Texto e fotos: Eugênio Martins Júnior
Fugindo da miséria e do racismo, milhares de negros se puseram na estrada rumo às grandes cidades do norte dos Estados Unidos. A história registra dois grandes êxodos.
Por décadas, Chicago foi o Eldorado para esses afro-americanos. Talvez esse termo politicamente correto ainda não tivesse sido criado quando o jovem John Primer chegou numa das cidades mais vibrantes da América, em 1963.
Tudo era novidade para o jovem e Chicago respirava música. Nas regiões negras, South side e West side, onde moravam os novos habitantes da metrópole, a música rolava solta nas festas e nos botecos. O blues elétrico dominava a cena.
Sua mãe e seu padrasto já moravam lá. Vindo de Camden, pequena cidade encravada em uma região do Mississippi e que deu ao mundo muitos bluesmen, John Primer adaptou-se bem ao novo estilo de vida.
Perambulou pelas espeluncas ouvindo todas as lendas do blues que estavam voltando a ter prestígio e, por sua vez, fincou o pé em um dos principais clubes de blues locais.
A casa merece parênteses. Antes dos clubes Kingston Mines, BLUES on Halsted, Rosa’s Lounge, e Buddy Guy Legends, hoje famosos em todo o mundo, houve um boteco escondido num porão embaixo de um prédio de tijolos aparentes. Sua proprietária era uma senhorinha de fala mansa chamada Theresa McLaurin Needham. Seu estabelecimento, Theresa’s Louge.
Fundado em 1949, o bar definiu o que seria o som de Chicago. Todos os nomes consagrados passaram por lá: Byther Smith, Muddy Waters, Little Walter, Earl Hooker, Otis Spann, Jimmy Rogers, Howlin' Wolf e jovens artistas que também fariam história, Buddy Guy, Junior Wells, Otis Rush e Magic Sam.
Em determinado momento, John Primer fez parte da banda da casa. Enquanto se tornava músico, nesse ambiente Primer se tornou homem. Conheceu e tocou com todos os grandes.
Em seu tempo, tornou-se grande. Ganhou o apelido The Real Deal e hoje é ele quem arregimenta jovens em todo o mundo. Gravou discos antológicos: Poor Man Blues: Chicago Blues Sessions Vol. 6, The Real Deal, Stuff You Go To Watch e alguns outros.
Esteve no Brasil várias vezes, a primeira foi no Festival de Blues de Ribeirão Preto como sideman de Magic Slim. Apesar de já ter percorrido um bom trecho naquela ocasião, foi aclamado como “revelação” pelos críticos da terra do samba.
No dia seguinte de uma apresentação no Bourbon Street Music Clube, quando foi amparado pela Uranius Blues Band, John Primer falou com o Mannish Blog. A entrevista foi facilitada pelo produtor Juan Urbano. Gracias hermano.
Eugênio Martins Júnior – Você tocou e gravou com Willie Dixon, Muddy Waters e Magic Slim, músicos considerados verdadeiras lendas do blues. Gostaria que falasse sobre cada um deles.
John Primer - Tenho muito a falar sobre esses caras. Era um jovem nos anos 60 quando os conheci. Toquei com Willie Dixon durante seis meses, a primeira vez que fui ao México. Dixon era um grande homem, um grande escritor. Ele estabeleceu os parâmetros do baixo no blues. Ele é o rei dos baixistas. Era um trabalhador e ajudou muitos músicos de blues e do rock. Nunca gravei em estúdio com o Muddy. Gravamos um disco ao vivo nos anos 80 no Chicago Blues Festival. Todos dizem que BB King era o rei do blues. Sim, quando era jovem. Para mim Muddy Waters é o rei do blues. Muddy Waters trouxe o folk blues para Chicago e tornou a cidade famosa.
EM – E Magic Slim?
JP - Oh yeahhh! Foram 13 anos tocando com Slim. Ele me ensinou muita coisa. Toquei pouco com Willie Dixon, mas Muddy e slim me fizeram ser quem sou. Slim me tornou conhecido, viajamos pelo mundo todo.
EM – Vocês estiveram no Festival de Ribeirão Preto em 1988. Lembra disso?
JP – Sim. Foi um grande festival. Minha primeira vez no Brasil. Depois vim muitas vezes, mas aquela foi a primeira. A filha do prefeito nos levou a um passeio pela cidade. O pessoal da banda aproveitou bastante as festas (risos).
EM – Ribeirão Preto é conhecida pelas cervejarias?
JP – Sei disso. Estive em bons lugares lá (risos). Todas as vezes que vou a uma cidade diferente tento conhecer o lugar.
EM – Voltando à Muddy Waters e Magic Slim. Qual a principal lição que eles te deram?
JP – Como ser um líder. A ter respeito com os músicos. Seja qual for a cor da pele, não importa. Todos são músicos. Podem tocar bem ou não, mas estão sempre aprendendo. Nunca acho que um músico não toca bem, pois sei que ele pode ficar melhor. Então, no palco ou não, há de ser ter respeito. Procuro sempre deixá-los confortáveis. Trabalho para ser pago e eles também.
EM – Inspirado por uma canção do Buddy Guy, First Time I Meet the Blues, sempre faço a mesma pergunta aos veteranos: Lembra quando foi a primeira vez que ouviu o blues?
JP – (risos) Conheço a canção e adoro. Ouvi ainda no Mississippi, em um disco com o próprio Buddy Guy. Acho que conheci o blues no dia em que nasci. Ou muito criança. Minha avó tocava blues e eu adorava aquela música. Também cantava os gospels na igreja. Mas o blues era diferente. Eu era pequeno e via as pessoas tocando guitarra. Isso me tornou um bluesman. Minha mãe, que morreu há apenas dois anos, disse que quando vim ao mundo não chorei. O médico bateu na minha bunda e eu soltei um lamento uhuhuhuuhuhuuh (risos). Naquela época recebíamos todos os meses catálogos da Sears ou da Roebuck. Sempre checava a minha caixa de correio e nesse livro tinha uma seção para guitarras. Eu passava por todas as outras até chegar ali e ficar olhando. Foi assim que me tornei um bluesman.
EM – Você chegou em Chicago em 1963. Qual foi a sua primeira impressão sobre a grande cidade? A cidade do blues.
JP – Bem, não cheguei em Chicago para tocar música. Fui para trabalhar. Minha mãe já vivia lá. A música que ouvia tinha ficado no passado. Não imaginava que aqueles caras ainda estavam vivos.
EM – Mas eles estavam em evidência nos anos 60.
JP – Sim. Não Podia acreditar. Todos vivos, BB King, Bobby Bland, Muddy Waters, Lightning Hopkins. Foi uma surpresa pra mim. Andava pela cidade com meu padrasto. Ele achava que se eu andasse sozinho me perderia. Até o dia que eu saí sozinho e... me perdi (risos). Mas tudo bem. Era tudo muito excitante.
EM – Você cresceu nos campos do Mississippi. Como adaptou aquelas antigas canções ao som que veio fazer em Chicago. Quero dizer, nos anos 60 mais do que nunca o blues elétrico estava em evidência.
JP – Precisei fazer. Tive que aprender guitarra elétrica por minha conta. Sentava lá e ficava tocando, tocando, tocando. Por outro lado, não havia muita diferença. Continuei tocando o blues tradicional de outra maneira. Continuei tocando gospel nas igrejas de lá. Tive de mudar para adaptar o rock and roll, o jazz. Sem problema. Você deve fazer o que você tem de fazer. Desde que faça com sentimento. Então a mudança faz parte de todos. BB King mudou muito desde que começou a tocar. Muddy Waters mudou seu estilo também. No meu caso a mudança veio com a prática. Quanto mais tocava mais ia moldando o estilo.
EM – Quando era jovem você tocou no Theresa’s Louge com alguns dos caras que ajudaram a forjar o som de Chicago. Gostaria que falasse um pouco sobre isso.
JP – Quando cheguei lá era mais um bar pra mim. Não sabia que havia pessoas brancas tocando. Sempre toquei nos guetos, mas lá também havia brancos tocando. Pra mim foi um sentimento estranho. Outra grande mudança. Havia muitos músicos indo tocar lá. Toquei com muita gente. Fazia parte da banda da casa. Conheci muitos músicos, Otis Rush, Junior Wells, com quem passei muito tempo aprendendo sobre o blues. Quando você está em um lugar desses não toca só blues tradicional. Chamam Chicago a cidade do blues, mas lá não tocam só blues tradicional. Tocam todos os tipos de música como R&B e soul music. Com algum sentimento do blues, mas não é blues. Para mim não. Só toco blues, blues e blues. Existem muitos bares com o Blues no nome, mas todos têm duas ou três bandas da casa que tocam de tudo.
EM – Quem é o Real Deal hoje?
JP – Músico jovem?
EM – Sim.
JP – Não sei, me diga você (risos).
EM – Perguntei primeiro.
JP – Há muitos jovens em Chicago, mas todos iguais. Acho que está para nascer.