Ultimo contato com o maestro Gilberto Mendes,
dezembro de 2015
Meu primeiro contato com a arte de
Gilberto Mendes foi no 33° Festival Música Nova, em Santos. Até então, só havia
ouvido falar ou lera sobre o maestro, seu festival e aquela música esquisita em
um jornal local.
Até ouvir a reprodução de Ulysses em Copacabana Surfando com James
Joyce e Dorothy Lamour pelo coletivo belga Het Spectra Ensemble, pra mim, música
atonal era Sex Pistols.
Aquela noite de domingo, 17 de agosto
de 1997, mudou minha vida. Cursando o segundo ano do curso de Comunicação
Social em Santos, me senti na obrigação de sair de casa debaixo de chuva para
tentar aprender o que era a tal da “Neue Musik”, que já não era tão nova assim.
Nunca tive curiosidade para outras
coisas que não música e literatura. Aprendo tudo o que posso com os recursos
que tenho a mão. E foi naquela noite memorável que percebi que estava perdendo
um tempo precioso.
Não que a música dita popular que
curtia na época e curto até hoje seja ruim, nada disso. O que percebi, foi que havia
perdido muito tempo justamente por não ter curtido a maravilhosa música erudita
executada pelo Het Spectra Ensemble e, por extensão, todos os outros artistas
que haviam estado naquele festival gratuito e que acontecia há anos na minha
cidade.
Porra, como isso pode acontecer? Como
um cara como eu, malaco em tudo o que acontecia no mundo da música, não sabia o
que se passava todos os anos, volto a repetir, na minha própria cidade? Ainda
mais em um país onde tudo o que é relativo a cultura não passava da quinta
edição, o Música Nova já havia completado mais de trinta invernos!
Vi o maestro pessoalmente pela
primeira vez naquela noite. Ainda sob o impacto do concerto do Spectra, fui
chegando perto da roda de conversa em que se encontrava Gilberto e fiquei por
ali. Na primeira oportunidade dei o bote. Não lembro qual foi o teor da conversa,
nem me importa, devo ter falado alguma merda. Queria mesmo era conhecer o
tiozinho responsável por aquilo tudo e sair dali com uma entrevista agendada. A
impressão que ficou foi das melhores. Ele tratou muito bem o aluno de
comunicação desconhecido, como depois fui descobrir, tratava todas as pessoas.
Gilberto era de um cavalheirismo
impar. Mesmo quando partia para a crítica contra os políticos santistas da
época, mantinha a linha. Sempre no campo das ideias.
E não foram poucas as críticas, na
mesma proporção em que o festival aparecia na mídia nacional e internacional
por suas qualidades, aparecia também pelas suas incertezas. Se já era difícil
ao artista Gilberto ter de lidar com as encrencas da produção, tornara-se insuportável
ter de passar o chapéu entre as empresas e lidar com as mentiras do poder
público.
Passei a escutar a música erudita e
eletro acústica com atenção, por influencia do Música Nova e de traz pra
frente. John Cage, Guerra Peixe, Claudio Santoro, Karlheinz Stockhausen, Pierre
Boulez e Edgar Varese (os dois últimos também por influencia de Frank Zappa),
passaram a freqüentar a minha vitrola.
Com o tempo outros encontros com
Gilberto aconteceram. Certa vez tive uma ideia louca. Apareci do nada em seu
apartamento com um monte de discos embaixo do braço para ele ouvir e comentar.
E ele topou na hora! Ouvimos Buddy Guy, Billie Holiday, Frank Zappa, João
Gilberto, Beatles, Fernanda Porto, Lenine, Wynton Marsalis, Paco de Lucia, Van
Morrison, Paulinho da Viola e outros. Depois bebemos café preparado pro sua
esposa Eliane, sempre presente. Ainda convenci um editor a publicar isso.
Em 2008, a pedido de José Luiz Tahan,
da Realejo Livros e edições, comecei uma série de entrevistas com Gilberto. A
ideia era reunir informação suficiente para editar um livro sobre suas
experiências, não só na música, mas também em outras duas paixões, o cinema e a
literatura.
Mesmo conhecendo a generosidade de
Gilberto, mais uma vez o velho maestro me surpreendeu. Em sua casa há algumas
prateleiras com mais de 20 pastas reunindo todos os seus artigos escritos para
diversos veículos de comunicação desde os anos 60, uma verdadeira coletânea
sobre seus pensamentos. Sem titubear, Gilberto disse que eu poderia levar todas
elas pra minha casa e selecionar o que achava relevante. Uhauuu! Todo seu
arquivo pessoal a minha disposição. Obvio, fiz a limpa. Levei tudo pra casa,
abri uma por uma e copiei os artigos que me interessavam sobre música erudita,
popular, bossa nova, cinema, Santos.
Lá pela terceira entrevista levei um
banho de água fria do mar, o maestro me contou que ele próprio estava
escrevendo suas experiências (o que ficou comprovado com o lançamento do livro Viver Sua Música – Com Stravinsky em meus
Ouvidos, Rumo a Avenida Nevskiy, editado pela Edusp em parceria com quem?
Claro, Realejo Livros, que não perde o tempo nem a viagem).
O que eu poderia contar sobre Gilberto
Mendes que ele próprio não contaria cem vezes melhor? Se é que há consolo,
fiquei com todos os artigos guardados que havia copiado meses antes e, sempre
que posso, viajo pelo seu mundo.
Passei a respeitá-lo mais quando soube
que havia sido militante do Partido Comunista Brasileiro. Em uma época em que
não se escondia o rosto atrás de mascaras e atrás de perfis falsos na internet,
não foi pouca coisa.
Nasceu e morreu em Santos, e entre os
dois atos, viveu e exaltou as particularidades e as belezas da cidade.
Denunciou suas feiúras. Entre elas, a
política cultural do município. Quando certo prefeito extinguiu a Secretaria de
Cultura do Município, foi uma das vozes que se levantou contra.
Certa vez um funcionário da prefeitura
sabendo que havia estado recentemente com Gilberto me perguntou se “ele havia
batido muito na prefeitura”. A minha resposta foi: “Muito”.
Talvez por isso, seu evento tenha sido
preterido ao dos outros. Talvez por isso, ninguém na esfera política santista
tenha dado muita bola a sua música atonal e seu pensamento atonal.
Talvez por isso, as verbas tenham ido aos
afagadores do poder. Talvez por isso, o Música Nova não tenha sido conhecido e
freqüentado pelos santistas.
Por tudo isso, perdemos o festival
para Ribeirão Preto.
Porra, como isso pode
acontecer? Como um cara como eu, malaco em tudo o que acontecia no mundo da
música, não sabia o que se passava todos os anos, volto a repetir, na minha
própria cidade?
(Texto escrito a pedido da jornalista Márcia Costa para ser publicado na Revista Pausa especial sobre Gilberto Mendes: http://revistapausa.blogspot.com.br/)
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