quarta-feira, 24 de junho de 2020

O uivo do lobo solitário Edvaldo Santana nas noites de isolamento

Edvaldo Santana, o lobo solitário

Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Divulgação ES

Letras que nos levam aos campos floridos do interior do país (Jataí) ou aos campos de futebol, tema recorrente de suas histórias. Mas também a lugares sombrios, onde habitam os exploradores da fé e do erário público (“O mandatário perguntou quanto é que eu custo...”).
É blues, soul, sampa e protesto. Guitarra de corda de aço e  gaita diatônica lado a lado com a viola caipira, o violão de nylon e a sanfona. A música de Edvaldo Santana é o amálgama de tudo isso.
Não adianta esse cara aí do poder querer nos tutelar. É ouvindo Jacob do Bandolim, Pixinguinha e Edvaldo Santana que reforçamos e reafirmamos quem somos: brasileiros.
E se a gente quer fumar um beck, a gente fuma. Se quiser tomar uma pinga a gente toma: (“Um beck, uma pinga, Jacob e Pixinga”).
Versos abusados de quem é nascido e criado na maior cidade do Brasil, ouviu e viveu suas histórias desde jovem, lá na perifa, em São Miguel. Edvaldo Santana é de São Paulo.
A amizade com Tom Zé o aproximou nos anos 70 ao maior número de malucos beleza por metro quadrado do país. Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Eliete Negreiros, Vânia Bastos, Ná Ozzétti e os grupos Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Patife Band. Artistas geniais e fora de qualquer enquadro.
Como uma enxurrada de verão descendo a rua Teodoro Sampaio, e quem já foi pego em cheio por uma dessas sabe do que eu estou falando, a “vanguarda paulista” apareceu arrastando tudo o que via pelo caminho até parar no teatro Lira Paulistana, onde fez abrigo. Assim como no Sesc Pompéia, que mais tarde também seria o refúgio das bandas punks de São Paulo.
As grandes TVs não deram muita bola para o “movimento”.  Conheci todos esses caras, inclusive o Edvaldo, por causa da TV Cultura de São Paulo, já nos anos 80.
Após participar de algumas coletâneas independentes, o álbum Lobo Solitário, primeiro solo de Edvaldo Santana, lançado em 1993 pelo selo Camerati, tornou-se um marco na carreira do bardo e da discografia nacional. Bons blues como a faixa título, com uma slide insitente, o blues dançante Consulta (“quem não tem suingue não tem nada”); Muito Prazer, um slow da pesada e outros. Além das parcerias com Tom zè, Paulo Leminski e Arnaldo Antunes.
Ao londo das décadas 1990/2000, Edvaldo vem gravando discos independentes que descrevem dois lados do mesmo Brasil, o de beleza calma e bucólica do interior e o da tumultuada e angustiante vida urbana: Tá Assustado? (1995), Edvaldo Santana (1999), Amor de Priferia (2003), Reserva da Alegria (2006), Jataí (2012) e Só Vou Chegar Mais Tarde (2016).
Essa entrevista, realizada em meio à pandemia de Covid-19, fala sobre tudo isso. Se Jesus não manda recado, Edvaldo manda.  


Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical?
Edvaldo Santana – Nasci e fui criado num bairro chamado São Miguel Paulista, periferia zona leste de São Paulo, filho de pais nordestinos que vieram como a maioria dos migrantes tentar mudar a vida na grande metrópole paulistana. Minha infância foi muito interessante pra formação musical, meu pai cantava e tocava violão com os amigos em casa nas horas de folga e gostava de ouvir Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Pixinguinha,  Waldir Azevedo, também trazia os livretos de literatura de cordel que ele adorava.  A influência da música brasileira foi fundamental, naquele momento, nos anos 60. No radio você ouvia de tudo, Roberto Carlos, Gilberto Gil,  Teixeirinha, Caetano Veloso, Altemar Dutra, Tonico e Tinoco, entre outros. A televisão estava começando e a música popular era seu carro chefe. Programas como O Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues; Show em Simonal, Jovem Guarda, Tropicalia, os Festivais de Música, que possibilitavam ao público conhecer a diversidade e a beleza da nossa canção. E ainda tinha o som  que vinha de fora, Woodstock, Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Santana, Ray Charles. Posso dizer que fui privilegiado na formação musical, na infância e na pré-adolescência.

EM – E quando começou a tocar profissionalmente?
ES – Em São Miguel Paulista temos um grande artista que se destacou no cenário nacional, o Antonio Marcos. Todo jovem que gostava de música queria ser como ele, artista famoso que cantava na TV e no rádio, com dinheiro, mulheres, carrões, aquela ilusão da maioria do povo na periferia. Logo cedo fui aprendendo a tocar violão como auto-didata, quebrando as cordas do Gianinni do meu pai. Cantei em circo, salões de igrejas, na escola formei um grupo para participar de festivais estudantis chamado Caaxió, nessa época, com 15 anos, trabalhava numa fábrica de brinquedos chamada Mimo que ficava entre o Brás e a Mooca, acordava três e meia da manhã, pra chegar as seis no serviço. Comecei a perceber que a vida estava muito difícil e que eu podia, juntamente com os amigos, tentar viver da música que criava. Já havia ganho alguns festivais, coincidentemente o mestre Tom Zé estava precisando de uma banda para acompanhá-lo num show na cidade de Assis (SP). Foi aí que começamos a viver profissionalmente, larguei a escola, a fábrica e fomos fazer uma temporada no teatro de Arena que era dirigido por Luiz Carlos Arutin. Em 1975 fomos contratados pela gravadora Chantecler e o nome da banda virou Matéria Prima, gravamos um LP e em seguida um compacto simples. Já pela CBS, nos apresentamos na TV, nos programas Fantástico, Almoço com as Estrelas, Flávio Cavalcante, entre outros. Com vinte anos já conhecía um pouco da vida de ser artista no jet set, descobri que tudo tinha preço que aquela vida de sonho de ser pop star era apenas uma ilusão, agradeço muito os desenganos, pois entendi que precisava aprender a cantar, tocar, escrever, aprimorar os dons que me foram doados. Era necessário lapidar, depurar aquele diamante bruto pra não me tornar  apenas mais um produto descartável na vitrine da indústria cultural. Os sentimentos teriam que prevalecer sobre o mercado. O pato rouco aprendeu que o bagulho é louco, que o jabá existe, e voltou pra São Miguel cantando pro Brasil com humidade e sabedoria. Afinal, a história da nossa música passa por Noel Rosa, Cartola, Raul Seixas, Chico Buarque e voce não pode deixar a peteca cair, tem que manter o alto nível para as gerações que estão chegando entender a importância da música e da arte nas nossas vidas.

EM – Poderia falar sobre o Movimento Popular de Arte que chegou a lançar um disco em 1985, auge do underground paulistano com compositores geniais.
ES – O MPA - Movimento Popular de Arte foi fundado no final de 1978 e teve atividades intensas até o final de 1985. É o primeiro agrupamento de diversos artistas e interessados na cultura, criado na periferia de São Paulo. Entre seus objetivos estavam a criação de espaços no bairro que fossem utilizados na formação de novos artistas, potencializando suas inclinações, assim como a criação de público, proporcionando à população mais pobre, acesso a oficinas, palestras, debates sobre a arte e a vida diária. Assistir a peças de teatro, shows de música, espetáculo de dança, exibição de filmes, sarau de poesia. Investir em lazer e cultura para a periferia era o seu objetivo principal. Durante  o tempo que durou, o MPA produziu várias atividades, ocupando praças, ruas, teatros, sindicatos, salões paroquiais. Produziu um documentário para a TV Cultura, gravou um disco LP, uma coletânea que incluía os artistas representativos de sua história, como Matéria Prima, Edvaldo Santana, Sacha Arcanjo, Raberuan, Ceciro Cordeiro, Gildo Passos, Osnofa, Eder Lima, Ligia Regina, Zulu de Arrebatá, Luiz Casé, Grupo Goró. Foi gestor e organizador do MPA Circo que proporcionava cursos e apresentações de artistas consagrados como Belchior, Walter Franco, Inezita Barroso, Língua de Trapo, Tarancón, Paulo Moura. E grupos de teatro como União e Olho Vivo, Núcleo, Periferida. De poetas, como Akira Yamasaki, Claudio Gomes, Severino do Ramo. Grupos de música étnica, como o Crisol. De dança, como o Balé Nacional do Brasil. O Movimento celebrou 40 anos de sua fundação, realizando vários eventos comemorativos no bairro, sua atuação é de muita importância para a formação e desenvolvimento de artistas e pessoas que vivem no extremo leste da cidade, influindo na criação de Casas de Cultura, Oficinas Culturais, Bibliotecas, encurtando a distância entre o conhecimento e a sabedoria, entre a arte e a vida.


EM – O Lobo Solitário já começa com uma slide poderosa e cantado em português. Mas os temas não eram aqueles que a galera do blues tradicional estava acostumada a abordar. E, naquela época, foi isso que chamou a minha atenção. Marcou muito. 
ES – Lobo Solitário é o primeiro álbum solo gravado em Santo André, produzido em parceria com o Camerati, uma experiencia extraordinaria. No final dos anos 80, quando morava no Rio de Janeiro, assinei um pré-contrato com a Warner para lançar meu primeiro álbum solo. Mas com a chegada do plano Collor esse projeto foi abortado, algumas canções que havia escrito naquele momento foram utilizadas no set list do Lobo Solitário que gravei entre 1992 e 1993. Sempre tive uma ligação com a música negra, principalmente com o jazz, o blues, a salsa, o reggae, mas adoro a música brasileira. Não teria sentido gravar um disco copiando o formato da música norte-americana, principalmente do blues, a ideia era unir essas estéticas de uma forma que fosse concebida naturalmente e principalmente cantada em português. Nós estamos na terra de grandes letristas e não sei falar inglês até hoje. Nunca fui interessado no catálogo, sou um artista fragmentado, a arte é dinâmica, não gosto de ser enquadrado de nenhuma maneira. Lobo Solitário é uma síntese desse meu jeito de viver e pensar naquele momento, tem grandes parceiros poetas que contribuíram muito: Arnaldo Antunes, Paulo Leminski, Haroldo de Campos, Tom Zé, Glauco Mattoso, Ademir Assunção. Além de músicos maravilhosos que se dispuseram a investir na obra, Luiz Waack, Bosco Fonseca, Daniel Szafran, Marcelo Farias, Bocato, Paulo Lepetit, Celmo Reis, os irmãos Beto e Rubens Nardo. A fotografia é de Milton Michida. É bom salientar que a primeira versão de Metrô Linha 743, além da gravação do grande Raulzito, foi realizada nesse trabalho é a quarta faixa desse álbum e as canções A Rússia Pegou Fogo na Sapucaí e Sabonete foram incluídas na coletânea Vanguarda da Música Brasileira, CD encartado na revista Audio News, distribuído em bancas de jornais

EM – Você tem alguns blues misturados com músicas, diria eu, bucólicas. Ou seja, um um som urbano, mas com um pé no campo. Gostaria que falasse sobre isso.
ES – O desenvolvimento da obra se dá com muita dedicação, com muito esforço. Aprendi a gostar de música sem me importar com o estilo e de onde ela vem. Se bate no coração e fica, tem sentido pra mim. Sou um paulistanóide, mas meus ancestrais são do meio rural, sou urbano/agreste e isso reflete na obra. Gosto do blues como gosto do samba, gosto do xote como gosto do jazz, gosto do rock como gosto do bolero, gosto da viola como gosto do sax, não tenho preconceito. Me dedico em inventar canções com letras, procurando originalidade nas formas e no conteúdo, acredito que quando consigo criar uma canção que satisfaça o meu sentido de observação, aguçando minha sensibilidade. Estou me aproximando da minha função de artista inventor, temos dores e alegrias, procuro expressá-las com a arte que venho desenvolvendo há muitas luas. 

EM – Noto que em algumas das tuas letras você protesta contra os mercadores da fé que exploram o povo. São os casos de O Retorno do Cangaço e Domínio. Jesus não manda recado, mas o Edvaldo manda.
ES – Sim. Os temas de algumas letras passam por esse filtro de linguagem e observação. Questiono esse jeito milenar de enganar as pessoas através da fé, utilizando Jesus Cristo para vender sonhos e futilidades, prometendo a eternidade e a salvação para a humanidade. Hoje têm muito mais igrejas que escolas. Deus não intimida. Deus não deu patente nem para padre nem para pastor. Cada um sabe de si, como dizia minha saudosa mãe Judite: "Cada qual sabe onde seu calo aperta!”. Devemos deixar o ser humano escolher o seu caminho sem interferência religiosa, o estado laico é democrático, deixem a paz, a inteligência, a bondade tomar conta da gente.


EM – Alguns artistas são chamados de malditos, talvez por não frequentar a mídia musical e não badalar alguns sacos. Ouso citar alguns: Tom Zé, Jards Macalé, Itamar Assumpção, Jorge Mautner, Arrigo Barnabé. Pô, esses malandros têm as melhores letras do universo. Edvaldo Santana é maldito?  
ES – Essa imposição do que é bem ou mal é pura balela mercadológica. Para excluir quem gosta de pensar, pois a arte tem o poder de influenciar a humanidade, de mudar comportamentos e atitudes. Temos que aprender a diferenciar; quem faz arte pensando apenas no produto de mercado de quem faz pelo sentimento, pelo prazer. Todos esses grandes artistas citados me fazem bem, portanto, estou fora desse xaveco, de quem é maldito ou bendito. O que importa pra mim é o que me entusiasma, não estou preocupado, com o mainstream. Vivo tocando meu barco do jeito que gosto, fazendo o que me deixa feliz, sem precisar me submeter aos marqueteiros e negociantes de plantão.  

EM – Você é da época das grandes gravadoras. Passou por algumas e hoje é independente. Por um lado pode gravar o que quiser, publicar onde e como quiser. Por outro, não rola adiantamentos, lobby e tal. Como vê a cena hoje?
ES – Você pode escolher o seu caminho e é preciso coragem e desapego para seguir uma trilha independente, as dificuldades existem. Ser um artista sem grana e muitas vezes sem apoio, requer resiliência e competência para arcar com os projetos. Aprendi na estrada que era possível viver e fazer o que mais gosto, sem precisar passar pelo crivo de produtores que vem com a cartilha pronta. Conquistei muitos amigos que me ajudaram nessa trajetória, agradeço demais essas pessoas que acreditam em mim e na obra que desenvolvo. Nunca fui adepto a badalações e logo cedo entendi, que a música era um bem muito precioso e que eu precisava me dedicar incondicionalmente, aprendo com as dificuldades. Fico chateado com as manobras dos oportunistas, mas sempre lembro uma frase do grande Paulo Leminski: "Choramingando as minhas mágoas eu não vou a lugar algum". 

EM – Estamos passando dias sombrios. Na política, há uma retórica anti-corrupção mentirosa, mas que muitos compraram e nos meteram em uma enrascada. E algumas de tuas letras abordam problemas que já vêm de décadas. Quer dizer, os mandatários continuam perguntando quanto a gente custa. Não evoluímos?  
ES - As vezes me pego questionando: “Será que nossas canções não serviram pra nada? Será que é só com a dor que a gente lembra da paz?”. Sou ainda muito esperançoso. Acredito que houve mudanças, mas o processo de transformação é lento. Uma parcela de quem detém o poder não está interessado na melhoria do planeta. Se preocupam apenas com o seu bem estar material, o individualismo. E o consumismo desenfreado não os deixam entender que é bom pra humanidade que todos tenham acesso a liberdade, saúde, arte, alimentação, educação, moradia, qualidade de vida. Tivemos um momento muito bom na gestão do Lula, mas não foi suficiente, pra desbancar os picaretas que mamam nas tetas desse país maravilhoso e rico há muitos anos.   

EM – E na saúde, com a chegada na Covid-19, os músicos estão sem fonte de renda. Como você está se virando e como vê o futuro da cultura no Brasil após a pandemia?
ES – Claro que está muito dificil para todos, temos uma doença que já matou mais de cinquenta mil pessoas, o desemprego, a falta de perspectiva e a incerteza são prementes, nas nossas vidas. Estou muito triste pois tem vários amigos que não encontrarei depois que a tempestade passar. Por outro lado, estou aprendendo a lidar com esse confinamento inédito. Estou escrevendo muito e compondo as canções que farão parte do novo álbum, finalizando um livro sobre São Miguel. As despesas da casa estão por conta da aposentadoria da minha companheira Sueli, que trabalhou 30 anos na área da saúde pública como psicóloga, mas como vivo na corda bamba sempre, não me desespero e agradeço os desenganos. Nestes momentos a gente fica mais forte mais solidário mais humilde e também mais astuto.

EM - E como vê o atual governo? Com essa política estimulando a violência, o desmonte na educação, cultura e ciência?
ES – Vou completar 65 anos e já vi esse filme em outras situações. Passei pela ditadura ainda adolescente, sofri muito com a perseguição política que meu pai, Felix, sofria. Sem emprego, sem perspectiva, passei pela era Collor que foi também bastante destrutível para a cultura, para os trabalhadores para o Brasil. O governo que aí está cumpre o seu papel a serviço do capital especulativo, propagando o ódio, a miséria, a morte, o desprezo, a falta de consideração e de humanidade. Não me surpreende. Cabe a nós continuar espalhando o amor, a paz, a luz, a liberdade, a solidariedade, pois maluco beleza não se dá por vencido. A metamorfose ambulante está entre eu e você. 

Entrevista publicada em 23/06/2020. O Brasil enfrenta a pandemia de Covid-19 há três meses. Há um mês sem ministro da saúde. Com 50 mil mortos e mais de um milhão de infectados. Sem ministro da educação. E o governo Bolsonaro enfrentando diversas denúncias de corrupção, improbidade administrativa, fake news, etc. 

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Entrevista exclusiva com Nick Moss, premiado no Blues Music Awards na votação de 2020



Texto: Eugênio Martins Jr
Fotos: Chris Monaghan

A Nick Moss Band é uma das bandas de blues mais legal dos Estados Unidos nos dias atuais. E não sou só eu que acho isso. A Blues Foudation, entidade que promove o Blues Music Awards, um dos mais importantes concursos daquele país, concedeu três premiações à banda baseada na votação dos fãs e críticos de blues: melhor álbum tradicional em 2019; melhor banda e melhor música tradicional, Lucky Guy. 
Já com o baixista brasileiro Rodrigo Mantovani e o gaitista/cantor da Califórnia, Dennis Gruenling, o álbum Lucky Guy! tem Taylor Streiff nos teclados e Patrick Seals na bateria e 14 temas cheios de energia e feeling. 
Segundo álbum da parceria com o super gaitista, que começou em High Cost To Low Living, Lucky Guy! foi lançado pela famosa gravadora Alligator Records, de Bruce Iglauer. Segundo o próprio Moss, a associação com o selo de Chicago colocou sua banda sob os holofotes, coroando o trabalho com as premiações da Blues Foundation, consequentemente aumentando o alcance da sua música.  
Porém, não dá para apontar um disco melhor do que o outro. Ao longo dos anos, mesmo antes da atual formação da Nick Moss Band, o guitarrista vem pesquisando e gravando ritmos, da costa oeste norte americana até o bom e velho blues de Chicago.
From The Roots To The Fruits, album duplo gravado de forma independente em 2016, com seu antigo parceiro Michael Leadbetter, atesta isso. Trata-se de um álbum conceitual, com nada menos que 27 músicas divididas em dois CDs. 
O CD 1 – Roots - recheado com os blues de todas as formas elétricas, com Jason Ricci aparecendo em The Woman I Love, Gordon Beadle fazendo todos os saxofones e o poderoso slow Lost and Found. O CD 2 – Fruits com temas viajantes, o suficiente para “quase” serem chamados de progressivos, o casos de Serves Me Right, Free Will (com participação de David Hidalgo) e Speak Up.    
Pego em cheio pela pandemia de Covid-19, com a agenda cheia de shows marcados e no começo da temporada de festivais nos Estados Unidos, Nick Moss concedeu a primeira entrevista a um veículo brasileiro.
Não bastasse a catástrofe sanitária, os Estados Unidos vivem atualmente* grandes manifestações contra o racismo e a violência policial impulsionadas pela morte de George Floyd. 
Nesse momento, várias cidades americanas estão tomadas pela guarda nacional e toques de recolher impostos pelo governo estão sendo quebrados pelo povo que ocupa as ruas em protesto. 
Houve tentativas de saque e incêndio nos templos do blues de Chicago, o Buddy Guy Legends e o BLUES on Halsted e muitas pessoas estão evitando sair de suas casas pelos dois motivos, pandemia e protestos. Não por coincidência, temas que o blues já vem cantando e denunciando há mais de um século.
Essa entrevista não seria possível sem a inestimável participação do Rodrigo Mantovani, parceiro de longa data e tantas gigs. Valeu mermão!


Eugênio Martins Júnior - Se lembra quando foi a primeira vez que realmente  ouviu o blues?
Nick Moss - Nasci escutando todo tipo de música. Meus pais escutavam desde a primeira fase do rock and roll, big bands, doo wop, blues e soul. Um tio nos apresentou às bandas inglesas que estavam invadindo o cenário, Led Zeppelin, Rolling Stones, Free, Blind Faith, Traffic. Crescemos escutando esse tipo de música e conhecemos o blues através deles e foi quando o meu irmão mais velho, Joe Moss, decidiu levar a sério a guitarra e descobriu que todos esses guitarristas de rock  tinham como base o blues e faziam música baseados nos blueseiros antigos. Então ele descobriu os discos de blues da nossa mãe  que estavam no nosso porão e a partir daí descobrimos juntos o que era blues de verdade. Tinha discos do Muddy Waters, BB King, etc. 
Ao mesmo tempo, nos anos 80, outras bandas e artistas começaram a aparecer tocando música baseada no antigo blues, ZZ Top e até mesmo Stevie Ray Vaughan, e isso nos deixou muito emplogados, pois, de alguma forma, conseguimos relacionar com os blues dos anos 40 e 50 e, de certa maneira, quanto mais escutavamos SRV e Led Zeppelin conseguíamos ver o quanto eles foram influenciados e estavam atentos aos artistas afro-americanos de blues. Com isso fomos levando o blues mais a sério e mergulhamos fundo nele. Me lembro de ter ganho de Natal  um disco da gravadora Alligator, era o álbum Bar Room Preacher, de  Jimmy Johnson, e na sequência os discos de Albert Collins e Lonnie Mack. Mas mesmo assim nós continuamos indo mais fundo e  escutando os discos antigos de blues da nossa mãe.  

EM – Quando foi que você decidiu que seria músico prosissional?
NM - A razão pela qual acabei me tornando músico foi o simples fato de que eu não pude fazer o que que queria, ser esportista pela faculdade. Era um jogador talentoso de futebol americano desde a escola e achei que também teria um desempenho alto na faculdade, mas acabei ficando doente aos 18 anos e me disseram que nunca mais voltaria a praticar esportes. Quando estava no hospital me recuperando de cirurgias meu irmão ia me visitar com sua guitarra. Naquele momento eu já tocava, somente de brincadeira, e ele trouxe meu baixo para o hospital só para me dar algo para fazer porque eu estava entediado e paralisado no hospital após fazer duas cirurgias importantes nos rins. Me apaixonei pela música novamente e quando estava me recuperando, ainda no hospital, ele me levou para  ver uma banda tocar e acontece que aquela banda da gravadora Alligator, a Little Charlie & the Nightcats.
Eu simplesmente me apaixonei naquela noite por tudo o que faziam, o visual, o som e a dedicação deles. Tudo me atraíu e isso me deu uma nova esperança, já que eu não poderia mais voltar a praticar esporte na escola, pela possibilidade e medo de ter complicações por esse problema médico. Tive outra coisa pela qual me interessar e olhar adiante.

EM – Já que você o citou, qual foi a influência do seu irmão, Joe Moss, na sua música?
NM - A influência do meu irmão não pode ser medida, pois desde criança eu seguia seus passos. Ele sempre liderou o caminho desde que me lembro e tudo o que ele fez eu queria fazer. Absolutamente tudo e na música foi a mesma coisa. Acontece que ele era naturalmente talentoso, e eu não. Até mesmo nos dias de hoje ainda tenho que trabalhar duro para aprender coisas novas. Não sou formalmente educado em música, tudo o que sei aprendi de ouvido ou assistindo alguém tocar, no entanto, meu irmão era como um prodígio quando ele era criança, e aprendia mais até mesmo que os seus professores até seu último professor de guitarra dizer aos meus pais que não podia mais ensiná-lo, pois Joe sabia mais do que ele. Assisti meu irmão se tornar um guitarrista muito competente desde novo e eu queria fazer o mesmo, mas não conseguia, e isso me frustrava, pois era uma das poucas coisas que eu não conseguia fazer tão bem quanto ele. Todas as outras coisas que ele fazia, como jogar futebol, beisebol eu também fazia muito bem, mas por algum motivo a música não era assim para mim, até um dia meu irmão me comprou um baixo e disse: "tente isso”. Ele comprou aquele baixo em uma venda de garagem, eu tinha 11 anos. Na verdade acho que o real motivo dele comprar um baixo para mim foi para eu parar de pegar sua guitarra emprestada. Ele foi muito esperto! Seja lá qual tenha sido o motivo, me pareceu muito natural tocar baixo e comecei realmente a tocar como baixista e com isso fui capaz de tocar com meu irmão e seus amigos. Isso me deu confiança para aprender como tocar por conta própria. O primeiro show que fiz com o Jimmy Dawkins foi porque meu irmão chamou o baixista oficial de Dawkins e disse: "Ei, você sabe que meu irmão está sem fazer nada, talvez você possa deixá-lo tocar nesse show". Com isso consegui essa gig, por causa do meu irmão. Por esses motivos não consigo mensurar e dimensionar o quão importante meu irmão foi na minha trajetória e carreira.


EM - Gostaria que você falasse um pouco sobre esse tempo com o lendário Jimmy Dawkins. Sabemos o que ele representa para a música, como ele era como pessoa?
NM – Foi minha primeira gig importante. Era muito jovem, tinha 18, 19 anos. Tinha acabado de fazer algumas cirurgias e estava me recuperando delas, tentando pensar no rumo da minha vida. Depois de ver Little Charlie & The Nightcats esatava pensando em seguir carreira como músico profissional em tempo integral. Então recebi a proposta para tocar com Jimmy Dawkins porque o baixista dele não podia na ocasião. Estava saindo com meu irmão e indo para um monte de bares e jams de blues quando fui convidado, e então eu pensei que não seria um problema tocar blues de 12 compassos. Assim, quando a oferta desse show apareceu, nem hesitei. E eu nem sequer compreendia naquele momento o quão valioso, importante e significativo era isso porque eu realmente não sabia muito sobre o Jimmy. Sabia que era um bluesman em Chicago, mas não sabia de toda a sua história. Pensei que era apenas uma boa oportunidade de fazer alguns shows. E  então cheguei nessa banda que tocava de uma maneira extremamente solta e fluída. Tinha um baterista que tocava com propriedade, totalmente solto, dominando a linguagem de tocar nos 12 compassos, que nem sempre era o caso.
Jimmy sentia a música de uma forma única e tinha uma maneira específica de expressar e sentir cada som. Eu era apenas um garoto de 18 anos e não sabia nada daquilo. Diria que ele foi muito paciente comigo por quase um ano. Tenho certeza que em outras situações outro líder de banda já teria dito: “sai fora, você já era!" Mas finalmente quase depois de um ano ele me chamou de lado e disse: "Você sabe que eu gosto de você, você é um jovem simpático e eu pude ver que você realmente quer fazer isso e está empenhado, mas você não sabe o suficiente ainda e eu não tenho tempo para ensiná-lo agora, mas se você melhorar e entender essas coisas melhores me ligue novamente, mas eu tenho que arranjar outra pessoa". Lembro que mesmo ele fazendo e falando isso para mim da melhor maneira possível, ser demitido e deixar a banda ao ser informado que eu não era bom o suficiente foi um dos sentimentos mais horríveis que já tive na minha vida. Naquele minuto disse a mim mesmo que nunca deixaria isso acontecer comigo de novo. Que nunca deixaria alguém me dizer que eu não era bom o suficiente. Que não sei o suficiente. E fiz disso minha missão a partir desse momento, tentando aprender o máximo que pude e, quando tive a próxima oportunidade, não a perdi. 

EM - Você conviveu com Mike Ledbetter enquanto ele esteve em sua banda. Todos sabemos que ele é herdeiro do talento de um dos grandes nomes do blues, Huddie Leadbelly. Claro que ele não conviveu com Leadbelly, mas ele costumava falar sobre isso? Outra coisa, sua partida foi muito prematura. Gostaria que falasse sobre esses dois assuntos.
NM – Não, Mike não falava muito de sua conexão com Leadbelly. Principalmente porque ele não queria que parecesse que estava usando isso como uma maneira de se promover e impulsionar sua carreira por conta do nome. Acredito que seu pai tenha lhe dito que Leadbelly era um parente muito distante e que realmente não valia a pena mencionar. No entanto, quanto mais Mike estava se envolvendo com o blues obviamente foi ficando curioso sobre sua conexão com Leadbelly  e começou a pesquisar, perguntando para seu pai e avós  um pouco mais sobre isso. Ele descibriu que Leadbelly era um primo de terceiro grau distante de um dos seus bisavós. Não me lembro exatamente se era bem isso, mas a ligação de sangue era algo assim. Novamente repito, ele não tocava no assunto em entrevistas, ao menos que alguém dissesse "Ei, seu sobrenome é o mesmo que o Leadbelly você sabe disso? E então ele diria: "Bem, sim, tenho um conexão sanguínea distante, mas nada além disso”.
Inclusive, depois de muito tempo que estávamos tocando juntos, recebemos uma notificação de uma empresa de produção da Inglaterra que estava organizando um evento de tributo ao Leadbelly e perguntaram se o Mike gostaria de fazer parte disso, pois eles ouviram que Mike tinha laços sanguíneo com Leadbelly, mas Mike não queria participar porque ele não queria explorar o nome para impulsionar sua carreira e eu disse: "Você está louco! Esse evento além de tudo será no Carnegie Hall, quando você acha que será convidado novamente para tocar no Carnegie Hall!?" E então Mike sendo Mike disse que faria, mas que queria levar o chefe dele. Para nós dois fazermos isso juntos e isso é uma das coisas que vou me lembrar para sempre. Ter tocado no Carnegie Hall porque Mike Ledbetter me convidou para fazer o evento com ele. E eu disse a ele: “É melhor mesmo você se certificar que eu vou fazer isso com você seu FDP”. (risos)
Até hoje lembro que ele recusou originalmente e eu falei "você é louco?" (risos). 
Na verdade ele tentou levar a banda toda para participar, mas eles não queriam pagar. Eles me conheciam, então aceitaram que fosse só eu e o Mike para fazer a participação em dupla. Foi uma noite incrível. Nós abrimos e fizemos a primeira apresentação do evento todo. Mike destruíu. Cantou muito. Foi lindo. Eu gostaria que houvesse alguns vídeos daquela noite, tem apenas um pequeno videoclipe que sua irmã gravou, porque eles não deixaram que câmeras gravassem da platéia, mas ouvi que supostamente há um vídeo por aí, mas eu nunca vi. Foi um evento maravilhoso, com Buddy Guy, Kenny Wayne Shepperd, Edgard Winter, não me lembro de todos os envolvidos que estavam lá. Acho que John Hammond estava lá também, foi uma grande programação. 
Sobre o fato dele ter morrido, não sei o que dizer sobre isso, além de que ele significou muito para mim. Era mais da família do que um membro da banda para mim e você pode imaginar como é perder  um membro da família. Melhor passarmos para outra pergunta.


EM - High Cost To Low Living e Lucky Guy são dois trabalhos poderosos em parceria com Dennis Gruenling. Gostaria que falasse sobre esses dois trabalhos.
NM – Sim, um grande ponto de virada na minha carreira. Minha escalada à popularidade é diretamente atribuída a esses dois trabalhos. Principalmente porque tive uma exposição e distribuição muito boa, por passar a integrar a Alligator Records, uma das mais antigas gravadoras, estritamente de blues e com uma das maiores reputações do mercado no mundo inteiro. O fato de ter o nome Alligator Records associado a você passa muita credibilidade. De fato, foi um marco ter assinado com eles depois de muitos anos lançando meus discos pela minha própria gravadora. Nossa banda foi relativamente bem sucedida com a nossa própria gravadora, mas nada comparado com as conquistas que tive fazendo parte da Alligator Records nesses últimos três anos. High Cost of Low Living teve um processo de criação muito legal e nosso recente CD, o Lucky Guy!, obviamente superou todas as expectativas. Acabamos de ganhar o Blues Music Awards em três categorias, melhor álbum tradicional do ano; melhor  banda do ano; melhor música tradicional do ano, Lucky Guy. Atribuo todo esse sucesso não apenas por estar na Alligator Records, mas também ao momento em que Dennis Gruenling se juntou à banda. Foi um grande negócio. Michael (Leadbetter) fez parte da minha banda por quase sete anos e foi incrível, fizemos várias coisas incríveis, vários estilos diferentes de música e quando ele se foi eu não tinha muita certeza do que iria fazer. Se iria voltar ao Blues tradicional, que tinha feito antes de Michael ou se iria continuar num estilo mais moderno. Estava preocupado em ter que resolver essa questão e  aconteceu por acaso. Naquele momento Dennis  me ligou e disse: "Ei cara, recebi uma oferta de um show no Centro-Oeste, perto de você, e preciso de uma banda, você gostaria de ser minha banda de apoio?". Era um concerto beneficente e ele ia fazer uma homenagem a William Clark. Fazia algum tempo desde a ultima vez que havia apoiado um gaitista durante todo um show, mas eu amo esse estilo, o swing, o blues tradicional de Chicago. É onde meu coração sempre esteve. Então, imediatamente disse que sim. E quando finalmente começamos a fazer o show percebi o quanto sentia falta de tocar esse estilo de música e me lembro que durante o intervalo disse para Dennis que ele não estava mais tocando com o Doug Deming e se estaria  interessado em fazer algo comigo. E ele respondeu que amava o som da minha banda e que poderia fazer parte dela. Eu disse ok, vamos ver se funciona. Fizemos a próxima turnê juntos. Mike ainda estava na banda, mas o Dennis se juntou a nós. Foi muito legal e divertido, a turnê com Dennis. Mike deixou a banda no mês seguinte, em janeiro e a transição foi fácil. Estávamos na verdade no Blues Cruise quando Mike fez seu último show conosco e o Dennis também estava no cruzeiro. Foi uma amostra de como a banda soaria sem Mike. Aliás, muitas pessoas vieram me dizer que sentiam falta de me ver tocando blues tradicional. Então foi bom voltar a isso e foi bom ver os fãs se lembrarem da minha trajetória tocando blues tradicional antes do Mike estar na banda. Dennis fazendo parte da banda, você sabe, seu entusiasmo, seu conhecimento na música, ele é um dos melhores do mundo e isso é incontestável. Ele têm uma presença de palco incontestável. É uma dessas pessoas que fazem o público querer olhar para o palco. Eu nunca fui uma dessas pessoas, nunca fui um tipo excêntrico e às vezes você precisa desse tipo de pessoa para fazer um contraste no palco. Acho que o Dennis contrasta comigo no palco, pois sou mais reservado. Escuto muitas pessoas falarem que gostam desse contraponto, essa harmonização e equilíbrio no palco. Não somente na parte musical, mas na parte cômica e esse complemento das personalidades juntas, isso é ótimo.

EM - Otis Rush, James Cotton, Magic Slim, Lonnie Brooks já se foram. Buddy Guy está com 85 anos. Como vê a cena de Chicago hoje?
NM - É verdade, todos os dias  perdemos nosso passado. Mas o futuro é inevitável e sempre vai se desenvolver.  Há muitos músicos na cena do Blues de Chicago que continuarão a levá-lo à próxima fase. Vai existir novamente a mesma qualidade dessa "realeza" dos bluseiros que temos aqui em Chicago, como Buddy Guy? Não sei. Acho que no país há outras pessoas que podem usar esse manto, assumir esse papel. Mas enquanto o Blues de Chicago estiver por aí eu certamente farei minha parte. Há caras da cidade que estão fazendo o que podem, Mike Wheeler é um dos caras que gosto, um pouco mais moderno, mas acho que ele é um cara que pode ganhar mais impulso e notoriedade com os fãs pois ele  não agrada somente o público que gosta de blues tradicional. Há muitos caras por aí, gosto do Omar Coleman e ele ainda é jovem suficiente para ser influente fazendo música pelos próximos 15 ou 20 anos. É um grande gaitista e cantor. Temos o  Corey Dennison, Gerry Hundt, esses caras estão fazendo o som deles. Existe uma banda jovem nos arredores de Chicago chamada The Kilborn Alley Blues Band, com quem eu tenho uma associação há algum tempo, que é jovem o suficiente para fazer bastante coisa. Andy Duncanson é o vocalista dessa banda. Acho que existem muitos músicos fora de Chicago também. E na verdade eu tenho ajudado lentamente a mostrar alguns jovens talentos do blues em todo o país e sinto que o futuro do blues está em boas mãos se esses esses caras continuarem. Mas nunca mais vai haver outro Buddy Guy,  BB King ou outro Son House. Sempre haverá alguém que terá identidade própria e levará as coisas para a próxima grande etapa. E essa é a única coisa que podemos fazer. Olhar para frente e  que as pessoas consigam ser elas mesmas e levar o blues para outro patamar, trazendo mais visibilidade e notoriedade para esse estilo musical.



EM - Como você conheceu o Rodrigo Mantovani e como surgiu o convite pra tocar na tua banda?
NM – Conheci o Rodrigo em uma banheira Turca e ele estava tentando tirar minha toalha. Então falei calma lá grande rapaz, deixe eu me apresentar primeiro! (risos)
Não, sério agora, conheci o jovem Rodrigo em um festival na Espanha, onde tocamos e estava muito, mas muito calor. Me lembro de estar lá com minha banda e nossos amigos, RJ Mischo e Kirk Fletcher e, tanto eu quanto eles, já tínhamos ouvido falar e conhecíamos a música da Igor Prado Band. Nós tínhamos um amigo em comum chamado Lynwood Slim, que havia falado desses caras. Então estávamos tocando naquele festival. Fiquei muito impressionado com a interpretação deles do blues tradicional, do blues de Chicago, do jump blues. Ver esses caras do Brasil tocando essas coisas e de maneira tão autêntica. Me lembro de ter ficado impressionado com Igor e sua habilidade na guitarra e vocais, mas fiquei igualmente impressionado, se não mais impressionado ainda, com a seção rítmica, porque como disse anteriormente, comecei como baixista e sempre noto a seção rítmica das bandas, e ter um guitarrista muito bom não importa se a seção rítmica da banda não for boa. Na verdade acaba não significando nada ser um guitarrista bom sem uma seção rítmica boa. Me lembro do baterista Yuri e desse baixista de cabelo cumprido chamado Rodrigo sendo apresentados a mim. Esses caras chegaram lá e arrebentaram! 
Foi muito legal e me lembro que no final do festival fizemos uma espécie de bis  no nosso show e chamamos esses caras no palco para tocar com a gente e colocamos nossos instrumentos neles e eles tocaram e me lembro de ficar de pé ao lado do palco olhando-os tocar e em um momento eu falei para o meu baixista na época, o Gerry Hundt: "É melhor esses caram ficarem de vez com os nossos instrumentos porquê eles tocam melhor que a gente”. (risos)
Foi uma noite muito legal e divertida e havia muito respeito e admiração mútua entre nós. Em seguida tentamos manter o contato. Não era fácil naquela época porque as mídias sociais não eram tão fortes e, ocasionalmente,  ouvíamos falar um do outro  ou víamos que eles  tinham tocado em um festival que íramos tocar. Me lembro de estar na casa do Lynwood Slim algumas vezes e ele estar falando com o Rodrigo no Skype e eu dar um alô e falar: "Ei como você está Rodrigo?”, coisas do tipo. Em seguida fiquei sabendo que o Rodrigo trouxe o Lynwood Slim para visitar Chicago por conta do Chicago Blues Festival. O Slim havia saído do hospital, e o Rodrigo decidiu vir com ele para assistir o Chicago Blues Festival e assim fazer alguns shows uma vez que o Slim estava bem de saúde novamente. Eles ficaram na minha casa e fizemos alguns shows juntos e mais uma vez fiquei chocado com o Rodrigo tocando baixo. Na época eu tinha um baixista jovem e o fiz sentar e assistir o Rodrigo e falei para ele: "Você está vendo esse jovem do Brasil?  É assim que se deve tocar e essa é a maneira de soar. Você têm que aprender com ele". Os encontros foram acontecendo, começamos a acompanhar um ao outro nas mídias sociais, enviando curtas mensagens. Seguiamos algumas postagens mútuas. Foi quando ouvi dizer que Rodrigo, Igor e Yuri tinham terminado a banda e isso aconteceu na mesma época em que eu estava procurando por outro baixista.
Nós tínhamos acabado de chegar de uma turnê na Europa e meu baixista me disse que não queria mais investir tempo na banda porque estava com muitos problemas pessoais. Vi o Rodrigo postando algo no Facebook e mandei uma mensagem para ele por estar frustrado e de certa maneira desesperado pensando em quem chamar para tocar baixo. E aconteceu como uma brincadeira que mandei a mensagem: “E aí cara, você quer se mudar para Chicago, para tocar baixo na minha banda?". Para minha surpresa, ele espondeu imediatamente: “Sim, quando?". Perguntei se ele estava falando sério, e ele me de perguntou se eu estava falando sério. O resto é história. Desde então começamos a pensar como faríamos para isso acontecer e não me arrependo de nada**

EM - From the Roots To The Fruit, como o nome diz, é um disco com muitos estilos. Mas todos eles permeados pelo blues. Gostaria que comentasse o conceito desse trabalho, um grande álbum.
NM - Estou muito lisonjeado e honrado por você ter gostado muito deste disco. Foi muito legal tê-lo gravado. O conceito é exatamente esse que você imagina: o blues é a raiz e todo o resto são seus frutos. Isso significa que a maioria das músicas modernas vieram diretamente do blues e queríamos mostrar isso. E também mostrar o fato de que no último ano que o Mike ficaria na banda – aliás meu baterista estava comigo há quase nove anos naquela época – aquela formação estava aprendendo a tocar o blues de uma maneira melhor. Tocávamos muito blues tradicional misturado com coisas contemporâneas e queríamos mostrar às pessoas que uma banda não precisa ter apenas um estilo. Se a banda for bem educada, preparada e bem-intencionada. Tentamos mostrar a correlação entre o blues da velha guarda e a música moderna das bandas de blues-rock e soul jam, e acho que fomos bem-sucedidos nisso. Dessa forma, a maioria das músicas eram originais e foi muito divertido fazer esse disco. Foi um empreendimento ambicioso, mas conseguimos realizar. Tem 27 músicas nesse disco. 


EM – Outra coisa que gostaria que você falasse é que, apesar de ser um músico de Chicago, você tem uma forte influência do west coast, não é verdade?
NM - Sim, tenho muito respeito pelo blues da costa oeste, pelos músicos modernos de blues. E a razão disso é que quando estava no começo dos meus 20 anos não haviam muitas bandas de jovens brancos tocando o blues tradicional de Chicago. Nessa época eu comecei a ouvir Fabulous Thunderbirds, Little Charlie & The Nightcats, William Clarke, Rod Piazza e, não foi o fato deles tocarem swing que me chamou a atenção, mas sim as versões dos clássicos do blues de Chicago. Eu me questionava por que não haviam mais bandas tocando aquele velho estilo de Chicago, especialmente caras da minha idade. Realmente parecia que naquela época eram mais músicos da Costa Oeste fazendo essa música, e essa foi uma das razões pelas quais comecei a trazer de volta esse blues aqui para Chicago. Queria ser o cara em Chicago que pudesse trazer de volta o “tradicional Chicago Blues”. Adoro o swing, o velho som do BB King, o Little Walter na sua fase mais jump blues, amo o T- Bone Walker e o Pee Wee Crayton. E haviam tantas músicas lançadas como R&B e jump feitas em Chicago por artistas como Willie Mabon e até mesmo Muddy Waters, coisas do Howling Wolf sendo lançados nesse estilo também pela Sun Records, enfim... amo todos esses estilos. O que realmente me chamou atenção foi o fato de ter muitos músicos da minha idade na Costa Oeste fazendo esse tipo de música. Eu podia ver ao vivo esse Blues tradicional de Chicago sendo tocado mais por lá do que até mesmo por aqui em Chicago. Músicas do Muddy Waters e Little Walter. Nós simplesmente não tínhamos mais essa cena por aqui. Era mais acessível ver o Rod Piazza e William Clarke quando eles vinham para tocar aqui e eles tinham muito respeito por essa música de Chicago. 

EM - Você sabe que o Brasil tem uma cena de blues com muitas bandas? Faz planos para vir pra cá. Rodrigo poderia facilitar isso. 
NM - Não tenho planos atualmente de visitar o Brasil e atualmente nem de sair da minha própria casa devido a essa pandemia. Adoraria visitar o Brasil um dia. É um país muito bonito que eu sempre quis visitar, até mesmo antes de ser músico. Um país lindo com pessoas lindas, com uma comida incrível e uma cultura incrível. Agora que tenho meu amigo Rodrigo, talvez algum dia isso possa ajudar a abrir algumas portas. Talvez esta entrevista possa ajudar a abrir algumas portas aí no Brasil, e talvez um dia, quando todos estivermos protegidos contra vírus que nos mantêm trancados em nossas casas acabar, eu possa vir a visitar esse lindo país e tocar para essas pessoas lindas.

*Essa matéria foi escrita em 01 de junho de 2020
** Em nota,  Rodrigo Mantovani diz que também não, e isso virou piada entre ambos.