terça-feira, 29 de outubro de 2019

O novo jazz da capitania de Pernambuco, Amaro Freitas Trio

Hugo Medeiros, Amaro Freitas e Jean Elton (foto: divulgação)

Textos e fotos: Eugênio Martins Júnior

A primeira vez que ouvi o nome do Amaro Freitas foi com o lançamento do Racif, em 2018. Como o sangue negro derramado todos os dias nas perifas aqui no brasa, Sangue Negro, seu primeiro trabalho, também foi ignorado pela mídia gorda.
Foi mesmo quando Racif ganhou as páginas das revistas da gringa que o Brasil começou a se ligar nessa galera nova que vem lá da capitania de Pernambuco: Amaro Freitas (piano), Jean Elton (baixo acústico) e Hugo Medeiros (bateria).
Racif, Arracif, Arrecife, Recife - cidade estuário, como a descreveu Fred Zero Quarto, do Mundo Livre S/A - com porto, canais, chapada de periferias e com todas os problemas de uma capital.
E Amaro, Elton e Hugo fizeram a trilha sonora para esse filme. Uma música forte, cheia de polirritmias, atitude e genialidade.
Amaro fugiu da sanfona bucólica e do samba jazz saltitante pra contar, batucando nas teclas do piano, a sua própria história.
O primeiro álbum, Sangue Negro, é um chute na cara da preguiça. Todas as músicas são autorais, mas ainda fincadas nas raízes culturais de sua Recife. Encruzilhada abre o disco e a gente logo saca que tem veneno ali naquele frevo.
Sangue Negro colocou Amaro Freitas Trio no mapa. Subindo o Morro começa quebrada como uma viela, mas logo chega o tema e ali o trio mostra que também sabe ser introspectivo quando quer. Sangue Negro fecha o álbum e é impossível não ver ali a cizânia racial em que estamos metidos. Ouça você mesmo e depois me fale.
Como a cidade estuário, Racif, como já foi dito, já veio aberto para o mundo. O jazz livre come solto ao longo das nove faixas lançadas pelo selo inglês Far Out: Dona Eni, Trupé, Paço, Rasif, Mantra, Aurora, Vitrais, Plenilúnio e Afrocatu.
Fiz essa entrevista com o Amaro em setembro de 2019, por ocasião de um show do trio aqui em Santos. Cidade estuário, cheia de canais, com porto, chapada de periferias escondidas atrás dos morros e com muitos problemas ignorados há décadas.


Na mesma semana, o Sesc Santos inaugurou a exposição Pret Atitude, com curadoria do arquiteto Claudinei Roberto da Silva. Demos um rolê e expliquei que aqueles eram artistas brasileiros que usam a exclusão racial/social como tema de seus trabalhos. Amaro identificou a arte urbana de Aline Motta, Marcelo D’Salete, Peter de Brito, No Martins, Rosana Paulino, todos na mostra, com a sua. E pirou.



Eugênio Martins Junior – Me conte, como é que foi que você fugiu da sanfona?
Amaro Freitas – (risos) A sanfona é o instrumento que representa Pernambuco e o nordeste. E eu toco piano. E esse tocar piano não é no formato que as pessoas estão acostumadas, erudito ou popular. Toco como se fosse uma percussão. Que também é uma característica muito forte do nordeste. Tem algumas coisas que eu poderia dizer que são fundamentais na minha música. O lirismo, por conta da minha formação dentro da igreja. Igreja de periferia, canela de fogo, aquelas pentecostais. Meus pais são evangélicos. Tive contato muito forte com o ritmo e quando percebi que poderia fazer isso no piano foi uma coisa que me seduziu. Estudo muito isso, clave, ritmo negativo, polifonia. Harmonia também é uma das coisas que me apaixona. Me formei em harmonia tradicional, em produção fonográfica na Universidade AESO e criei uma ligação com piano de um trabalho inteligente, dez a doze horas de estudo. Tentando chegar nesse caminho. Claro, sendo influenciado por várias coisas locais de de fora. Mas tentando encontrar uma originalidade que é minha.

EM – Fala um pouco sobre a tua infância.
AF – Minha vida toda foi uma ralação. Vim de uma periferia chamada Nova Descoberta, que é na zona norte do Recife, e lá na minha escadaria, que ligava o Córrego do Eucalipto ao Alto do Progresso, só eu e um outro cara tínhamos pai. A maioria dos moleques e das meninas não tinham pai nesse lugar. E isso influencia na probabilidade do que será o futuro daquela criança. As mães saiam para trabalhar e não sabiam como ficariam os filhos. Tive pais que fizeram tudo por mim. Da escola particular até a quarta série e só me deixaram trabalhar depois dos 19 anos. Muita coisa fiz por minha conta. Meu pai não conseguia fazer tudo. Mas entendi isso aos 15 anos, quando entrei no conservatório e ele não podia pagar. Então me sinto como uma pessoa que quer fazer algo pelas periferias. Onde as informações não chegam. As vezes as pessoas não sabem o que é um piano. Talvez não saibam o que é uma sanfona. Talvez não saibam o que é música popular e música erudita. E isso é um problema muito sério. Não quero ser uma exceção. “Ahh você teve mérito e conseguiu”. Porra nenhuma. Não existe isso. Tive oportunidade, uma base familiar, como todos deveriam ter. E isso está totalmente ligado ao tipo de construção social que a gente tem no Brasil.


EM – Desde o império que Pernambuco é um dos estados mais importantes do Brasil. Em todos os sentidos, político inclusive. E também é um lugar onde músico bom cai de árvore. Como você sente isso? Quero dizer: “cara eu faço parte disso”. Ou: “pô, é pesadão representar essa tradição”. Ou é: “não, eu tô aqui justamente por causa disso”. 
AF – Sim. Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro são três lugares fundamentais para a nossa formação cultural. E de uma forma natural, eu diria, sempre surge alguma coisa. Não há uma galera em Pernambuco que está tomando conta da cultura e que está procurando novos caminhos e etc. Isso não existe. É uma coisa que aflora e vem dos lugares que você menos imagina. Da minha formação no piano na Nova Descoberta ao Moacir Santos, Alceu Valença, Lenine, Cordel de Fogo Encantado, Spok Frevo, Maestro Forró e Orquestra da Bomba do Hemetério. A coisa nasce. A gente tem lá a dificuldade de viver da música. Moro em Pernambuco, mas circulo muito mais fora. A maioria das pessoas têm de descer para São Paulo. Mas eu consigo morar lá, estou nessa linha do tempo, o que surgiu foi o Zé Manoel, o Vitor Araújo, a Sofia Freire, uma nova geração de pianistas. Fora a cena brega de Pernambuco que está bombando. O rap também, o slam das minas é uma coisa que também é muito forte. E de repente nasce uma geração de quatro pianistas. Cada um com um jeito de tocar. Coisa que nunca aconteceu. Ninguém planejou. Somos consequência dessa vastidão cultural que é Pernambuco.

EM – Fazendo uma analogia Recife pode ser comparada a New Orleans, onde um vizinho toca um instrumento e o outro toca outro. E os dois ouvem o ensaio um do outro, e o cara que passa na rua está procurando dois músicos e ouve aquilo. É uma cidade cultural ao extremo. 
AF – (risos) Isso que você está falando é muito doido porque o Wynton Marsalis esteve lá e fizemos um comparativo temporal entre o frevo e o jazz. As agremiações, as manifestações nas ruas. Cara, estava acontecendo no mesmo momento em New Orleans e em Recife. Como acontece hoje. A conexão é muito forte. Poderíamos dizer que o centro da minha música é o ritmo, a polirritmia. O mesmo está acontecendo com uma galera em Israel, Europa, Estados Unidos, África, Oriente. Temos o Bad Plus, Avishai Cohen, usando a matriz do país deles. Fizemos umas turnês pela Europa e Estados Unidos e percebi que estamos na mesma sintonia, estamos nos comunicando.


EM  –  Estava vendo a passagem de som e lembrei que você começou a tocar na igreja evangélica. Entrevisto muitos blueseiros e alguns deles também começaram a carreira na igreja, ou têm a influência dela. Pra você o palco é uma igreja? Tu ali tocando com os outros músicos é uma celebração? Como John Coltrane, Santana, John McLaughlin. Ou, cara não viaja. Não tem nada a ver?
AF – Acho que a música é um portal pra se conectar através da espiritualidade, como muitas coisas. Depende da tua sensibilidade. Eu entendi que o palco era meu lugar sagrado. Sabe aquela pessoa que trabalhou o mês inteiro e não tem dinheiro para pagar as contas e está aperreada? Aí ela chega na igreja e naquelas duas horas se joga, chora, canta, grita e sai renovada. Pronto, pra mim esse é o palco. Pra mim a música é totalmente diferente do que é o padrão do mercado. Gosto do laboratório, mas de tentar levar alegria às pessoas. E receber a boa energia delas. E o palco também é o espelho do público. É incrível, quando comecei a pensar assim as coisas começaram a acontecer. Observo isso de uma forma muito séria. 

EM – Como se deu a parceria com o selo inglês que lançou Racif?
AF – Eles trabalham com música brasileira, já tem uma galera, Marcos Valle, Joyce Moreno, Hermeto Pascoal, Azymuth. E meu empresário é um cara altamente antenado. Conseguiu entrar em contato com a Far Out e começamos a negociar um disco. Essa parceria tem um objetivo e com isso tenho conseguido mais espaço, com uma agenda de shows, turnês internacionais. A parceria surgiu por causa da sonoridade do trio, mas com o profissionalismo que ganhamos com a chegada da 78 Rotações, que é a empresa que nos representa. 

EM  –  Estou reunindo entrevistas para um livro que pretendo lançar um dia, sei lá quando, e que vai se chamar Do Samba ao Jazz. Se esse livro tiver 300 páginas e levando em conta que o samba está na página 01 e o jazz na página 300, onde fica a música de Amaro Freitas. Pesa mais pra que lado?
AF – Acho que o Amaro fica pós samba jazz. O jazz do Brasil é muito conhecido lá fora pelo samba jazz. O nosso trabalho está cada vez mais virando uma música livre. A gente traz outras questões, como também a cara do Brasil. Está inclusive virando uma bússola para as pessoas da nova geração que percebe que é possível tocar assim. Sem ser só o samba jazz. Fazer uma outra música, um repertório alternativo. “E se eu quiser fazer um afrocatu jazz? Ou um frevo jazz?”. Com esse formato de piano, baixo e bateria. É curioso isso que você está perguntando , porque saiu uma matéria numa revista da Itália chamada Música Jazz, e na revista Down Beat com os 50 melhores discos de 2018 e o Racif, meu segundo disco entrou. Todas as revistas falavam sobre isso. Que Amaro Freitas não é a música que estamos acostumados a ouvir, o samba jazz e a bossa nova. Que está preocupado com outras matrizes, o Racif que é uma palavra árabe. O Trupé, que é uma modalidade de coco que nasce na cidade de Arcoverde e é tocado com uma sandália de madeira em cima de um tablado de madeira. Então acho que Amaro Freitas poderia ser a última página do livro. (risos).


EM – Quando escuto Sangue Negro tenho a impressão que vocês começam ali conversando através dos instrumentos e  depois passam a discutir e a brigar. É muito louco. Nessa música você está falando sobre a tua herança genética e cultural. Ou do sangue negro derramado todos os dias no Brasil? Ou os dois?
AF – A música é uma representatividade muito forte. Primeiro a gente troca um afro jazz, depois um be bop, um subgênero do jazz desenvolvido pelos negros. O John Coltrane é uma das principais figuras. A gente tem um momento de agonia mesmo. Começa com tam tam tam e eu entro com a clave afro. Caramba. É negro mesmo. Depois vem a confusão, porque de repente o mundo resolveu esculachar com os negros. É a parte da confusão que vocês falou. Cada um vai para um lado. A vida bagunçou, velho. O negro é escravizado e perde a sua identidade. E pensar que em alguns países da África tem a Sankofa, um pássaro, um símbolo da ancestralidade, mas que tem dois olhos. Ele olha para o futuro. E quando você tira as pessoas do lugar, elas já não tem mais a ligação com a sua cultura. A música traz essa agonia e sofrimento mesmo. Quando a gente termina está literalmente com o sangue quente, pulsante. Mostrando na pele o quanto é difícil ser negro nesse mundo. O quanto, por ser negro, você já está dez a menos do que um branco. Ou que você tem de ser dez vezes mais. Perfeito, preparado, elegante... 

EM – Mantra, do Racif, me chamou a atenção por causa do jeito freefrevojazz. É realmente muito diferente. Aí você pensou, “nesse disco vou mesmo é tocar o terror no free jazz.
AF – É um outro tipo de mantra.  A gente tem o mantra como uma música calma. Que você fica ali ouvindo pra entrar em algum transe. Só que esse é um mantra urbano. É o cara que mora ali perto do viaduto, o cara que mora do lado da pista. A nossa vida urbana é aquela realidade. Mantra é uma música livre, ela não tem um rótulo. Como assim? Ela nem é samba e nem é frevo. Linhas de baixo, de piano e eu vou improvisando em cima de estruturas matemáticas e ritmicas, o que é um outro conceito de improvisação, não dentro do campo harmônico, melodias cantáveis e tal. É um outro conceito o mantra. Paço é um frevo que entra no disco que é cheio de isorritmia e polirritmia. A gente leva o frevo pra outro lugar. Na hora do improviso ele vira um jazz classudo. Dá uma virada de chave que ninguém espera. Acho que essas músicas estão totalmente relacionadas ao tempo que a gente vive. Na minha cabeça a música é atemporal quando ela tem dois episódios. Quando é muito original e quando demarca seu tempo. Quando você escuta Beethoven, Villa Lobos, Moacir Santos, Naná Vasconcelos, Johnny Alf a música te leva pra um tempo e um espaço. E você consegue ser transportado. Mas ao mesmo tempo não tem como pensar em Beethoven nos dias de hoje. O que acontece na nossa música é que existe um trabalho de pesquisa muito grande, uma dedicação ao trabalho autoral. E a gente consegue perceber essa diferença gigante entre Sangue Negro e Racif. Vivemos em dois anos realidades distintas. Essa música representa um novo ar, um novo Brasil, pra uma coisa que já tá sendo feito. No samba, no maracatu, no frevo. Só que com outro olhar.



EM –  Resolveu peitar com jazz autoral essas gravadoras e TVs que despejam os “produtos” delas todos os dias nos meios de comunicação?    
AF – Aos 15 anos ganhei o CD do Chick Corea. Até então só tinha tido contato com a música da igreja. Quando escutei aquilo disse: “Minha Nossa Senhora, como alguém pode tocar assim?”. Só ouvia: “Ó óóóó, glória. Glória a Deus nas alturas!”. Aquilo foi uma facada no meu coração. Chick Corea foi o autor que me impulsionou a querer viver de música.

EM – Um dia tu vai contar isso pra ele.
AF – Já falei no Montreux Jazz Festival. Retomando, tive um professor que disse que talvez eu não conseguisse fazer logo o estava querendo. Disse que o importante é que eu entrasse no mercado. Para depois selecionar o que queria. Foi o que fiz. Toquei em banda autoral, banda de brega, em restaurante, mas aí você fica experiente. Até com relação a grana, com o próprio negócio. Quando encontrei esses caras foi um casamento, porque eles estavam para a música autoral. O que é legal que não tem nada de surfar na onda do outro. De pegar um grande nome. É uma coisa honesta. Nos encontramos todas as semanas para ensaiar e aí passa os trechos e aí fala da mãe, da esposa, do cachorro. Volta ao ensaio. E a gente conseguiu colocar a unidade de grupo no trabalho. As pessoas comentam isso com a gente. Há grupos excelentes, mas que não soam como se fosse uma unidade. Po que todo mundo toca com todo mundo. A gente precisa de tempo para fazer a música que queremos fazer. É possível viajar e voltar pra Recife. Na mesma semana eu toquei no Montreux, o Sesc Instrumental, no Consolação, e o This is Club, no Lincoln Center. Sabe a importância de voltar pra Recife? Quantas pessoas perdem essa referência. “Pô, o cara tá tocando em Nova Iorque. Nunca mais vou ver”. Estamos fazendo uma música que o mundo está ouvindo. É possível. A ideia do “é possível”, se perdeu. Às vezes o músico toca com o grande artista e esse é o trabalho sério. E aí grava um álbum instrumental por diversão. Não, velho. Posso ser o protagonista e só fazer meu trabalho e torná-lo sustentável. Então vou estudar muito. Vou fazer o novo. Não que seja ruim gravar os standards, Tom Jobim, etc. Mas a vida é só ida. Não podemos passar tanto tempo tocando a mesma coisa. Por que às vezes nem é mais desse tempo. O tempo já está necessitando de “outra” coisa que seja coerente com ele.

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