Texto e fotos: Eugênio Martins Júnior
Geralmente escrevo uma introdução para cada entrevista que faço. Mas essa matéria que escrevi sobre a família Willcox para um jornal aqui de Santos está tão legal que resolvi quebrar a tradição e reproduzi-la agora.
A matéria data de 04 de março de 2006, quase 20 anos e seu título é “Música no DNA”.
Já a entrevista com Igor foi realizada em 26 de março de 2025, no lançamento do álbum Time Traveller no Sesc Santos, com Igor (bateria), Erik Escobar (teclados), Wagner Barbosa (saxofone) e Rubem Faria (contrabaixo). A produção foi da Mannish Boy Produções Artísticas.
Matéria de 2006
Uma família seguindo a mesma atividade profissional por várias gerações não é muito fácil de encontrar. Ainda mais quando essa atividade envolve dedicação e talento desde muito jovem, como a música, por exemplo.
Os músicos santistas Kika, Chico e Igor Willcox fazem parte de uma dessas famílias cuja história conta com gente dedicada à música há mais de um século.
Os três foram criados em um ambiente musical desde que nasceram e, graças a essa bagagem (ou linhagem?), musical e, claro, dedicação e trabalho, despontam hoje como grandes talentos em suas áreas de atuação: Kika é cantora e professora de canto; Chico é contrabaixista, arranjador e compositor e Igor é baterista¹.
Tudo começou com a avó, dona Adalgisa Maria Rocha Correia que, “ainda mocinha”, na década de 30, tocava piano na segunda sessão no cinema Carlos Gomes, época em que o cinema ainda era mudo.
Ela era sobrinha do pianista Francisco Pirro, mas chegou aos cinemas levada por uma tia, também pianista que a aconselhou a tocar piano nas sessões em troca de aulas de piano da professora Nina Mazagão.
Dona Adalgisa conta que também tocou nas sessões dos cinemas Seleto, Coliseu e Guarani, todos em Santos, e ainda lembra das sessões com os filmes de Tom Mix e de Charlie Chaplin com saudosismo.
Acabou abandonando a profissão depois que o namorado – que depois virou marido – não aprovava, também pela chegada do cinema falado que “colocou muito músico no olho da rua”, conta a ex-pianista, com memória invejável para os seus 91 anos de idade.
O talento passou para a filha, Sônia Rocha, que nos anos 60 já integrava uma turma da pesada que incluía Roberto Sion, Renato Loyola, Oiram Correia, Paulinho Freitas, Aleuda e Fogueira.
Formou-se em advocacia, mas ficou sem exercer a profissão por algum tempo. No começo dos anos 70 rumou para São Paulo onde, atuando como cantora, conheceu e se cazou com o maestro Paulo Cezar Willcox, pai de Kika, Chico e Igor.
O maestro foi pianista e arranjador dos discos Cigarra, de Simone e Objeto Direto, de Belchior.
Também atuou com Hermeto Pascoal, Toquinho, Vinicius de Moraes e Djavan, além de escrever arranjos para a versão brasileira dos espetáculos teatrais Hair e Jesus Cristo Superstar.
Com a morte prematura de Paulo Cezar, Sônia encerra a fase cantora e volta para Santos onde se dedicar à advocacia por completo. Atualmente ela atua no conjunto de bossa nova Canto Livre que se apresenta pela cidade esporadicamente.
A fascinante história da família Willcox continuou com os irmãos e foi no início dos anos 80 que que o talento começou a aflorar em Kika, a mais velha.
A primeira música que ela lembra de ter cantado foi a versão no cantor americano Al Jarreau para Spain, tema do tecladista Chick Corea.
“Meus pais costumavam ouvir no carro e eu comecei a assimilar aquela música”, conta a cantora que, aos 18 anos, como a maioria dos jovens, começou atuando em uma banda de pop/rock, cujo repertório incluía Pink Floyd, The Police, Gênesis e Yes até chegar à música brasileira.
Estudou piano clássico formalmente e, até encontrar o seu próprio estilo, as aulas de canto não podiam ser com outra pessoa senão a própria mãe.
Nos anos 90, passou pelo dissabor de ver as casas de shows de Santos arregarem para os ritmos da moda como o pagode mauricinho e a axé music. Escutou de muita gente que sua música não interessava.
Superou tudo isso e, juntos aos irmãos, passou a ser uma das artistas mais solicitadas de Santos, seja como convidada em discos de outros artistas, como professora de canto, cantora na noite da cidade.
No último final de semana, em pleno carnaval, aportou em um resort na ilha de Comandatuba com um combo de jazz com seu irmão Chico (baixo), Amon Rá (da Família Lima), Erik Escobar (teclado) e Cuca Teixeira (bateria).
Todas as quintas-feiras, acompanhada pelo músico Alexandre Blanc, canta no Internet Bar, no formato banquinho e violão.
Às sextas-feiras se apresenta no Retrô Bar, na Rua XV de Novembro com o Elektro Loop e aos sábados no Chop Santista com a banda Matrix².
New Samba Jazz
Sob o título “Jazz de Exportação”, na mesma página da matéria, escrevi sobre o EP recém lançado New Samba Jazz, parceria entre os irmãos Igor e Chico com o tecladista Erik Escobar. Segue a resenha.
New Samba Jazz, o CD gravado pelos irmão Chico e Igor Willcox e o tecladista Erik Escobar, me lembra o Weather Report. Trata-se de um elogio. O quinteto norte-americano é o conjunto de jazz fusion mais quente de todos os tempos.
Tanto que um dos temas gravados no EP, Prince of Darkness, é de Wayne Shorter, saxofonista e fundador do Weather.
Também compõem o CD outros seis temas jazzísticos que incluem composições de Edu Lobo (Casa Forte), Jobim e Vinicius (Água de Beber), João Donato e João Gilberto (Minha Saudade), e duas composições de Chico Willcox (Lembrança e Gente da Casa).
A gravação tem a produção do trombonista Bocato, figura carimbada nos estúdios paulistanos.
O próprio Chico vem se destacando pelas “participações especiais” e a mais famosa foi como músico arranjador e produtor musical dos standards norte-americanos cantados pela cantora Sandy na sua pequena temporada na casa de shows Bourbon Street, em São Paulo.
Outra atuação, e essa o público santista teve a oportunidade de presenciar, foi o show com a baterista Vera Figueiredo, no Bar do Sesc, quando Chico botou o recinto abaixo³. Ele toca com a baterista no programa Altas Horas há dois anos.
“Estudei jazz a minha vida inteira e acabei me mudando para São Paulo por causa do lado profissional”, conta o músico que transformou a casa da família Willcox, na capital, em um estúdio onde realiza gravações e jams.
Também atuou na Bourbon Street Jazz Band, - que tocava embaixo da escadaria que dá acesso ao mezanino da casa de show, os mais antigos lembram – e acabou de participar como arranjador e produtor do CD de Aretha Marcos, filha dos cantores Antônio Marcos e Vanuza.
Também é endoser dos instrumentos Yamaha e das cordas Groove, fazendo Workshops por todo o país.
E o Igor? “Esse aí não tem nada que o prenda”, diz a irmã Kika. Atualmente Igor mora na Alemanha, onde divulga o novo CD nas gravadoras e toca com músicos locais em Frankfurt e na Romênia, país vizinho.
Entrevista Igor Willcox
Eugênio Martins Júnior - Gostaria que falasse sobre essa viagem no tempo musical da família Willcox ao longo de quase um século. Sei que a tua avó tocava piano em apresentações de cinema mudo.
Igor Willcox – A gente tem mais gerações de músicos na família. Consigo estender isso antes da minha avó. Os registros mais recentes que nós temos são da minha avó, mas meu avô por parte de pai, o Ferreira Filho, foi maestro do Cassino da Urca. Mas tenho um tataravô que era músico. É mesmo uma viagem no tempo, como você falou. Isso atravessou gerações.
EM – E a tua mãe era cantora e teu pai maestro.
IW – Sim, meu pai era arranjador, tocava piano e vibrafone. Fez arranjos em discos emblemáticos, como o Cigarra, da cantora Simone; Objeto Direto, do Belchior, não só arranjo como ele também toca piano. Trabalhou com Nara Leão, Fátima Guedes, Gilberto Gil, Djavan, meu velho tem bastante história.
EM – Você tem contato com esses artistas? Eles falam disso contigo?
IW – Sim, principalmente quem conviveu de perto, como o Arismar (do Espírito Santo, baixista), o Sizão Machado (baixista). Minha mãe foi no show do Djavan e ele conversaram sobre meu pai. A Simone nem se fala, porque meu pai fez um trabalho muito ativo com ela. Não só os nomes principais, mas os músicos daquela geração. O engraçado que depois eu toquei com vários deles. A primeira vez que toquei com o Sizão Machado, grande baixista que tocou com Djavan, ele me falou: “Filho do Willcox?”. Eu respondi que sim. E ele: “Então você tem a obrigação de tocar bem”. (risos)
Erik Escobar
EM – E como foi a tua infância musical e dos irmãos Willcox? Quando foi que percebeu que a tua onda era tocar bateria?
IW – Segundo a minha mãe sempre fui batuqueiro. Batucava na barriga dela. Mas diferente dos meus irmãos, não fui criado pelo meu pai. Ele morreu muito cedo, eu tinha apenas nove meses. Não tenho nenhum registro de memória ou afetivo. Mas meu pai deixou todas essas gravações. Tem uma gravação com a minha mãe cantando que é incrível. Ela é uma cantora maravilhosa, foi do movimento da bossa nova aqui em Santos. Minha herança musical são as coisas que meu pai deixou, que minha mãe ouvia. Essa foi a minha influência desde moleque. Cresci em um ambiente musical ouvindo música brasileira e jazz, então a coisa foi acontecendo. Apesar de achar que escolhi sem músico já mais velho, com 15 anos. Cheguei a fazer aulas de piano, mas queria brincar, jogar bola.
Meus irmãos começaram um pouco antes de mim, mas todo mundo foi picado pela música.
EM – Ouvindo o Time Traveller percebi que o álbum dá muito espaço para a banda brilhar. A tua forma de compor e gravar é bem generosa. Gostaria que comentasse.
IW – Obrigado. Penso muito nisso. Independente de o grupo levar o meu nome, porque eu levo à frente, sou quem compõe, grava, fecha shows, mas todo o movimento é coletivo. Que é o ser músico. É o compartilhamento em cima do palco. Exercer o diálogo, a conversa, de igual para igual. E todos falam e têm a sua voz, seu momento. Para mim é importante que todos se sintam valorizados. Que tenham a liberdade da expressão musical. Que sejam quem são. Existe a preocupação estética de montar o setlist com o momento de cada um. Quando entrei no universo da composição deixei de ser... olha só que coisa louca que vou falar, deixei de ser simplesmente um baterista para ser um músico mais voltado para esse lado da composição, da coletividade. Gosto de dizer que ninguém faz nada sozinho. Se cheguei onde estou atualmente é porque devo muito a eles. Meus amigos, meus parceiros e músicos incríveis.
Wagner Barbosa e Rubem Farias
EM - Essa tua parceria com o Erik é bem antiga. Tenho aquele EP de 2006, New Samba Jazz, e você já tocavam juntos.
IW – Quando fui para São Paulo no começo dos anos 2000 tocávamos na banda Santa Maria. Nos identificamos musicalmente, vi que ele gostava dos mesmos sons que eu. Foi uma coisa natural. Ele foi morar em casa. Então essa amizade com o Erik é como se fosse uma irmandade, tem muito anos.
EM - Você grava discos de jazz com música autoral. Qual é o peso de cada escola na tua música, a bateria brasileira que é misturada com um monte de ritmos e a bateria do jazz americano que eu sei que também exerce muita influência?
IW – Tenho uma forte influência pelo jazz americano. Mas também pela música inglesa, como o Allan Holdsworth, um grande nome da música. E bateristas ingleses, adoro o Gary Husband, um cara incrível. Mas a música brasileira, apesar de não ser o som do quarteto, aquela coisa do ritmo escancarado, baião, samba, a gente acaba carregando essa influência no DNA. É aquilo que diz o Hermeto Pascoal, a gente faz música universal. Não gosto de rotular. Quando falamos a palavra fusion é o sentido dessa mistura, jazz, rock, funk, salsa, MPB. Ultimamente tenho falado que fazemos brazilian fusion (risos).
EM – Conta a história do Time Traveller, que eu vejo como um disco conceitual, porque tem os temas interligados.
IW – Sim, entrei nessa viagem. Quando comecei algumas composições foram acontecendo naturalmente. Sempre achei que quando você coloca o nome em uma música ele precisa ter conexão com aquele acontecimento. Aí criei essa história do viajante no tempo. E nossa música viaja no tempo, porque temos influências de décadas passadas, Weather Report, Miles Davis, assim como músicos atuais, como Joshua Redman ou Donny McCaslin. A viagem no tempo tem a ver com isso. Músicas com o (órgão) Fender Rhodes, que tem um som muito característico. O Eric usa muito sintetizador, o Wagner tem linguagem e abordagem modernas. Então a viagem no tempo, quando compus criei uma história. E começa com uma música emblemática, a Heroes of Persistence, porque na música instrumental a gente tem que ralar muito para fazer a coisa acontecer.
EM – Entre aquele EP com o Chico Willcox e com o Erik Escobar, gravado em 2005, o #1 e o Time Traveller se passou muito tempo entre ambos. Sei que é custoso o artista bancar a própria arte. Isso desanima? Quer dizer, gravar, gastar, para depois recuperar com um show novo? Ou faz parte do jogo?
IW – Antigamente era tudo mais difícil. Temos que agradecer o avanço tecnológico, a possibilidade de ter coisas que antigamente eram muito distantes. Antes gastávamos uma grana violenta para gravar em bons estúdios. Imagina um artista independente que não sabia se iria fazer show, não sabia se conseguiria monetizar aquilo de alguma forma. Gravei o disco #1, e lancei em 2017. E agora lancei o Time Traveller, um salto temporal de disco de estúdio. Mas no decorrer desse tempo lancei discos ao vivo. Num dos lugares que a gente tocou no Canadá, o show foi gravado e acabou virando um disco. Em 2022 fomos para a Europa, em um festival de jazz na Bulgária, e o show também foi gravado e televisionado. Perguntei se poderia ter acesso a essa gravação e eles me cederam os áudios. O que aconteceu foi o lançamento de discos ao vivo, o que adiou o lançamento do Time Traveller. Lancei alguns singles na pandemia e o engraçado que alguns seguidores no meio do jazz, um site especializado, fizeram a uma resenha desse disco ao vivo na Bulgária, mas ao mesmo tempo cobrando um disco de estúdio. As coisas foram acontecendo.
EM – Costumo dizer que a cabeça de quem trabalha com arte nunca para. Está sempre com um projeto por fazer.
IW – A gente sempre quer ver o resultado de um projeto. E porque agrega na nossa vida. O músico é o cara que atua em vários lugares diferentes para poder viver daquilo. Grava, dá aula, toca, faz o próprio marketing. Mas independente do que aconteça eu já falei para mim mesmo que vou escrever minha história e realizar meus desejos musicais. Sempre fiz isso independente do resultado.
EM – Gostaria que falasse sobre essa banda atual.
IW – O baixista do quarteto é o Ricardinho Paraiso, que gravou o disco, um grande músico. Por uma questão de conflito de agenda não conseguiu vir hoje. Mas nem achei ruim porque tem outro baixista incrível, que inclusive participou de algumas faixas do #1, o Rubem Farias. São pessoas cuja identificação é pessoal. Tocar bem você já espera de qualquer músico. Não é diferencial. O que eu espero é que tenham caráter, que tenham um bom convívio, que pensem no coletivo. Que deixem o ego em casa e venham para fazer música. Para compartilhar. Com isso fica tudo mais fácil
1 – Lembrando que a matéria foi escrita há quase 20 anos. Hoje todos já estão com suas carreiras consolidadas e Igor também desenvolve as atividades de composição a arranjo.
2 – Tanto o Internet Bar quanto o Retrô não existem mais.
3 – Por coincidência, o mesmo lugar onde aconteceu o show de lançamento de Time Traveller, onde foi realizada a presente entrevista.
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