Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Cezar Fernandes e Eugênio
Maurício Einhorn é uma enciclopédia viva. São muitas informações armazenadas em uma só cabeça. Portanto não estranhe se no meio de uma resposta ele se lembre de alguma outra coisa que não tem nada a ver com a pergunta e desvie do assunto.
Por causa disso, a entrevista que era pra durar meia hora, durou duas. Umas das coisas que me levou a demorar tanto pra publicar. Entrevistar é muito prazeroso. Transcrever, nem tanto.Só não demorou mais porque uma equipe de TV estava esperando para gravar, mas deu azar de estar atrás de mim. E só paramos quando sua esposa interveio.
Autor de temas clássicos da bossa e da música brasileira como Sambop, gravada em 1959 por Claudete Soares no LP Nova Geração em Ritmo de Samba; Estamos aí (parceira com Durval Ferreira e Regina Werneck), gravada por Leny Andrade; Tristeza de Nós Dois (parceira com Durval Pereira e Bebeto); Batida Diferente, Nuvem e Clichê (também com Durval Pereira), "SamBlues" (com Durval Pereira e Regina Werneck) e muitas outras.
Tocou com Vitor Assis Brasil em e atuou em várias gravações de Chico Buarque, Claudete Soares, Gilberto Gil, e participou de diversas trilhas sonoras. Tornou-se uma lenda viva no instrumento.
Em Rio das Ostras, onde essa entrevista foi realizada, Maurício apresentou todos esses temas com uma banda composta por Kiko Continentino ao piano, Clalton Salles (Neguinho) bateria e percussão e Jefferson Lescowich no contrabaixo acústico. Nem a chuva torrencial molhou o prazer de ouvir o gênio do instrumento em ação.
Eugênio Martins Júnior – Você herdou de seus pais a afinidade pela harmônica. Então, desde criança está envolvido com o instrumento. Nunca praticou outra atividade na vida a não ser a música?
Maurício Einhorn – Tive várias outras atividades. Fiz fretes com Kombi, trabalhei em loja de móveis em Niterói e no Rio de Janeiro, trabalhei em loja de tecidos pra cortinas, fui gerente da drogaria Silva Araujo nos anos 60 e simultaneamente gaitista. Comecei a vida profissional de músico em 1947, aos 15 anos. Fiz tudo isso simultaneamente, ganhando cachês e exercendo outras atividades, até que em 1971 assumi a música.
EM – Até então não dava pra viver da música?
ME – Não dava. Até a pessoa adquirir um conveniente status em qualquer ramo, tem primeiro que plantar, se dedicar, e nem sempre a recompensa vem. É preciso ter um pouco de sorte e precisa estar escrito que a pessoa vai deslanchar, como se diz. Isso acontece em todas as profissões e não é diferente na música. Uns brilham mais que outros e nem tudo é gratificação, é dinheiro. Há coisas, como por exemplo, essa noite aqui em Rio das Ostras, tocar pra um público apanhando chuva. A chuva molhando todas as minhas gaitas e ninguém arredou o pé. Não há uma sensação mais gratificante. Eu não me dou o direito de me sentir estrela. Não. Aquela quantidade de pessoas, oito, dez mil que saíram de suas casas, isso não tem preço. Aí que entra aquela verdade quando dizem que os músicos não se pertencem. Nós pertencemos mais ao mundo, ao público, ao aplauso. Não tem coisa melhor, é a adrenalina do músico.
EM – Quando foi o seu primeiro trabalho profissional?
ME – Foi nas Gaitas Hering, patrocinadores de um programa exclusivo de gaita na rádio Tupi, em 1947, ao lado de um gaitista chamado Manoel Xisto (Fred Willians). Sem eu saber, meio que meu professor, aprendi com ele a dar aulas para crianças de 3 a 6 anos vendo seu método. É uma soma na vida da gente, nos sentirmos úteis, deixar para os outros as coisas que a gente aprende. Ele era um dos representantes da gaita do tempo de Edu da Gaita, um pouco mais velho. Tinha oito anos a mais do que eu que sou de 1932. O Edu da Gaita, que merece uma menção especial aqui, foi o pioneiro na gaita no Brasil, estudou Moto Perpétuo onze anos, apresentou-se, mas não teve a repercussão mundial que mereceu. Deveria, por que é um fato inédito tocar uma peça difícil pra violino, do Paganini, em harmônica de boca. Edu é uma referência. Assim como é o Stênio (Mattos, organizador do Rio das Ostras Jazz e Blues) no mundo do jazz. Também sou grato à Aninha, esposa do Mauro Senise, que me indicou pra estar aqui. E ao trio do Kiko Continetino que ensejou essa cozinha maravilhosa de ontem à noite.
EM – Aproveitando a deixa. Fale sobre os músicos que o acompanharam.
ME – Tenho afinidade com uns quatro ou cinco grupos. A gente procura tocar sem genialidade. Na hora que estou improvisando, o cara se coloca como acompanhante. Eu paro e ele tem o momento dele. Eu não me sinto liderando. O quarteto sou eu mais o trio do Kiko, com ele próprio ao piano. O Clalton Salles (Neguinho), na bateria e percussão, e o Jefferson Lescowich no contrabaixo acústico. É muito prazeroso, assim como é tocar com o Alberto Chinelli, o Luiz Alves e João Cortez. Dois baixistas tocam com o Kiko, o Luiz Alves e o Jefferson. E outros eventualmente.
ME – Tinha algumas referências. Ouvia muito Jacob do Bandolim, mas me influenciei muito mais com o Valdir Azevedo por afinidade, com quem eu toquei. Embora já atuasse como profissional há dois anos, toquei como calouro no programa Pescando Estrelas de Arnaldo Amaral, com o locutor que viria a ser o representante de samba e mulatas e shows para turistas, Osvaldo Sargentelli. Ele era o interlocutor entre eu e o público. Anunciava o próximo calouro e lá vinha eu. Se não me falha a memória era na Rádio Clube do Brasil, no Cine Arte Trianon, na Av. Rio Branco.
EM – E qual era o repertório?
ME – Era o que saia do forno. Eu estudava feito um tarado em casa pra tocar na gaita músicas que eram de cavaquinho. Assim como o Hamilton de Holanda, que é um gênio, no bandolim. E o Gabriel (Grossi), é uma espécie de Hamilton de Holanda na gaita. É outro louco, meu ex aluno, en passant. Toca muito.
EM – Mas gostaria de voltar na questão das referências. Você falou no choro...
ME – Desculpe, eu esqueci. É que são tantas informações e todas prazerosas. Ouvi Verdi, As Quatro Estações, Bach. Há peças de Bach que eu curto muito, mas nunca toco em público. Acho que não tenho o direito de “jazzificar” peças de gênios daquela época que são eternos. Como por exemplo, a Ária da Quarta Corda em Ré, Jesus Alegria dos Homens, coisas de trezentos e muitos anos passados. Bach tinha muitos filhos, quatorze ou quinze se não me engano. Além disso, tinha outros filhos que eram os acordes. É um precursor inesquecível e eterno. Estamos em 2012 e ainda apreciamos a obra de Bach. Bem, nossas influências contemporâneas, como já disse, é Jacob e Valdir Azevedo, música brasileira. Cantores, Orlando Silva, Francisco Alves, a Rádio Nacional, a orquestra de Radamés Gnattali, o maestro Chiquinho, o saudoso Chiquinho do Acordeão. Tive a oportunidade de estar com ele em diversas gravações em estúdio. Junto com Sebastião Tapajós, que é um artista do violão clássico e popular que vive lá em Santarém. Compus com ele umas quarenta músicas, quinze gravadas e as outras vinte e cinco são inéditas. Estou dando outras abordagens, mas não esqueci o que você perguntou. A gente vai selecionando e ficando com poucas metas de repertório e estilo. Então, fui definindo a minha preferência. Aprendi a desenvolver chorinhos na harmônica. Como exemplo, Odeon de Ernesto Nazareth. Ouvi Villa Lobos, mas me afinei com executantes de choro. Ouvi coisas antes do choro, como o maxixe, que contribuiu com a formação do samba. Li enciclopédia de Jorge Guinle sobre jazz. Me vi mencionado em livros de jazz no exterior, coisa de uns quinze anos pra cá. Compensa muito. Não estou me exibindo, é que é muito gratificante, depois de tantos anos dedicados à música ver que meu nome não passou despercebido. Entra num somatório. Isso até me emociona.
EM – O Brasil hoje conta com uma profusão de gaitistas, tanto na gaita diatônica, quanto na cromática. Como você vê o florescimento do instrumento?
ME – Concordo. Vou resumir isso em duas palavras de minha parte: missão cumprida. E não me queixando, “missão comprida”. Porque é uma lista de muita gente que me deu a honra de ter captado a minha experiência. Espero que não só como músico. Mas também lições de vida. Toquei com o Nelson Aires, muito importante. Tive vários ídolos na gaita bem antigos, Borrah Minevich. Segundo uma contracapa de um LP de dez polegadas, Borrah Minevich falava que meio mundo toca harmônica e meio mundo gostaria de tocá-la. É um exagero, mas faz algum sentido. Ele fez uma participação em um filme chamado Always In My Heart, cuja composição é de Ernesto Lecuona. Um filme inesquecível com Kay Francis e Walter Houston, pai do diretor John Houston.
EM – (risos) Então, e como você vê essa profusão de gaitistas? Muitos influenciados pelo blues.
ME – É verdade. Isso é uma coisa natural, porque no século dezenove o jazz sofreu influências bastante perceptíveis oriundas da África, assim como o nosso samba. O choro foi influência da Europa, da música francesa e outras origens. Mas o maxixe, o samba, a bossa nova a base é a África. Os cantos dos negros africanos geraram a improvisação, seja cantando, ou em batuques, na comunicação, via tronco de árvores. Verdadeiros telegramas sonoros da época. Geraram interesse na América e no Brasil. E o Brasil por sua vez capturou influências norte-americanas do jazz. Na minha infância, nos bailinhos, costumava dançar ao som de orquestras de Tommy Dorsey, com um crooner chamado Frank Sinatra, que viria ser famosíssimo, tanto na música quanto no cinema. Ouvia outros cantores, como o Bing Crosby. Eu estava em Friburgo com meus pais e havia um sucesso de 78 rotações que se chamava Bahia, Na Baixa do Sapateiro, cantado pelo Bing Crosby. Do outro lado era You Belong to My Heart, em espanhol, Só Lamente Una Vez. Eu tinha 13 anos de idade, em 1945, e já fiquei fã do Bing Crosby, a voz de tenor. Em seguida o Frank Sinatra jovem já fazendo sucesso. As jovens rasgando sua roupa como aqui no Brasil rasgavam a roupa do Cauby Peixoto. O preço da popularidade. Isso tudo foi formando as minhas preferências. Ouvia também as orquestras de jazz. Em 1950 ainda ia servir o exército no forte de Copacabana, quando ouvi a orquestra de Stan Kenton, Maynard Fergunson, o trompete mais agudo do mundo. E os arranjadores da banda do Kenton. Tudo isso faz parte do meu acervo. Às vezes eu tenho de te pedir pra me interromper e me perguntar de novo que eu esqueço... (risos).
EM – Não tem problema. Nós temos espaço.
ME – Eu sou assim. Preciso assimilar pra compensar a dificuldade de leitura. Eu fui testado pelo Idris Bodriaux que pra mim é um dos sax alto mais importantes do mundo. E que me testou com cinco ou seis páginas, escreveu as divisões, e eu cantarolei tudo. Respondi ritmicamente tudo correto, mas tenho barreiras, tenho limitações. Mas também tenho uma ânsia de citar as coisas. Vi filmes importantíssimos. Não tenho muita paciência pra ler. Já folheei enciclopédias. Biografias de músicos como Charlie Parker, que é o gênio da música popular de todos os tempos, e alguns que fizeram a escola Charlie Parker, como Phil Woods e principalmente Cannonball Adderley. Tive a honra de ter músicas gravadas por ele, junto com o Bossa Rio, Sérgio Mendes. Sérgio que foi muito importante, toquei com ele no Bottle’s bar, no Beco das Garrafas.
EM – Você pegou o início da Bossa Nova, fale sobre isso.
ME – Peguei nascendo e compus muitas músicas na bossa nova e músicas chamadas de samba jazz. Mais do que bossa nova. Tenho umas bossas como Batida Diferente, com o saudoso Durval; Sambop, Estamos Aí, Tristeza e Nós Dois. Sambop foi carro chefe da Leny Andrarde e Estamos Aí também, mas quem gravou primeiro foi Claudete Soares, xará da minha esposa. Acho eu que a Claudete Soares teve um papel importantíssimo e devido à mudança dos valores musicais de todos os países acho que ela foi um pouco injustiçada. Omitida no tempo. Porque os gostos, os modismos, as roupas e a música não podia ser exceção.
EM – Mas a boa música nunca morre.
ME – Aí é que está. No fundo eu queria dizer isso, no fundo a música nunca morre. Fiquei amigo do Tom Jobim, tenho de citar alguma uma coisa em gratidão ao Tom. Um dia ele me ligou e perguntou como se soletrava o meu sobrenome, aí eu disse pra ele e perguntei porque. Ele disse que a Ella Fitzgerald gravou na América Um Abraço em Tom, até comprei o importado porque ele disse que ia citar o meu nome, o gaitista chamado foi o Toots Thielemans que eu conheço desde 1962. Me perguntaram ali no café se eu conhecia o Toots e eu disse: “Eu só conheço o Toots Thielemans”. Conheço quinhentos gaitistas, mas o que me toca mais, que me influencia é o belga. Daí o Tom me perguntou se eu gostaria de me corresponder com ele e eu disse que não acreditava. E ele: “Mas é o que vai acontecer, me dá o teu endereço”. Depois de um mês recebo uma carta, primeira de mais de duzentas, inúmeros telefonemas e troca de discos. Ficou sendo um irmão meu da harmônica com dez anos a mais. Ele está com noventa anos e na ativa.
EM – Essa ia ser a minha próxima pergunta, mas tudo bem.
ME – (risos) Eu não sabia, não estou vendo o teu papel. O Toots foi uma paga tão grande quanto vai ser agora o Kenny Barron, outro ídolo. O Oscar Peterson veio ao Brasil e eu fui lá com oito capas pra ele autografar, tocando com Joe Pass, mas ele autografou só duas e ele me disse: “Maurício I’m sorry, I’m tired. I need to sleep a little bit. Two is enough?”. Eu disse mais do que isso. Depois de cinco anos fui ao Teatro Municipal, onde ele tocava sozinho e contei a história e ele me perguntou se eu havia levado as outras seis pra ele autografar.
EM – Só pra voltar um pouco no Toots Thielemans, ele completou noventa anos agora em abril e eu vi uma entrevista com ele em Nova Iorque e estava tocando Retrato em Branco em Preto de uma forma maravilhosa, daquele jeito. Gostaria que você falasse sobre a paixão do Toots pela música brasileira. Vocês conversavam sobre isso?
ME – Na época que ele gravou com a Elis eu estava com a loja de discos no Edifício Condor lá no Largo do Machado, e em uma das duzentas cartas que nós trocamos ele me disse que estava com a Elis e seus rapazes. Ele tratava os músicos assim e o Roberto Menescal escreveu e a Elis também. A Elis conheceu antes de mim, eu falava muito dele, mas não nos conhecíamos pessoalmente, isso foi em 1967/68. Não tenho certeza se a gravação foi na Suécia para a Philips. Em seguida, veio outra carta do Toots e a Elis escreve: Morra de Inveja”. Tenho isso tudo em uma pasta, documentado. São os prazeres da vida de músico.
EM – E a história com o presidente João Figueiredo? É verdade que ele era gaitista amador? Vocês chegaram a tocar juntos?
ME – Era. Tocamos na Granja do Torto, em Brasília. Um fato curioso é que ele tinha toda uma segurança pronta para garantir a integridade do presidente. Então, eu tinha uma pasta com umas quinze gaitas, uma das quais uma Honner que o Toots se apaixonou pelo som, mas vinte por cento era o meu sopro mesmo, e ele me perguntou se eu vendia aquela gaita. Eu não sou mercenário, não ia vender uma gaita para o meu ídolo e disse que a gaita era dele. E eu carreguei no meio daquelas que eu tinha lá, e eu acabei presenteando o presidente com a gaita que o Toots me deu. Aí ele disse para tocarmos juntos e tocou alguma coisa gaúcha, típica, não sei se ele era do sul. Ele tocou uma toada que eu nunca havia ouvido. E eu como tinha tarimba de conjunto de gaita, sabia secundar, fazer acompanhamento e soou muito bem. Na hora que eu peguei uma gaita pra dar pra ele os seguranças já colocaram a mão na arma prontos para me fuzilar. Existe isso, isso acontece toda hora, você vê que o Ronald Reagan quase morreu, quem morreu foi o segurança. O Papa também. Uma pessoa muito exposta tem de ter segurança. Então, quando eles viram tratar-se de uma gaita acabaram relaxando.
EM – E ele tocava bem?
ME – Tocou razoavelmente bem pra um amador. A dona Dulce estava presente. E comigo havia uns trinta, o Carlos Galhardo estava lá. Jair Rodrigues, muita gente. Alguns já subiram.
EM – Você já tocou com grandes nomes da música. Elizete Cardoso, Maria Bethânia, Toots Thielemans, Jim Hall, Ron Carter, só para citar alguns. Gostaria que citasse dois ou três momentos emocionantes nessa trajetória.
ME – Todos me emocionam. Gravei Bárbara com o Chico Buarque. Fiz agora, dia 29 de maio, oitenta anos e comemorei tocando com Alberto Chimelli, Luiz Alves, João Cortês, piano, baixo e bateria, respectivamente. No Teatro Vanucci, Shopping da Gávea. Teve uma canja inesperada com a Leny Andrade cantando Lamento, de Pixinguinha e Vinícius. Então, todos esses momentos são medalhas conquistadas. Agora, o momento mais gratificante da minha vida, você quer me perguntar?
EM – Quero, qual foi?
ME – Foi quando o meu pai me assistiu aos 13 anos na Escola Nacional de Música. Tem um retrato do evento, é uma montagem, em cima estou com meu companheiro já falecido chamado Manoel Lastermarcher com a gaita simples, não a diatônica, tocando gaita caseira, a Rapsódia Húngara N° 2 de Lizt. E bisando com Sweet Grand Canion de Grouya, se não me falha a memória. Ele era o solista e eu fazia o acompanhamento. A outra foto, tirada do auditório da Escola Nacional, em 1945, eu tinha 13 anos e ainda não pegava gaita de chave, ou cromática. Foi a primeira vez que meu pai veio me prestigiar e na foto ele está ao lado da minha mãe. A segunda vez eu estava no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, próximo ao monumento dos pracinhas, tocando como membro do quinteto do Victor Assis Brasil com ele ao piano, além do saxofone ele tocava piano, identifiquei meu pai de costas. Havia mais de seiscentas pessoas o local lotado. Eu pedi pra sair que meu pai estava lá e isso para mim era um fenômeno. Ele me disse pra sair e voltar em dois minutos e quinze pra fechar a suíte. Aí eu fui apertar a mão de meu pai e ele me puxou já com lágrimas nos olhos e me disse: “Maurício, eu me equivoquei quando disse pra você ter um anel de grau no dedo. Peço que você me perdoe”. Ele falava que se eu fosse gaitista como ele a minha mãe ia penar muito. Falava pra eu tocar gaita só como hobby, não por profissão.
ME – Voltei correndo, afoito, sem fôlego e segurando as lágrimas porque estava emocionadíssimo. Todas foram pagas, mas essa foi a maior paga. Senti que estava no caminho certo. Ontem depois do show vieram falar comigo, pedir autógrafo e isso é maior do que qualquer cachê. A vida é ver o teu pai dizer que estava enganado e que você é bom demais.
EM – Entrevistei Flávio Guimarães e ele me disse que o senhor chamava a gaita diatônica de porrinhola...
ME – O negócio é o seguinte. Foi assim que meu colega do Liceu Franco brasileiro apelidou, Túlio Jardim, tomara que esteja vivo e se estiver deve estar com uns oitenta também, passamos um tempo sem nos ver e um dia ele me encontrou na rua e disse: “Eae Maurício, ainda tá tocando muita porrinhola”? E fazendo aquele gestual da mão, deslizando uma gaita na boca. Eu respondi: “Não, quem ta tocando porrinhola é a tua tataravó torta seu filho da mãe”. (risos). E eu nunca esqueci.
Agora, quando eu ouvi um ídolo dele e meu, pianista e gaitista, que agora me foge o nome, mas ele é importante porque o Flávio me sugeriu que tocasse com ele lá na Barra da Tijuca. Se eu não lembrar o nome, fico devendo essa informação. É um ídolo do Flávio. Ele ligou da casa dele e falamos uns dez minutos... Howard Levy era o nome dele. Toquei um tema que fiz ontem aqui, o Autumn Leaves. Quando ouvi o Howard Levy, ouvi uma faixa do baseada em um standard do Charlie Parker. E depois ouvi uma segunda, uma terceira e ouvi todas. Mas depois da terceira, isso é uma opinião minha não estou definindo nada, o timbre da gaita diatônica, na qual o solista faz artesanalmente os semitons, os bemóis, pro meu tímpano é cansativo. Porque é uma forçação de barra, o cara fabrica meio tom abaixo na marra. Quer dizer espremendo uma nota. Espremendo um sol bemol pra ele se tornar um fá sustenido. Ele espreme com a embocadura.
EM – Que é chamado de bend.
ME – Sim, o Bend. Você toca diatônica? É isso que enjoa depois de você ouvir várias faixas. Olha, colocando de lado a maestria do Howard Levy, hein? Eu não consigo ouvir muito o tocador de gaita diatônica, embora ela seja pioneira, as primeiras são de 1840/50 durante a guerra civil norte-americana. Vinte anos antes de Mathias Hohner se tornar o industrial número um da gaita. E ainda ficou até 1920. Por informações de gaitistas de São Paulo, fiquei sabendo que o Borrah Minevich, que nasceu em 1903 e que por volta de 1921 teria aproximadamente dezoito anos, foi o incentivador da gaita com chave que daria, igualmente ao piano, todas as notas, brancas naturais e pretas que são os sustenidos ou bemóis. Eu comecei tocando gaita caseira que meu pai e minha mãe já tocavam e se conheceram aqui no Brasil cada um tocando sua gaita de bolso. Cada um trazia uma gaita no bolso traseiro. Aos cinco anos ganhei uma gaita porque eu chantageei meu pai, não parava de chorar. Aos doze anos conheci um camarada chamado Luiz Albernaz Filho e ele me propôs uma gaita de chave média da Hohner, não sei se meu pai comprou ou ganhou. Eu matava aulas no colégio pra assistir ensaios de gaitistas. Dá tempo ainda?
EM – Sim, todo tempo do mundo (risos).
ME – Minha mãe me levou na sapataria São Luiz, rua do Catete, 300, no Flamengo. Quase passando a rua Machado de Assis, onde havia ali o Café São Paulo. Café de coador, ainda não existia café expresso. Ali minha mãe chegou pra comprar um sapato e ela falou bem assim: “Dá um sapato pro meu filho que não merece”. O vendedor perguntou por que minha senhora? Era o Augusto, o gaita baixo do quinteto que havia lá, os filhos do dono da sapataria tinham um conjunto que se chamava Brodway Boys. Ela disse que eu não merecia porque só pensava em gaita e que estava de segunda época no colégio. Aí ele me pediu emprestado e me levou para os fundos da sapataria e debaixo da caixa registradora antiga, grande, prateada, abriu um gavetão com cinqüenta gaitas. De todos os tipos. Fiquei eletrizado ao ver aquilo. Eu perguntei se eles vendiam gaita lá e ele me falou do conjunto e perguntou se eu queria assistir o ensaio e disse pra trazer a minha gaita. Eu não fazia jazz, fazia firulas. Eles me chamaram de “caboclo enfeitador” porque eu fazia firulas o tempo todo, uma tendência pra fazer improvisação. Mas passei a fazer parte do conjunto. Ali tocou o Manoel que eu já fiz alusão da Escola Nacional de Música, o José de Barros Josuá, o Hélio, solista. O Augusto, o Juca. Todos do conjunto já estão falecidos. Viria aproveitar essa experiência com o Edu da gaita, que conheci nos corredores da Rádio Nacional treinando o Moto Perpétuo que seria exibido em disco em 1956. Quando casei em 67 me encontrei com o Edu e ele veio à minha casa e tocamos a noite inteira. Ele perguntou se eu conhecia o repertório e eu peguei um álbum com doze discos de 78 rpm, inclusive o Moto Perpétuo. Tocamos umas músicas do “Tio Sam” e ele me disse que ficou arrepiado: “O que é isso? Você sabe se situar em segundo plano. Você não é escravizado pelo ego de querer aparecer mais do que o outro”. Aí eu disse que tinha experiência em conjunto de gaita e ele ficou maravilhado. Tocamos das onze da noite até às seis da manhã do dia seguinte. A minha primeira mulher que trabalhava com os pais foi dormir...
EM – Ela não levava a vida na gaita.
ME – (risos) Oportuna essa. Ficamos lá feito dois tarados. Ele era o maior nome da gaita.
EM – E os gaitistas de blues, você tem contato?
ME – O Otávio Meireles Magalhães Castro, filho de um saudoso amigo baterista, o Everardo Magalhães Castro. O Jefferson toca em ambas as gaitas e está aqui no festival. O Flávio Guimarães, eles me presenteiam com os discos deles. Eu quando posso também. O Temístocles, que não foi aluno meu, mas é um luthier. O Isaías que trabalha mais de 30 anos na Vale do Rio Doce. O Rido Hora é um dos meus ídolos. Outro dia fui assistir o Gabriel Grossi com o Hamilton de Holanda.
EM – Aos 80 anos, há alguma coisa na música que ainda não fez e que gostaria de fazer?
ME – É pretensão, ambição, mas não é inveja dos músicos eruditos. Até hoje eu não tomei a decisão de tocar na gaita a Ária da 4° Corda em Ré, de Johan Sebastian Bach. O que eu acho que vai surpreender muita gente que pensa que eu toco somente música brasileira, bossa nova e jazz. (Nessa altura da entrevista acontece uma coisa surpreendente pra mim. O Maurício solfeja o tema em questão e seus olhos se enchem de lágrimas. Ele comenta que se emociona só em pensar em tocar). Isso é uma loucura de bonito. Isso é Deus. É a iluminação. Jesus Alegria dos Homens é outra coisa. Eu dou pra alguns alunos. Um dia coloquei um aluno meu, o Pedro Simões Flores Viana, apelido de Pepeu, que hoje é engenheiro mecânico, pra abrir um show meu em Campos. Eu, Nelson Aires e Arismar. Sem bateria. Coloquei o Pepeu pra abrir o show com essa peça, depois ele tocou Corcovado comigo na segunda voz.
EM – Há alguma coisa que eu esqueci de perguntar ou você esqueceu de falar? (risos)
ME – Sim, quero agradecer a oportunidade dessa entrevista, ao público que nos proporciona grandes momentos. Ao Stênio a colaboração do Jefferson, de me encontrar com o Romero Lubambo, conhecer Kenny Barron com que irei gravar no Rio, junto ao Rafael Barata (bateria), Lula Galvão (guitarra), Sérgio Barroso (contrabaixo) e o próprio Kenny ao piano.
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