira. Sou muito grato por ter tido a oportunidade de cursar mestrado e doutorado, podendo imergir em temáticas ligadas ao blues, que é o que mais amo.


EM – Você herdou o programa do teu pai, o Educadora BLues. Como foi essa retomada? 
EA - Pois é, na verdade foi uma consequência inesperada. Em dezembro de 2017, meu pai sofreu um infarto fulminante e faleceu de repente, aos 59 anos. Ninguém esperava aquilo, foi uma circunstância absolutamente traumática e dolorosa. Eu tinha tocado com ele em uma sexta em Salvador, viajei para fazer dois shows fora no fim de semana (Ilhéus-BA no sábado e São Paulo no domingo), conversei com ele por whatsapp no domingo à noite e, na segunda de manhã já havia perdido meu maior ídolo, melhor amigo e confidente. Para além da tristeza enorme, me senti estimulado a fazer o que eu pudesse para honrar a memória do artista Álvaro Assmar. Tocar adiante os projetos que ele tinha e, através da minha música, dar continuidade a tudo o que ele me ensinou, com toda gratidão pelos anos de convivência com esse grande homem. Dentre os projetos dele que estavam em andamento, finalizei a produção do álbum "Family & Friends", que lançamos no segundo semestre de 2019 (sétimo CD da discografia dele) com uma temporada de shows bem legais, que contaram com a presença do meu padrinho André Christovam, grande amigo de Álvaro. Esses shows geraram um material audiovisual que produzi em parceria com a Cortejo Filmes, que foi exibido pela TVE Bahia e consta disponível no YouTube. Também está em andamento a escrita da biografia dele, pelo jornalista João Paulo Barreto, que deve ser lançada em breve. E além desses projetos, o programa Educadora Blues também havia ficado órfão, uma vez que desde 2003 o próprio Álvaro o produzia e apresentava, trazendo sempre lançamentos de blues no Brasil e no mundo. Na época de seu falecimento, essa foi uma grande preocupação, pois esse programa era motivo de um orgulho imenso para Álvaro. Um programa semanal dedicado ao blues na rádio pública da Bahia, no ar ininterruptamente por tanto tempo! Eu nunca tinha tido uma atuação profissional no rádio, só apresentei programas pontuais como convidado, falando do lugar de artista mesmo, mas sempre pesquisei álbuns e artistas de blues, paixão que herdei do meu pai e dividia muito com ele, também. Decidi topar o desafio e propus à coordenação da rádio e à direção do IRDEB (órgão estatal que administra a Rádio Educadora FM) que eu continuasse o programa. Eles adoraram a ideia e eu, então, fiz uma imersão em estudos nesse campo do rádio. Estudei bastante a maneira como Álvaro fazia os programas, desde padrões de locução, até níveis de mixagem/masterização, montagem geral do programa, etc. Contei com a preciosa ajuda de Washington Barbosa, profissional da Educadora com mais de 40 anos de carreira, com quem muito aprendi e ainda aprendo. Logo no mês de janeiro, fiz um passeio por toda a discografia de Álvaro, prestando um tributo ao pai do programa durante todo o mês. Em fevereiro, retomei a proposta de tocar os lançamentos no Brasil e no mundo. Tive e tenho tido uma aceitação maravilhosa dos ouvintes do programa, o que me deixa muito feliz. Já são dois anos e meio conduzindo essa missão, que representa algo especialíssimo pra mim e me dá uma sensação maravilhosa, de poder contribuir também por essa via para difundir o blues contemporâneo no estado da Bahia e, claro, quebrando essa fronteira com a transmissão online.

EM – Como tem se virado nesses tempos de confinamento?
EA - Eu vinha fazendo uma tour em cidades de Minas Gerais com os meus amigos Andrade Brothers, Gustavo e Luiz Andrade, duas feras do blues mineiro, quando os rumores do agravamento da situação do Coronavírus no Brasil estavam chegando com força. Tocamos de quarta a sábado, shows muito bons e com ótima adesão de público, mas no domingo já retornaria a Salvador para tocar em praça pública, porém o evento foi cancelado e, por tabela, toda a minha agenda de shows foi, pouco a pouco, sendo cancelada. Situação comum a todos os artistas, não teve jeito e não houve tempo hábil pra ninguém se preparar. Foi de 100 a 0 da noite para o dia. Decidi intensificar minha atuação como professor de guitarra blues via Skype, continuei produzindo os programas Educadora Blues em home studio, tenho escrito e registrado muitas canções novas, passei a ser mais requisitado para gravações como guitarrista e cantor e, também, comecei a fazer lives e shows online monetizados. Tempos muito difíceis para quem trabalha com arte e eventos, de modo geral, mas pessoalmente tenho a sorte de poder trabalhar com diversas atividades dentro da música, que não somente os shows presenciais. A Internet é um meio absolutamente essencial, nesse sentido.

Eric e Álvaro Assmar (guitarra), Jê Lima (baixo) e Caio Dohogne (bateria) 
(Sesc Santos 19/01/13)

EM – Gostaria que falasse sobre o momento da cultura no Brasil. Quer dizer, perdemos o Ministério da Cultura que viabilizava muitos projetos espalhados pelo país, inclusive festivais de blues e jazz. Temos uma taxa de desemprego alta e ao mesmo tempo o Governo Federal enquadra a indústria do cinema nacional que gera milhões e emprega milhares de pessoas. Em apenas uma ano e meio trocamos cinco vezes o secretário de cultura. 
EA - Momento crítico e triste, sem sombra de dúvidas. Acho absolutamente lamentável que tenha ganhado tanta força um discurso reacionário, que posiciona os artistas como inimigos do povo e do poder público, quando na verdade a cultura é parte fundamental da engrenagem de qualquer sociedade e esses artistas representam esse povo, estão ali para dialogar com as pessoas. A perda do Ministério é algo deplorável e as consequências disso, infelizmente, já estão sendo sentidas por todo o setor da cultura no país, que movimenta profissionais de várias áreas e tem um peso enorme para a economia nacional, para além da questão da importância da cultura em si. Vejo essa situação com muita tristeza e torço para que os danos sejam os mínimos possíveis. Que em breve possamos ter dias melhores para a representação da cultura em âmbito estatal.

EM - A última é uma pergunta inevitável. Qual foi a principal lição que o velho blueseiro Álvaro te deixou?
EA - As lições foram várias, na verdade, mas me inspira muito a seriedade e comprometimento dele para com o blues e seus ideais. Era um cara incorruptível, de uma nobreza de caráter rara e de uma solidariedade fora do comum. Sempre estendeu a mão às pessoas e "abraçou" com toda generosidade vários artistas que estavam começando. Além de tudo isso, ele sempre falava sobre a importância de o artista "ser o seu maior fã". Essa autoestima é um componente fundamental para você guiar uma carreira musical e poder ser livre e sincero com sua expressão artística. Tenho isso como um mantra e procuro sempre pensar nesse sentido.

Eric Assmar (Sesc Santos - 19/01/13)

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