sexta-feira, 26 de julho de 2024

Com apenas 58 anos, morre em Bamako, no Mali, Toumani Diabaté

 

Toumani Diabaté (Foto: Richard Saker/The Observer)

“Eles podem seqüestrar as pessoas, podem tirar suas roupas, podem tirar seus sapatos, podem tirar seus nomes e dar outro nome, mas a única coisa que eles não podem tirar é sua cultura”. Essas são palavras de Toumani Diabaté sobre o sequestro de seu povo pelos europeus com fins escravagistas.  
Diabaté, músico e representante da tradição dos contadores de história de seu país, morreu com apenas 58 anos, em 19 de julho em Bamako, capital do Mali. Dizem que quando um jali morre toda uma biblioteca é queimada. 
Na África, jali é o guardião da história oral transmitida de geração em geração. Diabaté vem de uma tradição de 71 gerações de griots e tocadores do corá, um instrumento de cordas semelhante à harpa.
Com Salif Keita e Ali Farka Toure, Diabaté era considerado um dos principais guardiões da cultura milenar transmitida de pai para filho na África Ocidental.
Desde os anos 80 Diabaté vem gravando e difundindo suas histórias em discos na África e Europa. Ouça os álbuns Songhai vol. 1 e 2. 
Nos Estados Unidos gravou com o cantor, compositor e muilti-instrumentista Taj Mahal, fazendo a ponte cultural entre a tradição dos jalis com os history tellers do blues no álbum Kulanjan (1999). 
Na série Blues, produzida por Martin Scorsese, Diabanté aparece no episódio Feel Like Going Home – que também tem Taj Mahal - sendo entrevistado por Corey Harris, outro bluesman e pesquisador de ritmos. 
Com seu conterrâneo, Ali Farka Touré, gravou o maravilhoso In The Heart of the Moon (2005). Há ainda espaço para uma recomendação, mais um disco que faz a ponte entre África e América e que vale a pena ser ouvido, Talking Timbuktu, parceria entre Touré e Ry Cooder.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Em uma semana o mundo da música sofre três grandes perdas: Happy Traum (17/07/24), Jerry Miller (20/07/24) e John Mayall (22/07/24).

 

John Mayall (Foto: André Velozo)

Happy Traum atuou na ascensão do folk nos anos 60, sendo contemporâneo de Bob Dylan no Café Wha?, onde sua banda, a New World Singers, muitas vezes cedeu espaço para o jovem Dylan. Inclusive a primeira versão de Blowin’ in the Wind foi gravada pelo grupo.
Traum também chegou a gravar com Dylan duas faixas que entraram no álbum duplo Bob Dylan’s Greatest Hits Vol. II (1971), o disco mais vendido do bardo do Village. São I Shall Be Released e You Ain’t Goin’ Nowhere, nas quais Traum encara o contrabaixo pela primeira vez em sua vida. 
Com seu irmão Artie formou uma dupla que gravou alguns discos antes de cair na carreira solo. Foi estudioso do blues, cuja maior influência veio de Brownie McGhee. Gravou bons discos, o bem puxado para o blues, Relax Your Mind (1975), (American Stranger (1977), entre outros.
O compositor, cantor e guitarrista Jerry Miller ficou conhecido por ser um dos membros fundadores da banda Moby Grape, banda fundada na efervescência de São Francisco nos anos 60. E, claro, influenciada pelo blues e pelo psicodelismo da época. Ladeado por outros dois guitarristas, Peter Lewis (ex. Peter and the Wolfes) e Alexander “Skip” Spence, Miller foi o responsável pelos grandes arranjos apresentados pela Moby Grape. Fundou ainda o The Rhythm Dukes, participando de festivais e sendo aclamado como um dos grandes guitarristas da cena, não só por publicações como a Rolling Stone, mas também pelos seus pares, inclusive Eric Clapton, que o chamava de melhor guitarrista do mundo. Chegou a dividir palco com Jimi Hendrix.       
A outra enorme perda foi a do multi-instrumentista, cantor e compositor britânico, John Mayall, morto aos 90 anos.
Fundador dos Bluesbreakers, Mayall abriu as portas para inúmeros artistas importantes para o blues e blues rock britânicos, entre eles, Eric Clapton, Peter Green e Mick Taylor. 
Clapton se tornou um dos grandes nomes da guitarra de todos os tempos; Peter Green participou do Fleetwood Mac até lançar-se em uma carreira solo errática por uso e abuso de drogas, para depois constituir o Splinter Group; e Mick Taylor, nada menos do que o jovem que provocou ciúmes em Keith Richards, quando este sentiu que  seu reinado nas seis cordas nos Rolling Stones estava ameaçado com a chegada do garoto. Mick Taylor injetou uma boa dose de blues aos álbuns dos Stones da época. É só conferir Sticky Fingers (1971) e o grandioso Exile on Main Street (1972), que você vai entender o que estou falando. Mas essas são outras histórias.
Mayall tinha a capacidade de aglutinar grandes artistas engajados em sua causa: fazer música inspirada na tradição do blues. Tanto que em todos os seus discos lemos e ouvimos muitos temas reverenciando bluesmen tradicionais. 
Certa vez, conversando com Nuno Mindelis eu chamei Mayall de bluesman e o Nuno logo me corrigiu: “Eu não considero o John Mayall um bluesman. O considero mais um bluesófilo”. Ok Nuno. O fato que ao longo de seis décadas o “bluesófilo” John Mayall andou por aí tocando em festivais pelo mundo, juntando Walter Trout, Coco Montoya, Buddy Whittington, Joe Yuele, Tom Canning, Hank Van Sickle, nos modernos Bluesbreakers e gravando com Buddy Guy, Mavis Staples, Otis Spann, Champion Jack Dupree, Curtis Jones e espalhando simpatia por onde passava. 
Inclusive Aqui no Brasil, onde sua última aparição foi no Rio das Ostras Jazz e Blues Festival, em 2010. Após o show John foi para a barraquinha de CDs e ele próprio vendeu seus discos e autografou para o público.
São tantos discos bons gravados por John Mayall que fica difícil indicar algum. Portanto, parto para o gosto pessoal: Bluesbreakers with Eric Clapton (1966), esse álbum entra em todas as listas dos melhores do blues; o ao vivo The Turning Point (1969), no qual Mayall mostra toda a sua habilidade como gaitista; Wake Up Call (1993), com duas parcerias matadoras, Buddy Guy em I Could Cry e Mavis Staples na faixa título e marcando sua entrada na Silvertone e o lançamento de grandes discos; Blues for the Lost Days (1997), com várias homenagens conforme já dito; e Stories (2002), cuja resenha encontra-se nesse blog: (https://mannishblog.blogspot.com/search/label/Meus%20Discos).

Leia também a entrevista exclusiva com Coco Montoya: (https://mannishblog.blogspot.com/2009/09/por-duas-vezes-coco-montoya-estava-na.html)

Ontem a sua página no Facebook continha a seguinte mensagem: “É com pesar que recebemos a notícia de que John Mayall faleceu pacificamente em sua casa na Califórnia ontem, 22 de julho de 2024, cercado por uma família amorosa. Os problemas de saúde que forçaram John a encerrar sua épica carreira em turnês finalmente levaram à paz para um dos maiores guerreiros da estrada do mundo. John Mayall nos deu noventa anos de esforços incansáveis para educar, inspirar e entreter.
Em uma entrevista de 2014 ao The Guardian, John refletiu: “[blues] é sobre – e sempre foi sobre – aquela honestidade crua com a qual [expressa] nossas experiências de vida, algo que tudo se junta nesta música, nas palavras também. Algo que está conectado a nós, comum às nossas experiências.” Essa honestidade, conexão, comunidade e forma de tocar crua dele continuarão a afetar a música e a cultura que vivenciamos hoje e nas gerações vindouras.
Nomeado OBE (Oficial do Império Britânico), artista duas vezes indicado ao Grammy e recentemente nomeado para o Hall da Fama do Rock & Roll, John deixa seus 6 filhos, Gaz, Jason, Red, Ben, Zak e Samson, 7 netos e 4 bisnetos. Ele também está cercado de amor por suas esposas anteriores, Pamela e Maggie, por sua dedicada secretária, Jane, e por seus amigos íntimos. Nós, a família Mayall, não podemos agradecer o suficiente a seus fãs e à longa lista de membros da banda pelo apoio e amor que fomos abençoados por experimentar de segunda mão nas últimas seis décadas.
John encerrou a mesma entrevista do Guardian refletindo mais sobre o blues: “Para ser honesto, não acho que alguém saiba exatamente o que é. Eu simplesmente não consigo parar de tocar.” Continue tocando blues em algum lugar, John. Nós te amamos.

Leia o que amigos e admiradores escreveram sobre John Mayall nas redes sociais: 
  
“É muito triste saber do falecimento de John Mayall. Ele foi um grande pioneiro do blues britânico e tinha um olhar maravilhoso para jovens músicos talentosos, incluindo Mick Taylor – que ele me recomendou depois da morte de Brian Jones – inaugurando uma nova era para os Stones”. Mick Jagger

Muito triste ouvir a notícia hoje sobre o falecimento de John Mayall. Sua música, suas bandas, seus guitarristas e seu legado foram extremamente influentes no mundo do blues. Ele inspirou inúmeros jovens músicos, incluindo um certo guitarrista adolescente de Chicago que ouvia seus primeiros álbuns por horas intermináveis. Vi John pela primeira vez durante uma turnê de reencontro do Bluesbreakers com Mick Taylor e John McVie no início dos anos 80 no Park West Chicago. Toquei em um projeto conjunto com ele no The Channel em Boston no final dos anos 80 (como membro da banda de Son Seals) e o vi pela última vez no Evanston SPACE há apenas alguns anos, onde ele gentilmente concordou em ser entrevistado no meu podcast. Obrigado John e que o Padrinho do Blues Britânico fique tranquilo. Dave Specter

Lembrando John Mayall. Fizemos turnês juntos muitas vezes e por mais que ele fosse um músico lendário, ele também era um homem gentil e gracioso e sua falta será sentida. Shemekia Copeland

Cara, acabei de descobrir que meu amigo e mentor John Mayall faleceu... o fim de uma era. Todo o cenário do rock and roll e da música hoje seria completamente diferente sem John. Obrigado John por tudo que você nos deu! Grande amor e boa viagem! Debbie Davis

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Discharge - 21/06/2024 - Carioca Clube SP

O show que aconteceria em dezembro de 2023 e foi adiado finalmente rolou em junho de 2024. Com três bandas na abertura, Manger Cadavre, Havok e Midnight, o Discharge mostrou por que é considerada uma das bundas punks inglesas mais furiosas e respeitadas na cena com The Exploited, UK Subs e GBH. Sua batida influenciou todas as bandas de hadcore e crossover que vieram depois.












 

sábado, 29 de junho de 2024

Santos Jazz Festival divulgou a programação de 2024

 
Alaíde Costa (Foto: Murilo Alves)

O Santos Jazz Festival divulgou a pogramação da sua 12ª edição na quinta-feira, dia 27 com uma grande jam que reuniu artistas de Santos.
Entre eles, dois guitarristas que estarão na edição, o santista Mauro Hector, lançando o álbum Keep On e o grande Cláudio Celso, de volta ao Brasil após uma prolífica temporada nos Estados Unidos, terra do jazz. 
A abertura será um concerto com a Orquestra Sinfônica Municipal de Santos que reunirá gerações de artistas, Alaíde Costa, 88 anos, a grande dama da bossa nova, que acaba de ser premiada em Cannes, e dois jovens talentosos músicos da atualidade: o baiano Tiganá Santana e a santista Monna. A abertura será na quinta-feira, dia 25 de julho, no teatro do Sesc Santos, a partir das 19h. Os ingressos gratuitos devem ser retirados no dia, a partir das 10h da manhã na bilheteria do Sesc.
Entre os dias 26 e 28 de julho, o palco principal, no Centro Histórico de Santos, receberá 15 shows: BNegão, Tássia Reis e Thalma Freitas, que está comemorando 50 anos e fará uma participação especial no festival - abrindo espaço a diversos artistas locais e reverenciando a obra de gigantes da música: como Johnny Alf, Mercedes Sosa, o movimento Buena Vista Social Club, Chico Buarque, Tim Maia e Dorival Caymmi. Além disso a VDJ Jô Discolada promete aquecer os intervalos e colocar todo mundo pra dançar. Por falar em dançar, o encerramento terá o show de comemoração dos 25 anos de carreira do Clube do Balanço.  
“Todo nosso line-up dialoga com a diversidade e a democratização da arte. Neste ano temos a honra de poder trazer ao palco a imensa Alaíde Costa, que está recebendo nos últimos tempos a reparação histórica pelo protagonismo na bossa nova e tudo que representa pra música popular brasileira. Outra homenagem que muito nos toca nesta edição é a Johnny Alf, que assim como Alaíde sofreu veladamente todo tipo de preconceito e que terá um tributo especial. E não posso deixar de citar a resistência da música latino-americana, que vamos reverenciar com apresentações dedicadas a dois símbolos: Mercedes Sosa e o Buena Vista Social Club”, destaca Jamir Lopes, curador e diretor que assina a produção do festival.
O festival contará com infraestrutura para oferecer uma experiência de conforto, segurança e qualidade ao público. O projeto contempla palco com os melhores recursos audiovisuais, área coberta, sanitários público e coleta seletiva de resíduos.
A praça de alimentação terá opções variadas salgadas e doces de gastronomia, inclusive com alternativa vegana, além de bar com água, vinho, refrigerante, drinks e o chopp Estiva.

Cláudio Celso (Foto: Eugênio Martins Jr)

Segue a programação:

25/07 - quinta-feira, às 19 horas no Teatro do Teatro do Sesc 
Abertura oficial: Orquestra Sinfônica Municipal de Santos convida Alaíde Costa, Tiganá Santana &Monna em homenagem à obra de Milton Nascimento. 
O Sesc fica na Rua Conselheiro Ribas, 136 - Aparecida.

26/07 - sexta-feira no Arcos do Valongo (Centro Histórico)
18h VDJ Jô Discolada
19h Mauro Hector Trio - Lançamento do novo álbum “Keepon” 
20h30 Choro de Bolso & Conrado Pouza – 80 anos de Chico Buarque 
22h GENIALF – Vitor Cabral Quinteto & Thalma Freitas 
23h30 BLACK MANTRA & B NEGÃO – Show Tim Maia Racional
01h00 DJ Discolada

27/07 - sábado no Arcos do Valongo
14h VDJ Jô Discolada
15h ZuzoMoussawer Quarteto – Show Canais Musicais 
16h30 Cleyton Menezes & Banda – Show “Multiplicidades Brasileiras” 
18h Quimbará – Toca Buena Vista Social Club
20h Indiana Nomma – Tributo à Mercedes Sosa – A voz dos sem voz 
22h Ubiratan Marques Sexteto (BAHIA)
23h30 TÁSSIA REIS& Banda 
01h00 DJ Jô Discolada 

28/07 - domingo no Arcos do Valongo
14h VDJ Jô Discolada
14h30 Camerata de Violões do Projeto Guri de Santos
15h30 Felipe Romano, Heitor Valin& Convidados 
16h30 CLÁUDIO CELSO Trio 
17h30 Adriano Grinenberg – Ode a Dorival Caymmi
19h Clube do Balanço – celebração dos 25 anos de carreira 

Programação paralela:
Bazar de Economia Criativa: Villarejo Art – com cerca de 30 expositores
Local: Arcos do Valongo – Centro Histórico
26/07/2024 - sexta-feira, das 18h às 02h
27/07/2024 – sábado, das 14h às 02h
28/07/2024 – domingo, das 14h às 21h

domingo, 9 de junho de 2024

Romero Lubambo e Chico Pinheiro - 05/06/2024 - Sesc Santos

Não é todo dia que podemos ver um show dessa importância, Romero Lubambo e Chico Pinheiro juntos. Ambos moram fora do Brasil e poucas serão as chances de vê-los juntos de novo por aqui. Em pouco mais de uma hora, a plateia do Sesc Santos ouviu as músicas do álbum Two Brothers, gravado por ambos em 2023. No repertório, a maravilhosa e desafiadora Aquele Um, a jobiniana Red Blouse, Morro Dois Irmãos e outras pérolas. Os registros são de Eugênio Martins Jr.











sábado, 8 de junho de 2024

Pekka Pylkkänen - 31/05/2024 - Sesc Santos

Só mesmo o circuito Sesc tem bala para trazer ao Brasil e sustentar turnês de jazzistas desconhecidos nossos, como Claire Michael, Marc Perrenoud, Donny McCaslin e agora o Pekka Pylkkänen e sua banda. As oportunidades de ver esses caras são raras. Mas acontecem. O teatrão do Sesc é um patrimônio santista. Metros quadrados sagrados que já receberam artistas de todas as vertentes musicais. O que você puder imaginar. O Mannish Blog faz shows ali há 20 anos. Mas nesse dia fomos para ver e ouvir. As fotos são da Dayse Marchiori. 













terça-feira, 4 de junho de 2024

Choro de Bolso completa 25 anos

 

Choro de Bolso na Rua XV de Novembro, Centro Histórico de Santos

Sinto um pouco de dificuldade de escrever sobre o Choro de Bolso aqui. Além de amigos queridos, nós trabalhamos juntos sempre que possível. Portanto, já entrego logo: há conflito de interesse aqui. Jornalismo sem isenção.   
Em 2024 Débora Gozolli e marcos Canduta completam 25 anos tocando juntos e sem interrupção. O primeiro show foi no Sesc Bertioga, em 1999. A conexão foi imediata e nunca mais pararam. 
O nome Choro de Bolso surgiu cinco anos mais tarde, quando começaram a tocar na Livraria Realejo, onde estão até hoje. Toda sexta-feira eles abrem oficialmente o final de semana em Santos, com cerveja da boa e cachaça amarelinha. 
De lá para cá, amadureceram como músicos e como pessoas. Alcançaram um estágio de companheirismo e respeito mutuo que transcende o fazer musical. 
Débora apresentou Canduta ao Choro. Ele a iniciou no jazz. 
Viajaram muito, gravaram discos, fizeram vídeos, viraram uma “entidade”.
Em algumas ocasiões podem ser vistos e ouvidos ao lado de outros grandes músicos, além de amigos, da Baixada Santista.  
Tocar juntos por 25 anos não é fácil. Os atritos são muitos. Mas como diz o próprio Canduta: “Lembrem-se, a prata quanto mais polida, mais brilhante”.
Choro de Bolso lançou Os Choros e Canções Que a Gente Mesmo Faz (com Julinho Bittencourt, em 2014) e Entidade (2017). E Marcos Canduta gravou Canções de Amor Caiçara (2019) com o poeta Manoel Herzog.

Choro de Bolso, Digo Maransaldi e Fabiano Guedes, no Carioca Café, Centro de Santos

Eugênio Martins Júnior – Como nasceu o Choro de Bolso?
Marcos Canduta – Eu tocava com o (José) Simonian e a Débora tinha sido aluna dele. Quando ele lançou o primeiro CD no Sesc Paulista, o Ouvi do Brasileiro, montou um quarteto de flautas para fazer uma participação especial e a Débora estava nele. Na verdade, o encontro foi nos ensaios da Companhia Instrumental, essa banda grande que o Zé tinha. Mas no dia do show de São Paulo ela voltou comigo para Santos e surgiu a idéia de fazer alguma coisa. Tínhamos a idéia de misturar choro com música barroca, a maior loucura. Ou fazer um grupo de serenata, enfim. Montamos primeiro um trio com o irmão dela. 

Débora Gozzoli – Eu não tinha a menor experiência em tocar em grupo. Tocava só na escola. Mas tocar na rua, na noite, show nada. Só em participações especiais. 

MC – Eu já tocava na noite de Santos desde sempre. Então o nome do trio ficou Trio Chorata por causa da idéia de tocar Bach e choro. Mas logo depois fizemos o duo. Eu era da turma do jazz e Débora tinha uma vivência em choro. Acabei conhecendo o choro através dela. Assim como mostrei um monte de coisas de jazz para ela, de Beatles. O primeiro show que fizemos juntos foi no Sesc Bertioga. Depois tocamos num bar chamado Almanaque.

DG – Não rolava muita grana, mas foi legal porque foi ali que comecei a montar um repertório. 

MC - Com o Trio Chorata fizemos até serenata em aeroporto. Mas investimos no duo e cinco anos depois do Sesc Bertioga começamos na calçada de uma livraria e estamos até hoje.    

EM – Isso eu já ia perguntar. Vocês tocam há 20 anos numa calçada aqui em Santos. Ao mesmo tempo que ficam perto do publico recebendo o carinho, também está sujeito às intempéries do local. E também já ouvi gente desdenhando desse trabalho pelo simples fato de se estar tocando numa calçada. Gostaria que falassem sobre essa experiência.
DG – Gosto muito de tocar lá. É um grande laboratório de testes. Temos muita música, muita partitura. Muitas eu sei de cor. 

MC – Todas as músicas que compus nós estreamos na calçada. O nosso repertório, que hoje é gigantesco, foi testado e montado lá.

Choro de Bolso, Digo Maransaldi e Fabiano Guedes, no Carioca Café, Centro de Santos

EM – E o lance de tocar na rua? Quer dizer, não é um ambiente controlado. Tudo pode acontecer. 
DG – Teve um dia que um cara começou a nos afrontar? Eu me levantei e fui tocando na direção dele.

MC – Sim. A gente estava tocando e ele passou falando que aquilo não era música de rua, que a gente recebia e que estava tirando lugar de quem era músico de rua. E gritava. Aí a Débora levantou e começou a encarar o cara. Eu já estava levantando quando uma pessoa da platéia tirou o indivíduo de perto. Mas lá não começamos na rua. Tocamos dentro da livraria durante três anos. Um dia aconteceu um lançamento de livro e surgiu a idéia de tocar na calçada. 

DG – Quando tocávamos dentro as pessoas não chegavam porque achavam que deveriam comprar livros ou consumir alguma coisa. A partir do momento que fomos para a rua a coisa explodiu. Ultimamente um morador do prédio em frente atirou feijões na gente. É um cara que está morando lá há pouco tempo, mas a gente está lá há 20 anos.          

MC – Sim. Tem um pessoal que já vai para nos ver. Fizemos muitos amigos. Já dei aula para criança que chegou lá na barriga da mãe e depois, aos dez, doze anos, passou a ser meu aluno. E quem desdenha é quem queria estar ali. Um dos pontos mais nobres da cidade, coração do Gonzaga (bairro comercial de Santos perto da praia). Um monte de gente sai do trabalho e para ali. 

EM - O trabalho Os Choros, Sambas e Canções que a Gente Mesmo Faz, de 2015, tem temas como a miscigenação, racismo, violência contra a mulher, etc. É quase um disco de samba protesto. As letras foram compostas pelo Julinho Bittencourt. É um disco gravado antes da hecatombe política a qual sobrevivemos.
MC – As músicas começaram ser compostas em 2013. Esse disco também é fruto de tocar na livraria. O Julinho trabalhava em Brasília, mas quando voltou para Santos passou a freqüentar. Certo dia, tocamos um choro que eu havia feito em homenagem ao Jacob (do Bandolim), que se chamava Outras Noites. Toquei com o Julinho por quarenta anos e a nunca havíamos feito música juntos. Digo parceria de composição. Então ele ouviu o choro e perguntou se podia colocar uma letra. Ficou bom demais e não paramos mais. Fizemos um show só com músicas autorais. Quando abriu o FACULT¹ nós escrevemos o projeto de um álbum completo e passamos no primeiro lugar. O lançamento foi no Teatro Guarany. Nesse disco tem um choro chamado Escadaria, um dos mais difíceis que já fiz, e que ele também colocou letra.
E tem uma música que é assim: “Patroa diz que cabelo ruim não pode/Mas qual cabelo é bom e qual cabelo pode?/ Patroa diz que cabelo ruim não pode/ Mas qual cabelo bom que pode e não sacode?”; que é em cima de uma notícia de jornal da época. Uma professora que foi impedida de dar aula porque ela usava o cabelo solto. 


   

EM - Para mim o Entidade é um disco que se pode escutar em qualquer ocasião. Cozinhando, bebendo cerveja, trabalhando em casa ou até só relaxando, ouvindo música. Ouço muito em casa. Fale sobre ele.
MC – Esse disco foi interessante. Essa época a gente vivia na estrada e as pessoas perguntavam se tínhamos disco para vender. Quando a gente mostrava e falava que era cantado ninguém queria. Queriam o que a gente havia acabado de tocar, música instrumental. Mas gosto dessa coisa misturada, instrumental com cantado. O Entidade tem 15 músicas e 10 são instrumentais.
E então eu já estava com um monte música. Faço música todos os dias. Se No Samba Choros e Canções temos um monte de gente legal, aqui de Santos, o Rogério Duarte, o Edinho (Schmidt) o JR (que agora é Mano Jota) no Entidade a gente conseguiu um pessoal que têm carreira internacional.  O André Mehmari no piano em uma faixa e o Siqueira Lima em outra. O Aleh Ferreira tocando em três faixas; Mateus Sartori cantando em uma e o Lincoln Antonio tocando sanfona. 
Somos fãs do Mehmari há muito tempo. Íamos a muitos shows dele. Num desses fomos conversar com ele e nos tornamos conhecidos. Um dia que ele veio tocar aqui em Santos e eu disse que a gente ia gravar um disco e gostaria que ele tocasse piano em uma faixa. Ele concordou na hora. Aí eu disse que não tinha verba e que íamos pagar com pão². (risos) 
Naquele ano a grana do edital demorou uma eternidade. Quando finalmente saiu o dinheiro, mandei uma música e ele curtiu. Gravamos as bases e ele gravou duas versões em seu estúdio caseiro e me mandou de volta. Mas quando a gente ouviu resolvemos regravar a nossa parte em cima do que ele havia feito. 

EM – E o Duo Siqueira Lima, como foi?
MC – O Siqueira Lima tem uma história interessante. Estávamos tocando em São Paulo e depois do almoço fomos tomar um café na Av. Paulista, em frente ao MASP. Estamos no café e cutuco a Débora e falo: “Ali tem um duo e meio de violão dos mais ferrados do Brasil”. Estavam o Siqueira Lima e o João Luiz, que forma o Brazilian Guitar Duo, com o Douglas Lora. Não nos conhecíamos, mas pedimos para tirar uma foto com eles. Um ano depois pintou o primeiro e único festival de violão de Serra Negra. Era num hotel legal e a gente foi. Era um fim de semana de final de Libertadores, Santos e Peñarol. Quando chegamos demos de cara com o Siqueira Lima. E a Cecília torce para o Peñarol. Aí rolou aquela brincadeira e tal. A partir daí nos esbarramos várias vezes até que veio o convite. 

DG – Mas aí entra a Débora. A música que foi gravada não ia entrar no disco. E era uma das músicas que eu mais gostava. 

MC – É que mandei duas músicas. Um baião e uma valsa. Mas eles entraram numa turnê européia que ia durar um mês e ficaram três. Atrasamos o disco inteiro para esperá-los. E se o André gravou no estúdio dele, o Siqueira Lima gravou ao vivo com a gente. E aí foi foda. Sou fã deles. Antes de conhecê-los já tinha disco, etc. Quando começamos tocar eu nem olhava para o lado. Estava com dois monstros ali. O Fernando escreveu um arranjo lindo. Cada dedo começou a pesar quinhentos quilos. Foi um dia lindo. Depois saímos para almoçar. Essa é a história.                           

EM – Como nasceu o álbum Entidade?  
MC – Fazíamos um curso de arranjo e regência com o mastro da Orquestra Sinfônica de Santos, o Luís Gustavo Petri (Guga). Um dia não pude ir ao curso e quando a Débora chegou o Guga perguntou: “Ué, cadê a entidade? É que vocês dois são uma entidade, né?”. Falei: “opa, isso dá música”. Fiz a primeira parte da música e mandei para ela fazer a segunda parte. Mas ela acabou não fazendo e fiz a segunda parte também E pouco antes de gravar fiz uma introdução meio louca, remetendo à Espanha.  

EM – O álbum Canções de Amor Caiçara, não é do Choro de Bolso, é uma parceria sua, Canduta, com o escritor Manoel Herzog, mas teve um dedo da Débora também. Fale sobre esse trabalho. 
MC – A parceria com o Herzog também começou na livraria de Santos. Quando completei um ano tocando na porta dessa livraria compus um choro sobre isso. O Herzog ouviu e perguntou se podia colocar letra. Eu disse sim e a partir daí a gente começou a fazer música com certa freqüência. Canções de Amor Caiçara surge como? 

DG – É que a cidade é extremamente musical. Ela tem pontos interessantes. Tem história. A cidade de Santos é muito interessante. Então a gente estava andando na praia e falei que poderíamos fazer um disco instrumental sob alguns pontos da cidade. Tem os canais, que são históricos, tem as garças, a Vila Belmiro, os Morros, o Engenho dos Erasmos. Essa levou dez anos para crescer.  

MC – Mas no meio do caminho pensei outra coisa. Isso não poderia ser um disco de música instrumental, tinha de ser cantado”. Aí veio a ideia inteira na minha cabeça: “O cara mora aqui em Santos, trabalha em São Paulo. Ele conhece a mina no ônibus e o romance acontece.” Quando contei essa história para o Herzog os olhos do cara pularam para fora. A primeira a ser composta foi Descendo a Serra, que é quando o cara conhece a mina. 

EM - E como foram as participações do Zeca Baleiro e Chico Buarque em Descendo a Serra e Futebol na Praia, respectivamente?
MC – As quatro participações especiais, o Zeca, o Chico, o Carlos Careqa e o Alberto Salgado foram por causa do Herzog. Ele estava falando por e-mail com o Chico, que havia lido e adorado seus livros. Eles tinham esse contato. O Chico até chegou a gravar um vídeo elogiando os livros do Herzog. E o Zeca a mesma coisa. Então falei para o Herzog chamá-los para participar. De cara o Herzog hesitou, mas no fim chamou e eles toparam. 

EM - Ambos os trabalhos foram produzidos com recursos públicos oriundos do Fundo de Assistência à Cultura de Santos (FACULT). Poderiam falar sobre a cidade ter essa possibilidade? Digo, sobre essas e outras leis de fomento à cultura. 
MC – Veja, é muito importante. Estamos agora entrando em um estúdio para gravar um quarto álbum com o Julinho Bittencourt. O disco vais se chamar Pão de Cará. E também é FACULT. Na verdade é quase impossível você pensar em arte regional sem políticas públicas. Isso é de agora? Não, isso vem desde Johann Sebastian Bach, que era bancado por mecenas daquela época. Como fazer grandes festivais de cinema, música, teatro sem políticas públicas, sejam elas incentivadas ou não? Você não faz. E olha que o nosso Facult é genial, mas a verba é pequena. Por isso envolveu toda uma camaradagem, Siqueira Lima, André Mehmari, Chico Buarque, Zeca Baleiro que nunca cobraram nada. O Pão de Cará vai ter uma maior parte cantada e outra menos instrumental. Ainda quero fazer um disco esse ano só instrumental. Eu e Débora.   

EM – Também gostaria de falar um pouco de política cultural no macro, em âmbito federal. Como analisam os quatro anos de governo Bolsonaro e com vêem hoje?
MC – Virou uma chave, né? Chegamos a ter um secretário de cultura, que na época nem tinha status de ministro, um nazista, como era o nome?

EM – Sim, Roberto Alvim.

MC – Isso, agora não mais. Sobrevivemos seis anos de terror. Agora está bem interessante. Começaram a pipocar trabalhos e editais que não existiam. Mas, também é assim... vamos ver.

EM – Estamos cada vez mais vendo mulheres instrumentistas no palco. Gostaria que a Débora comentasse.  
DG – Sim, geralmente as mulheres estão somente atrás do microfone, cantando. Eu sinto falta. Vimos há pouco tempo um show da Luísa Mitre em que a maioria era de mulheres nos instrumentos, uma pianista, uma vibrafonista, uma flautista, um baixista e um baterista. Entendo quando as mulheres questionam os festivais com poucas mulheres no line up. Para os homens é difícil entender certos questionamentos porque sempre estiveram no papel de protagonistas.