sexta-feira, 29 de junho de 2018

Vanessa Collier é o futuro do blues


Recentemente, em uma entrevista ao Chicago Defender, publicada em dia 20 de junho de 2018, James Yancy Jones, conhecido como Tail Dragger, afirmou que os jovens negros não se interessam mais pelos blues e que se não fossem os jovens brancos o gênero centenário criado pelos afro-americanos no sul dos Estados Unidos já estaria morto.
Uma declaração e tanto, que só não foi foi contestada, ainda, porque saiu da boca de um dos grandes do Chicago sound.
Tail Dragger, cantor de 77 anos, é considerado um dos últimos remanescentes dessa tradição secular, atuou com Howlin’ Wolf, o próprio blues.
Vanessa Collier é uma jovem que teve o contato com a música desde cedo. Graduada na Berklee College, a prestigiosa escola de música em Boston, enveredou pelo blues e seus derivados ainda na escola e nunca mais parou.
Em dois discos gravados, Heart Soul Saxophone e Meeting My Shadow, Vanessa mostra que veio para deixar sua marca. Ainda é cedo dizer se essa menina elogiada por Buddy Guy vai permancer na história.
Entre as certezas, a de que é  compositora de mão cheia, grande instrumentista – é saxofonista -  e tem uma bela voz.
Indicada a algumas premiações, entre elas Blues Music Awards, creditadas aos seus dois trabalhos que possuem variedade de estilos, reflexo do tempo passado com o eclético Joe Louis Walker, Vanessa talvez seja o melhor exemplo da afirmação de Dragger.
Recentemente, em uma parceria com Fred Sunwalk e a banda Dog Brothers, esteve no Brasil para alguns shows: 26 e 27 de maio, festival de Paraty; 29 de maio, Vila Dionísio (Ribeirão Preto) e 30 de maio, Bourbon Street (São Paulo). 

Texto: Eugênio Martins Júnior
Foto: Vanessa Collier divulgação



Eugênio Martins Júnior – Vou começar perguntando com uma música de Buddy Guy: Qual foi a primeira vez que escutou um blues?
Vanessa Collier – A primeira vez que toquei blues simplesmente amei. Estava na sexta série, tinha uns 11 anos e toquei um blues de doze compassos em um aquecimento com uma banda de jazz antes de uma apresentação. Improvisávamos todas as manhãs antes da escola e desde então passei a amar isso.

EM – Os Estados Unidos possuem muitos saxofonistas lendários. É impossível dizer quantos. Quem você ouviu para moldar o teu som?
VC – Ouço estilos musicais diversos e penso que todos eles me ajudaram a moldar o meu som. No que diz respeito aos saxofonistas, adorei Cannonball Adderley na primeira vez que o ouvi. Ele é tão soul e bluesy mesmo fazendo jazz ou bebop! Coltrane, Jeff Coffin, até mesmo Ella Fitzgerald me ajudaram a ver que qualquer instrumento é apenas a voz humana tocada através dele. Uma das minhas maiores influências foi o meu professor, Chris Vadala. Amei seu som doce no saxofone e fiquei impressionada ouvindo alguns de seus conceitos durante nossas aulas. Ele me inspirou com sua paixão e amor pelo saxofone e pela música.

EM - Você é uma jovem que poderia estar tocando música pop e talvez ganhar muito dinheiro, mas preferiu mostrar seu ponto de vista sobre os blues, essa música centenária. Me fale sobre isso.
VC – Acredito fortemente que o dinheiro não faz você feliz, mas conexões, ser sincero, honesto e real sim. Blues é a música mais honesta, verdadeira e a espinha dorsal de toda a música. Mesmo grande parte da música pop tem raízes profundas no blues. Escolhi fazer a música que me atraiu desde o começo e continuo a explorar tudo o que tem a oferecer. É uma jornada de aprendizagem ao longo da vida, adoro aprender e crescer. O blues permite que você cresça e expresse cada emoção com honestidade. Faz todo mundo feliz também porque todos nós podemos nos conectar a ele, não importa a idade ou a circunstância. É verdadeiramente universal e nos mostra que somos todos iguais no coração.

EM - Mas você faz uma mistura poderosa entre blues, soul e funk que não deixa ninguém com seus quadris parados.
VC - Obrigado! Mais uma vez, acho que o blues foi a raiz de tudo, gerou os movimentos do funk e a soul music. Sempre fui atraída por James Brown, Otis Redding, Ray Charles, Bonnie Raitt e muitos outros. Amo muito a música e tudo isso vive na câmara do groove do meu coração, então eu apenas toco tudo que amo.




EM - Usei uma plataforma de crowdfunding para publicar meu primeiro livro e vi que você também está usando para lançar um CD. No passado artistas procuravam rótulos como apoio. Por outro lado, o crowdfunding nos torna os donos do nosso trabalho. Gostaria falasse sobre isso.
VC – Fui atrás de alguns selos e percebi que não serviriam pra mim. Uma das coisas que aprendi na faculdade foi encontrar uma maneira de fazer quase tudo sozinha. Com a gravação com qualidade de estúdio se tornando mais acessível e o avanço tecnológico, é muito mais fácil e muito mais barato produzir, lançar e promover um registro por conta própria. Esse modelo permite que você mantenha todas as suas gravações masters, publicando e mantendo sua integridade e independência, decidindo o tipo de artista que quer ser. Você não precisa ser rotulado por uma gravadora que tem uma visão limitada de seu talento artístico. Acho que artistas bem sucedidos, com longevidade, têm seu próprio nicho e estão fora das normas. O crowdfunding permite que tudo isso aconteça e as pessoas que já amam e apóiam sua música e sua carreira podem ter um papel ativo nela. O crowdfunding permite que você construa e aumente sua comunidade e promova uma aproximação profunda com o público, pois cada uma dessas pessoas faz parte da jornada ao seu lado. É incrível construir essa espinha dorsal, esse suporte. Tenho relações especiais com os fãs através das campanhas de crowdfunding que tenho realizado e sou imensamente grato a cada uma deles porque não teria tido tanto sucesso.

EM - Há alguns meses, Joe Louis Walker tocou em uma casa de shows em São Paulo e eu estive lá e fiz uma boa entrevista com ele. Gostaria que você falasse sobre o tempo que passou tocando com esse grande artista.
VC – Joe Louis Walker tem sido um dos meus mentores. Tive meu primeiro teste da estrada com Joe tocando principalmente na costa leste e também uma turnê de um mês na Turquia, que foi uma das melhores em que já estive. Joe é um artista que poderia estar no centro da cena blueseira se ele quisesse, mas vem de um background gospel, soul, funky, rock e muito mais, então ele toca todos os estilos. Com ele toquei tudo o que amo. Também aprendi percussão, fiz backing vocals, além de tocar saxofone. Sua banda é sempre ótima e ele tem um grande conhecimento histórico, musical e grandes histórias da estrada. Sempre aprendo algo novo quando estou com ele. Esse um ano e meio de turnê foi uma introdução musical maravilhosa e memorável, me apaixonei desde o início.

EM – Como começou a parceria com Fred Sunwalk and the Dog Brothers? Você conhece a cena brasileira de blues?
VC - Fred falou comigo e com meu empresário sobre vir tocar no Brasil. Daí assisti a um vídeo com Fred and the Dog Brothers tocando Blues Everyday. Ele estava no meio da multidão fazendo slide com uma garrafa de cerveja que alguém havia lhe dado. Pensei: “Esse cara é incrível! Eu quero ir!” Então vim para um festival e passei algum tempo com sua família, incluindo os Dog Brothers e suas famílias e apenas senti que era minha segunda casa. A cultura brasileira é muito mais calorosa e aberta do que os americanos típicos. Por exemplo, os americanos acham estranho abraçar quando você conhece alguém, mas parece que no Brasil, abraços são bem-vindos! Eu encontrei alguns artistas como Igor Prado e Alvaro Kapaz, que são da mesma escola. Aprendo mais sobre a cena do blues brasileiro cada vez que venho.



EM – Você chegou a tocar com Marcos Valle? O que acha da música brasileira?
VC - Toquei em uma banda como suporte a Marcos Valle. Conhecia muito Jobim e Gilberto porque essa é a música brasileira no mundo do jazz e a qual fui apresentada, mas descobri que já conhecia muita música de Marcos Valle. Simplesmente amo a música brasileira que ouço, porque para mim, há sempre muita paixão e ternura. Sempre com groove e melodia, mas a melodia sempre flutuando sobre o groove. É animada, sensual e fascinante e eu a amo por isso.

EM – Você ensina música para jovens estudantes?
VC - Tenho ensinado desde 2005. Fui convidada para ensinar um aluno da sexta série no verão, antes de eu mesma entrar na nona série e fiquei muito nervosa. Ensino os fundamentos e os princípios da boa produção sonora, já que isso é o mais importante. Tenho cerca de 30 a 35 alunos por ano. Desde que me formei na faculdade em 2013, lecionando três dias por semana. Desde então tenho aprendido técnicas de ensinar arte para alunos mais jovens. Sempre trabalho para inspirá-los e ajudá-los a encontrar sua própria voz e forma de expressão e espero que eles também apliquem o que eu ensino fora da sala de aula.

EM – Fale-me sobre Heart Soul Saxophone e Meeting My Shadow.
VC – Heart, Soul Saxophone foi meu primeiro disco e reúne algumas de minhas músicas favoritas, juntamente com algumas das primeiras que escrevi. Tongue Tied, The Run Around, Keep It Saxy, e a cover I Can’t Stand The Rain são algumas das minhas favoritas desse registro. Meeting My Shadow é meu segundo disco e amo suas composições. When It Don't Come Easy é uma música premiada como melhor letra e Posioned The Well, Whisky e Women, Two Parts Sugar são algumas das minhas composições favoritas. Este disco também apresenta Laura Chavez na guitarra, que é uma de minhas guitarristas e pessoas favoritas. E estou super empolgada para lançar meu novo álbum Honey Up na próxima semana. São nove originais e uma de minhas favoritas, Love Me Like A Man. É um disco bem New Orleans, funk e até um pouco de blues e rock. Amo esse álbum de cima a baixo.

Entrevista Tail Dragger:
https://chicagodefender.com/2018/06/20/what-has-happened-to-the-blues/


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Matt "Guitar" Murphy morre aos 88


Ele ficou conhecido do grande público como o marido rebelde de Aretha Franklin e guitarrista da banda The Blues Brothers no filme homonimo, mas Matt “Guitar” Murphy era muito mais do que isso.
Nascido em Sunflower, no Mississippi, educado em Memphis e, por fim, baseado em Chicago, onde se juntou à lenda Howlin’ Wolf, Murphy esteve nas três localidades mais importantes do blues. Tinha mesmo de ser músico.
E como sideman trabalhou com a nata do blues, Little Junior Parker, Memphis Slim, Ike Turner, Muddy Waters, James Cotton, Otis Rush, Etta James, Sonny Boy Willianson II, Chuck Berry e Joe Louis Walker. Além, é claro, da Blues Brothers Band, com Lou Marini, Steve Cropper, Donald “Duck” Dunn, Willie Hall, Steve Jordan, Tom Malone, Alan Rubin, Paul Shaffer e Tom Scott. Sempre muito bem acompanhado.
Era celebrado como um dos grandes guitarristas do blues e em 1998 ganhou uma homenagem quando as guitarras Cort fizeram um instrumento com sua assinatura. 
Em 2002 já havia sofrido um AVC, tendo retornado aos palcos alguns anos depois. Matt “Guitar” Murphy morreu hoje aos 88 anos.
Sua discografia conta com Way Down South (1990), The Blues Don’t Bother Me (1996), Lucky Charm (2000) e Last Call (2010).


segunda-feira, 4 de junho de 2018

Márcio Abdo a harmônica cromática e seus personagens

4ª Mostra Blues de Santos

Texto: Eugênio Martins Jr
Fotos: Tiago Cardeal

Antes de levar a vida na gaita, Márcio Abdo foi caminhoneiro e vendedor de carros. Sim bluesmaniácos, se a vida de um blueseiro no país do blues já não é fácil, o que diremos no país do samba.
Porém, há sete anos dedicando-se exclusivamente aos bends, trinados e tongue blocks, Abdo também compra e vende amplificadores, microfones, conserta e customiza gaitas, dando aulas do instrumento para interessados em todo o Brasil.
Além de tudo isso, todas as segundas sextas-feiras do mês mantém uma jam session com músicos profissionais e amadores no Tchê Café, em São Paulo.
O projeto é similar às blues jams que acontecem nos bares da Califórnia, estado chave no desenvolvimento da harmônica cromática no blues e que Abdo visita regularmente.
A banda oficial é sempre a Abdo Blues Band, que faz a abertura e as boas vindas. Depois os jammers começam a ser chamados e a blueseira pega fogo. Todo músico que chega na casa coloca o nome na lista dizendo se é cantor ou qual instrumento toca. Os times são montados ali mesmo e ao subirem ao palco tocam entre três e cinco músicas. O legal é que muitos dos músicos nunca tocaram juntos e têm a chance de improvisar ali na hora. Músicos do interior de São Paulo, Chile e Estados Unidos já passaram por lá.
Além de músico hábil, que canta em português e mostra em seus discos algumas das técnicas criadas em Chicago e a Califórnia, os dois berços das harmônica blues, Abdo é um profundo conhecedor da gaita cromática e de seus personagens de São Paulo e Rio.
Ele esteve aqui em Santos com sua banda, Mr John (guitarra), Victor Busquets (bateria) e Pedro Ferreira (baixo), dentro da 4ª Mostra Blues de Santos produzida por mim e pelo Sesc, onde ministrou uma oficina sobre a história e técnicas da harmônica, fez um show baseado no seu mais recente trabalho, Plano B, e concedeu essa entrevista.



Eugênio Martins Jr – Como foi parar no Blues? Já começou direto na harmônica?
Márcio Abdo – Não. Queria ser guitarrista como o Jimmy Page do Led Zeppelin. Em 1986, aos 16 anos e com toda aquela cena do rock nacional, vi um cara tocando bateria e fiquei fascinado, logo comprei uma. Entrei num conservatório e comecei a tocar rock nacional nos bailes do bairro, mas ficava com inveja dos meus amigos guitarristas que ficavam na linha de frente. Quando se é jovem você quer tocar para impressionar a mulherada. Aos 19 anos conheci o Paulo Carvalho, um tremendo baixista que já havia ido aos Estados Unidos e que tinha uma banda de blues chamada Blues Dogs, ou alguma coisa assim. Ele também tocava saxofone, então vendi a minha bateria e comprei um saxofone e iniciei meus estudos de blues no saxofone. Esse cara me levava aos shows de blues no Bixiga, no Café Piu Piu, existia uma cena forte de blues em São Paulo. Comecei a curtir mais blues, mas nunca deixei o rock and roll.  Um dia liguei a televisão e vi uma banda de blues com um cara tocando o que eu nem imaginava que seria uma gaita. Na hora percebi que aquele era o som que estava buscando, o saxofone tinha algo semelhante, mas a gaita gritava e chorava, era isso que eu precisva. Contei pro Paulão que tinha visto um cara tocando um negócio que parecia a bunda de um ventilador. Ele: “Cara, isso é gaita”. Gaita? (risos)

EM – Quem foi que você viu na TV?
MA – O Blues Etílicos. O Flávio Guimarães, o Otávio novinho com camisa de surfista e tal. Eles estouraram com o discos Água Mineral e San Ho Zay e vinham muito pra São Paulo. Comecei a acompanhar a agenda desses caras que geralmente iam ao Centro Cultural Vergueiro, ao Aeroanta, onde tocou muita gente famosa da época e em outros lugares da cena.

EM – Você, por exemplo, usa a cromática pra tocar blues no Brasil. E também conhece muito a história do instrumento e seus personagens. E teve passagens com alguns deles, fale um pouco sobre isso.
MA – Era difícil ter acesso a informação quando comecei. Precisava arrumar um professor de gaita. Na rua 24 de maio existia uma casa de instrumentos musicais linda, a Casa Manon, que tinha gaita de tudo quanto é modelo, alguns nem existem mais hoje, muita gaita mesmo. Comprei a minha primeira gaita diatônica de corpo de madeira e no mesmo balcão tinha lá um cartão escrito "Aulas de gaita com Omar Izar". Na minha opinião, o melhor timbre de gaita cromática do Brasil e um dos melhores do mundo. Liguei pra ele e disse que queria aprender a tocar gaita blues. Ele disse que sua especialidade era gaita cromática, mas poderia me ensinar o básico da gaita blues. Tive apenas três aulas e como na época não tinha interesse em cromática, sai em busca de um outro professor. Anos mais tarde, Omar foi o cara que me ensinou a afinar gaita blues. Ele foi o gaitista que mais apareceu na televisão antigamente. Quando falei que queria aprender a tocar gaita, minha mãe já disse logo, “tem o Omar Izar”.
Depois das aulas iniciais descobri outra loja, a Irmãos Vitalle, e lá tinha um cartão escrito: “Kley Willians, professor de gaita blues e cromática”. Ele dava aulas na 24 de Maio, ao lado do Teatro Municipal. Nunca esqueço, número 35. Quando cheguei ele me pediu pra tocar e disse que eu não fazia os bends. Perguntei o que era aquilo, não imaginava o longo caminho que tinha pra percorrer. Era um inferno aprender os bends. Consegui um afinador e ficava naquilo o dia inteiro. Um dia meu irmão mais velho abriu a porta no quarto e disse: “Ô meu, joga isso no lixo. Vai tocar violão. Vai aprender outra coisa. Isso aí parece um pernilongo bêbado”. Foi meu primeiro incentivo. Ele se formando em engenharia, cinco anos mais velho e eu tatuado querendo ser músico. Me formei em jornalismo para agradar a minha mãe e porque gostava de escrever. Então o Kley Willians, que na verdade era o Zezinho de Lima, e hoje, aos 93 anos, mora em Peruíbe, foi o meu segundo professor de gaita e quem me abriu os olhos para o universo do blues. Ele havia ganho um prêmio da loto e pegou uma pequena bolada, comprou uma casa em Peruíbe, viajou para a Europa pra conhecer a fábrica Hohner, comprar gaitas e parou de dar aulas.
Naquela época não existia internet e a gente demorava muito para descobrir as coisas, um tempo depois, em 1991, conheci o Clayber de Souza, um dos grandes improvisadores da gaita cromática do Brasil. Comprei uma gaita cromática e comecei a estudar com ele. Na segunda aula o Clayber me convidou pra ser um dos monitores do método de ensino dele. Tinha muita coisa a aprender ainda e tive muitas aulas já nesse sentido.
Nelson Barbosa também dava aula no Largo do Paissandú, ao lado da igreja, ao lado do prédio da polícia federal que desmoronou recentemente. Lá ele formava pequenas orquestras, que era a onda dele. Tocava harmonetta como ninguém, ele tocando tango na harmonetta era uma coisa incrível. Mas quando iniciei meus estudos na gaita ele já havia falecido.



EM – Teve a história com o Ulisses Cazalas também.
MA - O Ulisses me ajudou muito. Era do sul, membro da Orquestra de Harmônicas de Curitiba e dei sorte dele vir morar perto da minha casa, lá na Vila Matilde. Na época eu tinha um caminhão e já tocava. Sempre quis aprender a consertar gaita. Perguntei se ele me ensinava a consertar gaita e ele disse sim. Disse ainda que se eu não tivesse dinheiro pra pagar as aulas ele me ensinava de qualquer jeito. Viramos muito amigos. Todo sábado ia a sua casa. Ajudava-o a vender seus métodos de gaita blues para as lojas de instrumentos de São Paulo. A gente saia direto, fomos ao show do Flávio Guimarães no Bourbon Street, na época tinha o Mr Blues, outra casa de blues de São Paulo. No final ele voltou pro sul e morreu por lá. Fiquei muito triste. Ele foi como um pai pra mim.
Tem também o Haroldo Gonçalves lá de Osasco. Conheci no início dos anos 90 quando fui fazer aulas com o Clayber. O Haroldo é uma pessoa incrível, sempre disposto e animado. Tomamos muitos conhaques juntos e falamos horas e horas sobre gaita. É sempre muito bom estar com ele, sempre aprendo histórias da gaita e da vida . Ele continua consertando gaitas e tocando.
Na Lapa existia um lugar chamado Tendal onde todos os sábados tinha aulas de gaita gratuitas. Era um galpão com uma sala enorme, um monte de gente aprendendo a tocar gaita. Lembro que tinha dois professores lá, mas não me recordo os nomes. Um deles tinha apenas uma parte de um braço, mas segurava a gaita do jeito dele. Lá conheci um japonês que já fazia o cromatismo na gaita diatônica, pedi pra ele me mostrar como fazia aquilo e e ele me enrolou. Tinha um senhor cego com um timbre fantástico de gaita cromática e um super ouvido.

EM – Você falou de São Paulo. E no Rio?
MA - No Rio acredito que ninguém gravou gaita cromática antes de Edu da Gaita. Acho que ele foi o pioneiro da gaita no Brasil. A maioria dos gaitistas mais velhos dizem que escutaram o Edu da Gaita. Ele também não lia uma nota musical. Mas nos anos 40 já tinha coisa gravada. Gravou o Moto Perpétuo de Paganini com aquelas milhares de notas que o músico tem de tocar em um tempo mínimo. Uma loucura. Ouvi falar que o Edu passou onze anos estudando aquela música. Tudo de ouvido e quando resolveu gravar teve até equipe de reportagem para registrar. Não me lembro direito, mas que quando ele estava na 17ª tentativa um jornalista derrubou uma máquina de escrever no chão e o desconcentrou bem no final. Parece que conseguiu na 38ª tentativa.
Depois do Edu da Gaita apareceram outros caras como o Manuel Xisto - mais conhecido como Fred Willians - Maurício Einhorn e o Rildo Hora. E no blues tivemos os pioneiros Zé da gaita, Carlitos Patrone com a banda Atlântico blues e o mestre Flávio Guimarães.


EM – E blues, quais foram os primeiros que viu e ouviu tocar?
MA – Eu não cheguei a ver tocar, mas já fiz muitos consertos de gaita para o Mazinho, Marco Aurélio, de uma banda chamada SS 433, que era blues rock. Parece ter sido o pioneiro da gaita blues em São Paulo. Depois veio o Paulo Meyer na banda expresso 2222, um dos primeiros que vi tocando em São Paulo, junto com o Fernando Naylor, o Dr Feelgood, que tocava com o André Christovam e depois com o Nasi. Mas o Flávio Guimarães, sem dúvidas foi o cara que abriu as portas da gaita blues no Brasil. A segunda geração veio com o Sérgio Duarte, o Vasco Faé, Flávio Vajman, o Ed Blues, da Calibre 12, uma das bandas paulistanas mais antigas. Essa nova geração começou a viver de gaita e dar aulas. A partir daí foram surgindo tantos outros nomes e me incluo nessa terceira geração de gaitistas paulistanos. Fiz aulas com o Sérgio Duarte, ele conheceu o James Cotton, o Willian Clarke e aprendeu muita coisa com os caras, principalmente na questões de embocadura e timbre. Foi o Sérgio que me empurrou para o mundo do blues e me abriu muitas portas. Produziu meu primeiro CD, o Na Melhor Hora.

EM – A tua escola de blues é Chicago, West Coast ou as duas coisas?
MA – Acredito ser as duas. Meus estudos e referências estão voltados aos gaitistas de Chicago e Califórnia. Em Chicago tem a old school com os dois Sonny Boys (I e II), os dois Walters Little e Big Horton), Junior Wells, James Cotton, Jerry MacCain, Carey Bell. Esses caras são os reis. Na Califórnia a old school é George Harmonica Smith que, na minha opinião, foi o mestre da gaita cromática no blues e que deixou um legado de grandes gaitistas naquele estado. Se você analisar, hoje temos na Califórnia a nata da gaita blues. Além do falecido Willian Clarke, temos Rod Piazza, Mark Hummel, Gary Smith, Rj Mischo, Kim Wilson, Rick Estrin, David Barret e Aki Kumar.

EM – Qual é a melhor hora para a cena do blues nacional? Hoje ou há 20 anos?
MA – Acho que há vinte anos, hoje e sempre. Há 20 anos não faria o que faço hoje. O disco Na Melhor Hora foi lançado em 2011. Tenho muita satisfação de escutar esse disco. Tem solos que eu coloquei da melhor forma naquele momento. O Plano B lançeu em 2015 e já tem sonoridades bem diferentes.

EM - Você acha que está acontecendo uma renovação?
MA – Ano passado pude constatar em uma viagem para a Califórnia que o público de blues de lá é composto por pessoas mais velhas. Acredito que os músicos e público não estão se renovando na proporção que deveria, tanto lá como aqui no Brasil. A gente percebe que isso vale para todos os outros estilos musicais. O mundo está mudado e caminha de forma esquisita com relação à música.



EM – Sem citar nomes, hoje temos uma linhagem de gaitistas de todo tipo no Brasil. Você acha que a gaita blues brasileira atingiu uma linguagem ou são todos imitadores?
MA – Hoje percebo que tem uma galera aqui no Brasil que formou uma linguagem. Pode até soar como alguém lá de fora, não tem como fugir disso. Não vai tocar nada a mais do que o Little Walter,  Sonny Boy ou gaitistas da Califórnia, mas colocam elementos brasileiros dentro de um estilo que é americano.

EM – Estávamos há pouco no boteco falando sobre as mudanças na música. Você teve a idéia de gravar dez vídeos que acabou virando um CD. Hoje é mais importante fazer música e mostrar no Youtube do que gravar um disco?
MA – Com toda certeza, a imagem hoje é muito mais importante do que a música em si, infelizmente. As pessoas não compram mais só a música. Elas consomem músicas que estão acopladas a algum movimento, moda ou visual. Por isso tantos artistas estouram na mídia sem ao menos terem gravado um único CD. Com apenas um vídeo na internet conseguem atingir a fama.
Tinha algumas músicas novas e me ocorreu a idéia de gravar alguns vídeos como material de divulgação com um time novo. Mostrar como o projeto Blues PraPular Brasileiro funciona no palco. Foram quase seis horas de gravação. Gravar com imagem é bem mais complicado. Se você erra não dá pra refazer apenas onde houve o erro, tem que tudo de novo.

EM - Por quê o nome Plano B?
MA – O plano A era gravar apenas os vídeos. Mas quando fui na técnica gostei do resultado. É um disco totalmente ao vivo ,sem emendas e correções. Só fizemos mix e master. Achei a execução muito boa. Por isso coloquei o nome de Plano B.

EM - Você também dá aulas e conserta gaitas pra viver. Viver de blues no Brasil engloba tudo isso?
MA – No meu caso sim, eu não vivo de blues, vivo de gaita. Conserto, dou aulas, toco e compro e vendo gaitas, microfones e amplificadores. Se eu não fizer tudo isso fica difícil. Pouquíssimos no Brasil conseguem viver de gaita, mas com certeza o Brasil é atualmente um dos maiores consumidores de gaita do planeta. Acredito termos mais amantes de gaita no Brasil do que nos Estados Unidos.

EM – Gostaria que falasse sobre a importância de ter um bom timbre, já que você sempre enfatiza isso.
MA – Little Walter como tantos outros mestres da gaita blues deixaram um legado de timbres. O Omar Izar me disse que estudava timbre há muitos anos. Tem um DVD do Gary Smith que ele mostra muitos microfones e amplificadores, mas ele enfatiza: o som está na sua boca e na sua garganta. Você tem de moldar a sua musculatura, a tua forma de respirar para produzir volume e som de qualidade, para depois colocar em um bom microfone e amplificador. Minha opinião é que a gaita tem basicamente sua construção feita em cima de latão. Se você não se preocupa em tirar um bom timbre estudando embocadura e respiração, vai ter um som de lata. Vai ser um latista e não um gaitista. (risos)




sábado, 2 de junho de 2018

Morre um dos grandes de Chicago, Eddy “The Chief” Clearwater

Fotos: Cezar Fernandes

Ontem, dia 01 de junho, o mundo perdeu um dos grandes nomes do blues de Chicago. O guitarrista Eddy “The Chief” Clearwater, morreu de infarto aos 83 anos em sua casa. Ele ganhou apelido de "The Chief" porque era descendente de índios Cherokee.
Nascido em Macon, no estado do Mississippi, mudou-se para o Alabama onde foi criado por sua avó Cherokee e, nessa mesma época, aos 13 anos aprendeu a tocar guitarra sozinho, pois era canhoto e usava o instumento invertido.
Nos anos 50 foi para Chicago lavar pratos, mas lá já estava o seu primo, o gaitista Carey Bell, que o colocou em contato com os grandes Otis Rush (também canhoto) e Magic Sam os pilares do blues elétrico da windy city.
Seu nome verdadeiro era Edward Harrington e o nome Clear Water foi dado pelo seu empresário e baterista, Jump Jackson, e foi uma brincadeira com o cara que dava as cartas naquela época em Chicago, o boss Muddy Waters.
Eddy rodou o mundo com sua música e sua discografia possui mais de 15 títulos, um verdadeiro panorama da evolução do blues elétrico de Chicago. Um legado musical incomparável.
Veio ao Brasil Rio das Ostras Jazz e Blues Festival, em 2006, e foi capturado espetacularmente pela câmera do fotógrafo especializado em shows, Cezar Fernandes. Cezinha é colaborador do Mannish Blog desde seu nascimento e um dos fotógrafos mais talentosos da cena.
Eddy tinha 83 anos.






O encontro dos rios Paraíba e Chicago na música de Lancaster


Texto: Eugênio Martins Jr.
Foto: Lancaster

Foi um dia difícil para subir a Serra do Mar aquele 18 de abril de 2018, dia do show da banda Blues Beatles no Bourbon Street, em sampa. 
Dois acidentes, um aqui na Anchieta, ainda em Santos e outro na Imigrantes, um carro pegou fogo interditando a estrada  até a chegada dos bombeiros, ambulância, Ecovias. Três horas de viagem. 
Paciência não é um dos meus defeitos e achei que ia perder, de novo, a entrevista marcada com o Lancaster, inventor de bandas legais como Serial Funkers e Blues Beatles. Além de sua carreira solo. 
O Lancaster é guitarrista das antigas, da segunda geração do blues brasileiro e se hoje o Vale do Paraíba está cheio de músicos - Flávio Naves, Marcelo Naves, Danilo e Nicolas Simi, Bruno Falcão, etc. - isso se deve um pouco ao seu esforço.  
Baseado em São José dos Campos, desde a época em que a cidade não tinha ninguém tocando essa música estranha, o Lan, como chamam os amigos, tinha de ir para São Paulo estudar as malandragens do Albert Collins. 
Três horas de viagem indo e voltando da metrópole mais congestionada e barulhenta do Brasil. O blues é cheio desses caminhos, encruzilhadas, estradas, viagens e viagens.
Hoje sua carreira conta com mais de 25 anos, seis discos solo lançados e mais participações em discos alheios e projetos diversos.
Seu mais recente trabalho, após dez anos sem gravar um disco de blues, Say Goodbye to Trouble, foi produzido de forma independente com base no blues de Chicago e com os parceiros Maurício Gaspar (bateria, Izao de Oliveira (baixo) e Edu Souza (guitarra).


Eugênio Martins Júnior - Como você começou na música e na guitarra?
Lancaster – Comecei estudando violão erudito mas parei e decidi que ia tocar guitarra. Não sabia fazer nem acorde, mas de cara montei uma banda. Tentei achar um professor que dava aula de rock, mas não existia. Estou falando de 80/81. Em São José dos Campos ninguém tocava guitarra elétrica. Achei um professor meio confuso e depois vim estudar no CLAM, em São Paulo, com o Conrado Paulino e depois com o Fernando Correia.  

EM – Espera. Você vinha de São José dos Campos só pra estudar guitarra?
Lancaster – Sim, fazia uma aula e voltava. O pior disso é que a aula de cinquenta minutos era cinco da tarde da sexta-feira e eu gastava três horas pra ir e mais três pra voltar para São José. Daí voltei a estudar música erudita, contraponto e harmonia no conservatório do Brooklin. Vinha três vezes por semana a São Paulo e em 87 mudei pra cá. Nessa época a cantora Bee Scott me chamou para a sua banda de soul music. Eu já tocava blues nos bares de São José, com sequenciador, fazendo as bases, porque não tinha ninguém pra tocar comigo. Eu só tinha uns CDs do Albert Collins e BB King. Os caras da banda conheciam mais blues e me mostraram vídeos que nunca tinha visto. Então me apaixonei forte e fui fundo nisso. Em 1994 fui pra os Angeles estudar no IG&T, para ter acesso ao material.

EM – E nesse meio tempo o blues no Brasil explodiu.
Lancaster – Sim. Vi o show do André (Christovam) antes de ir pra Los Angeles, onde tive acesso a muita coisa. Voltei com duzentos CDs na mala. (risos)
Montei minha primeira banda e toquei no Nescafé & Blues em 1996. Fui selecionado porque a banda era muito forte, tinha seis metais, com o Proveta, o Gil, Nahor Gomes, Maurício de Souza, só os feras do sopro de São Paulo. Tudo por intermédio do batera Tuto Ferraz que ajudou a produzir meu primeiro disco e que hoje toca com o Max de Castro, Simoninha e um monte de gente. Um disco bem de iniciante, onde toco todos os estilos de blues do universo. (risos)

EM – Mas você se especializou no Chicago Blues.
Lancaster – É, o segundo álbum foi mais roots. Percebi que gostava de fazer ao vivo.


EM – Você chegou a fazer aquele “estágio” em Chicago como outros músicos brasileiros?
Lancaster – Não. Como fiquei só tocando blues nunca tive dinheiro pra ir aos Estados Unidos (risos). Sempre quis ter sopro na minha banda, mas percebi que os músicos brasileiros não gostam muito de blues e eu tinha de colocar sub toda hora e tive que desistir. Sempre detestei tocar em trio. Gosto de banda com muitos integrantes, aquela riqueza sonora e a guitarra aparece de forma pontual. Não fica tocando o tempo inteiro. Fui para o formato quarteto. Acho que o meu terceiro CD, de 1999, é o que todo mundo conhece mais, o Beatiful Day For the Blues. 

EM - Say Goodbye To Trouble é um álbum vigoroso que mostra esse caminho do Chicago sound. Tem música em homenagem ao BB King, Otis Rush. Gostaria que falasse sobre ele. 
Lancaster – Já tenho material pra lançar outro que é uma mistura de blues com reggae. Estou gravando há um ano e meio com a banda do Igor Salify, um cantor lá da Bahia. São composições em conjunto. 
O Say Goodbye To Trouble é roots. Foi gravado no quartinho da minha casa. É de Chicago blues, com a guitarra bem limpa, gravada direto da mesa. Quando mostrava para as pessoas elas diziam que eu tinha de distorcer a guitarra pra ter aceitação. Cara, sempre fiz o que quis e não vai ser agora que vou começar a pensar com a cabeça dos outros. O som que estou buscando é esse e pronto. Não faz muita diferença pra mim. Você muda o som e vende vinte CDs a mais. Essa é que é a verdade (risos). Tenho que dar uns pulos fora do blues pra ganhar uma grana.

EM – E caímos nessa pergunta. Você é um criador de projetos, fundou a Serial Funkers, tinha uma dupla de música eletrônica com o Flávio Naves, e agora o Blues Beatles. Foi a forma que achou para não depender só de blues?
Lancaster – Antes tinha uma banda com músicas autorais chamada Today. Foi nessa época que conheci essa galera (Blues Beatles). Consegui um patrocínio para gravar a banda seis meses lá no meu sítio. Nos intervalos o Viana pegava o violão e começava a cantar Beatles e achei a voz dele linda. Daí começamos a brincar com algumas músicas deles que já são blues. Aí pensamos em fazer algo assim porque Beatles já traz um público. Do que a gente mais sofre no Brasil? Por mais que seja desconhecido, um estrangeiro que venha tocar aqui toma o nosso lugar nos festivais e ainda ganha mais do que você. A Blues Beatles foi uma maneira de contornar isso e ainda levar mais público do que qualquer gringo. No exterior estamos ganhando cachê que esses caras que vêm pra cá nem sonham. E isso por causa do público que levamos. E na verdade, o Blues Beatles é uma banda de blues que toca Beatles e não ao contrário. Porque todo mundo é blueseiro pra caramba. 


EM – O que você pensa sobre esse negócio de trazer um músico que nos Estados Unidos toca em boteco e aqui é vendido como a revelação do Blues?
Lancaster – Brasileiro tem a tendência a achar que o que vem de fora é melhor. Mas tem muita coisa boa vindo. Eu mesmo fui influenciado pelos grandes artistas que tocaram aqui no Bourbon Street. 

EM – Voltando ao Blues Beatles. A trajetória da banda está em ascendência, vocês acabaram de voltar dos Estados Unidos e Europa. Como foi nesses lugares?
Lancaster – Sim. Fizemos uma turnê curta nos Estados Unidos, três shows. E ficamos quase um mês na Dinamarca com nove shows. Na recente turnê os Blues Beatles passaram pela Dinamarca e foram muito bem aceitos. No final dos shows formavam filas. E cada show que fizemos gerou mais dois ou três outros para esse ano. A Blues Beatles vai voltar agora em agosto, entre 18 e 25 para uma série de shows. Tem um que é um congresso internacional que é para vários produtores culturais e promotores de eventos. Imagina a quantidade de contatos que esses caras vão trazer de lá. É muito legal a seriedade deles. Eles te dizem que vão marcar uma data e marcam mesmo. Hoje é meu último dia na banda, mas eles vão continuar porque é um projeto muito vencedor.     

EM – Porque vai sair?
Lancaster – Vou tocar os meus projetos pessoais. Lançar a carreira da minha filha que está cantando também. Em junho e setembro eles voltam aos Estados Unidos pra uma turnê, participando de festivais em New York e Tennesse. 

EM – A tua filha canta o quê? Como é o nome dela?
Lancaster – É Ana Maria. Ela está sendo convidada por outros artistas. Um pessoal gostou dela cantando. Ela compõe também. Gosta de soul e pop. Gravei umas coisas com ela. 

EM – Qual é o cuidado que vocês têm quando pegam uma música dos Beatles e modificam? Acho que tem duas coisas. Não fazer igual, porque já foi bem feito. Porém, fazer diferente, mas de forma original.
Lancaster -  O segredo é soar natural. Nós pegamos as levadas de blues que gostamos e testamos pra ver qual música dos Beatles encaixa. Mas tem de tomar cuidado para não perder o impacto da música original. Por exemplo, nosso maior sucesso na internet, A Hard Days Night, toquei na forma original e é muito sem graça. Se você modifica aquilo ali, coloca uma coisa instigante, dá a impressão que você melhorou a música. Agora se você pega Why My Guitar Gentle Whips, que tem um solo perfeito não dá pra mexer. Nunca vi ninguém fazer melhor do que eles. Aí está mexendo na música errada. Tem algumas que eu morro de medo de mexer. A única que a gente mudou muito foi Yesterday, mas o fãs gostaram. É um risco tremendo porque o fã dos Beatles não gosta que mexa na melodia básica. E uma coisa que é muito legal, o Viana não imita nem o John Lennon e nem o Paul McCartney, ele canta com a própria voz.


EM – Sendo um dos pioneiros do blues no Brasil. Como vê a cena hoje? 
Lancaster – Acho que em 1999 e 2000 foi a melhor época para o blues. Lembro de olhar na minha agenda e ter treze shows em um mês. Não era com banda de soul, funk, nada. Era carreira solo, show de blues. De lá pra cá teve altos e baixos. Não acho que está tão bom. Em São Paulo não tem tantos locais pra tocar. Que pagam um cachê razoável. 

EM – Festival não conta?
Lancaster – Tem um número maior de festivais, mas alguns acabam. Fazem um ano, dois e no terceiro acaba. Grande parte dos festivais acabam por que as pessoas que fazem são amantes do blues, não são profissionais. Tem de ser um pouco mais frio na hora de pensar. Se uma banda foi um sucesso ano passado, porque não repetir esse ano? Ah, só daqui a cinco anos. Lá fora os festivais repetem os nomes. Deu certo? Traz gente? Por que não repetir. É um negócio, gente. Outra coisa são as pessoas amantes do blues que levam os festivais nas costas mesmo. 

EM - Na primeira vez que te pedi uma entrevista você me perguntou se eu era um daqueles xiitas do blues. Fiquei intrigado, o que significa isso? Tem alguma coisa a ver com o teu trabalho eletrônico ou com o disco Bluesamba?
Lancaster – Sabe o que acontece? As pessoas tentam te colocar em uma caixa e definir você. Quando toco blues faço do jeito tradicional, mais do que muita gente. Então as pessoas não conseguem entender como um cara que toca da maneira tradicional pode produzir um disco de música eletrônica. Eu gosto de tudo, em casa ouço música erudita mais do que todas as outras. Mas quando toco o blues tenho o sentimento muito forte. As coisas são de verdade. Mas não acho que tenha de escolher uma coisa e ficar só nela. Me recuso a fazer isso. Tenho inspirações. Componho músicas românticas para cantoras. Soul, baladas. 

EM – Mas houve alguma cobrança?
Lancaster – E não foram poucas vezes. Falaram em programa de rádio, me criticando. Não toco pra músico. Eu quero tocar do coração. O maior trunfo que tenho na vida é me apaixonar pelas coisas. Quando vi o Viana cantando Beatles a voz dele me inspirou. Veja, nossos ídolos fizeram isso. Nos anos 70, com o aparecimento do soul, do funk, a carreira do BB King foi completamente pra esse lado. O Freddie King se envolveu com o pessoal do rock. Acho que a partir do momento que você fica copiando as coisas não está sendo fiel àqueles caras que são os teus ídolos. Eles mesmos não copiavam ninguém, estavam sempre fazendo coisas novas.