sábado, 31 de dezembro de 2022

Maior patrimônio do Brasil, a cultura volta a ser protagonista a partir de 2023

 

Margareth Menezes (Ministra da Cultura) e Lula

Texto: Eugênio Martins Jr
Foto: Ricardo Stuckert

Quando Aldir Blanc Mendes nasceu, em 02 de setembro de 1946, no Rio de Janeiro, o mundo já estava se livrando do cheiro de pólvora da II Guerra Mundial e o Brasil do Estado Novo de Getúlio Vargas. A Terra era redonda.
Apenas 16 dias após o nascimento de Aldir a constituição de 1946 que assegurava o direito de voto para presidente, deputados e senadores foi promulgada. Desse lado do mundo, o Brasil começava a respirar ares democráticos. 
Mas a mesma Constituição, alardeada como liberal, trazia alguns problemas, restrição dos analfabetos ao voto, exclusão dos trabalhadores rurais aos direitos trabalhistas e reforma agraria incompleta, o que anos mais tarde traria sérios problemas ao presidente empossado legitimamente, João Goulart, deposto em 1964 por um Golpe de Estado apoiado pelas elites, meios de comunicação e Estados Unidos. Mas a Terra continuava redonda.
Na metade da vida, quando completou 37 anos, em 02 de setembro de 1983, Aldir Blanc já era compositor consagrado ao lado de seu principal parceiro, João, um dos maiores violonistas e cantores do Brasil, o Bosco. 
Ao longo da década de 70, João e Aldir não só compuseram canções, eles construíram a crônica diária dos brasileiros, com a sensibilidade de quem repara nas coisas da vida do cidadão comum. E mais, ressaltaram os personagens africanos e aspectos do folclore nacional: Incompatibilidade de Gênios, De Frente Pro Crime, Tiro de Misericórdia, Escadas da Penha, Mestre Salas dos Mares, Corsário, Linha de Passe, Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, Falso Brilhante, O Bêbado e a Equilibrista, hino que precipitou a anistia de centenas de brasileiros desterrados com o Golpe de Estado que depôs João, o Goulart, em 1964. Mesmo com os militares, a terra ainda era redonda.
Curiosamente, também em 1983, Mary Sá Freire passou a tomar conta do Vida Noturna, bar em Niterói homônimo à composição de Aldir e Bosco, cujos itens do cardápio eram batizados com os versos de O Bêbado e a Equilibrista¹. 
Casaram em 1988 e viveram até receberem juntos a notícia que estavam com covid-19, em 2020. Mary sobreviveu, mas Aldir Blanc não resistiu, morreu em 04 de maio.
Só que nessa época, a Terra, que sempre foi redonda, passou a ser plana e um dos maiores compositores brasileiros passou a ser um zé ninguém. Aldir Blanc não recebeu nenhuma homenagem do governo brasileiro constituído desde 2018. O governo de Jair Messias Bolsonaro.
Coube à classe artística apontar a falta que faria Aldir e celebrar a sua vida e obra. O mesmo desdém para com outros artistas foi observado ao longo do mandato de Jair terra plana: Beth Carvalho, morta aos 72 anos, em 30 de abril de 2019; João Gilberto, aos 88 anos, em 06 de julho de 2019; Morais Moreira, aos 72 anos, em 13 de abril de 2020; Elza Soares, aos 91 anos, em 20 de janeiro de 2022; Marilene Galvão (Irmães Galvão), aos 80 anos, morta em 24 de agosto de 2022; Rolandro Boldrin, 86 anos e Gal Costa, 77 anos, mortos no mesmo dia, 09 de novembro de 2022; Erasmo Carlos, aos 81 anos, em 22 de novembro de 2022. Nem uma menção, um tuit, uma lembrança, nada.

Presto aqui uma singela homenagem a todos esses grandes artistas.

É certo que nenhum deles era simpático ao governo que promoveu a maior, mais sistemática e virulenta guerra cultural contra seus artistas, cientistas e professores em toda a história do país. Mais do que isso, contra seu próprio povo.
Mas o silêncio da maior autoridade do país, aquela que tem por obrigação resguardar seus símbolos nacionais, e o maior deles é a cultura, já que dela deriva a identidade de um povo, foi estrondoso. O homem que vendeu a imagem falsa de patriota provou que odeia a cultura de seu país. 
A essa altura vocês se perguntam: “mais política, Eugênio?”. Sim amigo, a música brasileira é resistência. Ou você acha que foi fácil para o Cartola? Para Dona Ivone Lara? Para Clementina de Jesus e Elza Soares? E além do mais, é preciso estar atento e forte, não é verdade Gal? 
E, além de uma celebração a uma das músicas mais belas do mundo, feita pelo povo e para o povo, uma forma de arte comparada à literatura russa, às mais belas sinfonias europeias, ao jazz norte americano, esse texto também é um protesto.
Contra a política genocida do governo Bolsonaro e os políticos brasileiros em todas as esferas. Contra a elite econômica e oligárquica, mantenedora do status quo vigente no Brasil. Contra os cinco canais abertos da TV brasileira que sempre optam pelo lucro fácil e por manterem seus privilégios econômicos por meio do monopólio, apoiando governos e atos totalitários quando lhes convém. 
A maior emissora do país que detona governos em detrimento de seus interesses, incorpora sua programação ao grande balcão de negócios que virou a “indústria do entretenimento”.
Esses conglomerados de mídia ditam as regras de quem aparece ou não na programação voltada às massas, ignorando a pluralidade de cultura brasileira, uma das mais ricas do planeta. Com seus programas de auditório medíocres, direcionados apenas aos artistas sob os grandes contratos das gravadoras coligadas, girando a roda da fortuna do sertanejo agro. Mais do que pop, agro is money. 
Trata-se de uma homenagem aos artistas que construíram a nossa identidade cultural ao longo do século passado e ainda a constroem, diariamente. 
É uma exaltação ao choro, ao samba, à bossa-nova, ao samba-jazz, ao baião, ao maracatu, à MPB desse país continental. 
Muitas formas de arte musical, ritmos, batuques, moda de viola do interior paulista, guitarrada do Pará, funk carioca, xote do Nordeste, axé da Bahia, reggae e o blues - os dois últimos não são nossos, mas fazemos bem também.
Artistas que levam o nome do Brasil a todas as partes do planeta. A despeito de política, são os nossos maiores embaixadores. Mostram a outros povos a genialidade do brasileiro. Fazendo a música que cantamos e assobiamos todos os dias sem nos darmos conta, andando na rua, no ônibus, em casa. 
Aquela música que nos toca aos ouvidos e, principalmente, ao coração. Melodia, ritmo e poesia preenchendo nosso duro dia a dia.
 
Ao morrer em plena pandemia de covid-19, que interrompeu a história de milhões de pessoas ao redor do mundo, Aldir Blanc deu o nome a uma lei que beneficiou milhares de artistas brasileiros de todas as vertentes. 
Não sem muita luta. A Lei Aldir Blanc de apoio à cultura, apelido da lei nº 14.017, iniciativa da deputada Benedita da Silva, atendendo ao pedido da classe profissional que foi a primeira a ficar sem o sustento, quando as cidades e os estados pararam devido ao lockdown, proporcionou a muitos fazedores da cultura uma chance de subsistência, ainda que temporária, inclusive livrando alguns da fome. Literalmente. 
Foi apenas um começo de reação contra o governo que desprezou a saúde da própria população e usou um vírus para fazer sua política nefasta. 
O fechamento de casas de shows, teatros e bares deixou milhares de artistas relegados à própria sorte no biênio 2020/21.
Quando ensaiava uma recuperação em 2022, o setor recebeu outro golpe do governo que em quatro anos trocou cinco de vezes seu ministro da educação, quatro vezes o secretário de cultura e colocou um policial militar para cuidar das políticas culturais do país. 
As leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo foram vetadas pelo presidente Bolsonaro sob a alegação de que impactariam negativamente nas contas públicas, enquanto a Câmara dos Deputados comandada por Arthur Lira e o Senado por Rodrigo Pacheco se lambuzam na orgia do orçamento secreto. 
Diante dos bilhões distribuídos sem critério algum e que com certeza irão impactar a vida do país nos próximos anos, até partidos do campo progressista participaram da farra das emendas de relator. 

Com Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil anunciando a reconstrução do Ministério da Cultura (MinC) o povo da cultura respira aliviado.
Nos anos em que governou o Brasil, entre 2003 e 2010, Lula foi responsável pelo fortalecimento do MinC, colocando o cantor, compositor e músico Gilberto Gil no comando da pasta.
Em 2002 os recursos para a cultura somavam R$ 770 milhões, após o primeiro mandato de Lula o orçamento chegou a ser multiplicado por cinco, atingindo uma faixa próxima dos R$ 4 bilhões em 2015, já sob o governo Dilma.
Gil e sua equipe implementaram o CPF cultural: Conselhos de Cultura em cada cidade e estado da federação, compostos por agentes culturais da sociedade civil e dos poderes locais, discutindo a melhor forma do uso de recursos; os Pontos de Cultura, visando o mapeamento dos locais e iniciativas culturais que poderiam e deveriam receber recursos públicos; e finalmente os Fundos de Cultura, de onde deveriam sair os recursos propriamente ditos para a implementação das políticas nas três estâncias, municipal, estadual e federal.
Um plano inédito foi criado para divulgar e orientar como todas essas pontes seriam construídas entre a sociedade e as respectivas Secretárias de Cultura. Em alguns municípios as atividades já estavam bem adiantadas quando Jair Messias chegou com seu rolo compressor.
Aqui em Santos, minha cidade, todas as etapas para a implementação do CPF foram vencidas e continuaram funcionando independentes da diretriz de Bolsonaro. Graças à forte cena cultural e o entendimento do poder público local de que toda linguagem artística é patrimônio dos cidadãos santistas, hoje podemos contar com políticas sólidas que já contabilizam muitos resultados positivos. Mas isso não aconteceu nas outras oito cidades que integram a Baixada Santista. Muito ao contrário, as outras prefeituras, que já não faziam muita marola pela cultura, botaram de vez o remo dentro da canoa. Aqui na Baixada só o que tem valor é cantor neosertanejo.  
Agora reeleito, em seu primeiro discurso logo após o resultado das urnas confirmarem sua vitória, Luiz Inácio Lula da Silva acenou para a cultura como nenhum outro dirigente já o fez.
No seu primeiro discurso e no subsequente, em um trio elétrico na Avenida Paulista, Lula incluiu a cultura em suas falas oito vezes. 
E como sabemos, cultura também é educação. Lula falou em “cultuarmos livros em vez de armas”, “que o povo brasileiro quer acesso ao teatro, cinema e aos bens culturais”, porque, segundo ele, “a cultura alimenta a nossa alma”. 
Falou sobre o enfrentamento do racismo e preconceito. Sobre um Brasil onde brancos negros e índios tenham as mesmas oportunidades. 
E falou enfaticamente em recuperar o Ministério da Cultura e os conselhos estaduais de cultura. E mais, que a cultura seja uma indústria geradora de emprego e renda.
A futura ministra da Cultura, a cantora baiana Margareth Menezes, de 60 anos, que assumirá o MinC em 1º de janeiro irá administrar o maior valor já destinado para o setor, mais de R$ 10 bilhões.
Para o ano de 2023, R$ 5,7 bilhões já estão incluidos no orçamento. Mais os R$ 3,8 bilhões da Lei Paulo Gustavo e R$ 1,2 bilhão para a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), financiadora de ações na indústria do audiovisual.
Para se ter uma ideia do desmonte, em 2022 último ano sob o governo Bolsonaro, o setor recebeu R$ 1,67 bilhão. Um forte contraste entre visões antagônicas sobre a cultura.
O dinheiro reservado para o orçamento em 2023 não deve ser destinado apenas aos que possuem influência e estrutura para participar de editais, mas sim, deve ser disponibilizado na criação de pontes para que os pequenos produtores atravessem o fosso da desigualdade. Cabe aos agentes do setor cultural ficarem atentos e cobrando. Porque, afinal, a arte é rebelde, é desbocada, é transgressora, é abusada, é de protesto, é crítica, é reflexiva. É tudo isso ao mesmo tempo. E por isso é odiada e perseguida pelos que a desprezam.   
Ela pode ser linda, mas também pode ser feia. Pode vir do luxo ou do lixo (Joãozinho Trinta). A arte pode ser tudo. Só não pode ser covarde.

sábado, 8 de outubro de 2022

Chega ao Brasil a vida de Robert Johnson na versão de Bruce Conforth e Gayle Dean Wardlow

 

Bruce Conforth (Foto: arquivo pessoal)

Em uma noite sem luar um homem caminha silencioso por uma estrada escura de terra que divide duas grandes fazendas de algodão no Mississippi, sul dos Estados Unidos. O ar está tão seco e abafado e sua testa está tão suada que até o chapéu incomoda. 
O barulho do trem corta o silêncio da noite a quilômetros dali. O homem chega ao entroncamento entre os caminhos, senta em uma pedra e espera. 
Poucos se atreveriam estar ali uma hora daquelas. Ainda mais sendo um negro. Caso fosse descoberto, certamente seria linchado pelo simples fato de estar sozinho naqueles cafundós.
Entre um gole e outro de moonshine ele adormece. Acorda. Espera. De repente sente um frio na espinha, seu corpo todo desperta e ele vê um vulto se aproximando. Se assusta e se culpa por não ter notado a presença antes, pois tinha a visão plena dos caminhos que se cruzavam ali onde ele estava. Pensa em pegar a faca que usa para deslizar nas cordas do instrumento, mas desiste, o vulto está muito perto.
O jovem músico sabe quem é aquela entidade, ele está ali para esse encontro. O homem é Robert Johnson e a presença sinistra é o próprio diabo.
Robert entrega seu violão e a entidade afina o instrumento como ele nunca tinha ouvido antes. Inesperadamente uma lua vermelha aparece por traz das nuvens e o diabo fala com Robert sem abrir a boca: “Se você pegar de volta esse instrumento você terá total domínio sobre ele, mas a sua alma será minha”. Robert hesita, mas toma o instrumento das mãos do tinhoso e parte madrugada a dentro. 
Meses depois reaparece nas juke joints do Mississippi com músicas como Hellhound on My Trail, Me And The Devil Blues, If I Had Possession Over Judgment Day e Cross Road Blues, deixando todos assombrados com sua técnica e seu comportamento.   
Essa estória é muito boa pra ser desperdiçada e, se dura até hoje, ainda deve funcionar para vender discos. Muitos discos. 
Mas acreditar nela é a mesma coisa do que acreditar que no inferno inventado pelos pastores das igrejas pentecostais brasileiras a dívida pelo livramento pode ser saudada no PIX ou no cartão. A diferença? O diabo entrega o que promete. 
Falando sério. Acaba de sair no Brasil pela editora Belas Artes o livro sobre a vida do lendário Robert Johnson, A Música do Diabo. 
Apesar do nome, os autores Bruce Conforth e Gayle Dean Wardlow se esforçam para liquidar de vez com o mito da encruzilhada. 
O esforço é tanto que os autores contrapõem-se até a Sam Charters e Peter Guralnick, dois conhecidos pesquisadores do blues dos Estados Unidos. 
Para Bruce Conforth, PhD, autor premiado por African American Folksong and American Cultural Politics; historiador residente na The Robert Johnson Blues Foundation; curador fundador do Rock and Roll Hall of Fame and Museum e músico estudante de guitarra do Rev. Gary Davis, tornar a dura vida de Robert Johnson em folclore chega a ser uma afronta às histórias de muitos músicos afro-americanos que vagaram pelo sul do país, criando o blues no começo do século passado.
Bruce e Gayle esmiuçaram documentos antigos durante décadas até chegar às conclusões apresentadas na obra que agora chega ao Brasil. Conforth também foi uma das principais fontes consultadas no documentário exibido pela Netflix sobre a vida de Robert Johnson. 
Bruce e Gayle conversaram com contemporâneos de Robert Johnson até descobrir como ele desenvolveu a técnica musical que revolucionou a música do Século 20. 
A importância desse relato transcende as fronteiras de tempo e espaço. Em 2022 ainda estamos lendo sobre Robert Johnson e falando sobre ele. E mais, ouvindo sua música. 
Lançar luz sobre a sua história foi o que fez Bruce Conforth.  Pela primeira vez ele fala ao Brasil sobre o seu livro. Curte aí.

The Life and Music of Robert Johnson

Eugênio Martins Jr – Como foi sua infância musical e quando descobriu o blues e Robert Johnson.
Bruce Coforth - Cresci durante o renascimento do folk e blues que estava acontecendo em Greenwich Village, em Nova York, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Comecei a frequentar no início da adolescência o famoso Izzy Young's Folklore Center na MacDougall Street, em Greenwich Village. Foi lá, e no Gaslight Cafe que ficava bem ao lado, que conheci pessoas como Son House, Mississippi John Hurt e outros. Tive a sorte de ter aulas de guitarra com Reverend Gary Davis. Então, desde muito jovem, tive um caso de amor com o blues acústico e tive a sorte de conhecer muitas das pessoas que o criaram.

EM – Qual a importância do blues e do resgate da história de Robert Johnson para a cultura americana em 2022?
BC - O blues acústico original é mais importante do que nunca porque há tantos músicos brancos que se tornaram estrelas do blues rock e tiraram a música de sua importância original. O Blues original foi a voz da experiência negra na América e, portanto, tem mais a dizer sobre nossa cultura do que a maioria das outras formas musicais contemporâneas.
Acho que foi incrivelmente importante resgatar a história de Robert Johnson, sua história verdadeira, apesar de todos os mitos que foram contados sobre ele. Porque sua verdadeira história fala sobre a cultura afro-americana, a história das relações raciais no século 20 e como um jovem negro na década de 1930 poderia criar seu próprio meio de vida.

EM – Como você vê a preservação da memória do blues nos Estados Unidos?
BC - Como disse antes, acho que a preservação do black blues original, acústico, é mais importante do que nunca porque corre o risco de se perder. Músicos brancos dominaram tanto o blues contemporâneo que provavelmente há muito poucos "fãs de blues" que sabem quem foi Mississippi John Hurt, ou quem foi Skip James, ou Henry Thomas, ou Charley Patton, ou Memphis Minnie, ou Ma Rainey. E se eles sabem sobre Robert Johnson, eles só conhecem o mito bobo sobre ele ter supostamente vendido sua alma para o diabo na encruzilhada. Eles realmente não entendem o que era aquela música ou o que era aquela parte da história americana.

A Verdadeira História da Lenda Robert Johnson
A MÚSICA DO DIABO
Por Bruce Conforth e Gayle Dean Wardlow
Editora Belas Letras

EM - Seu livro acaba de ser lançado no Brasil e já está fazendo barulho aqui entre os fãs de blues. Há uma carência desse tipo de leitura no Brasil. Você sabia que há uma forte cena de blues aqui?
BC - Eu realmente não fazia ideia de que havia uma grande cena de blues no Brasil, mas estou muito feliz em ouvir isso. A grande maioria dos africanos que foram trazidos para a América do Norte como escravos foram primeiro para o Brasil ou para o Caribe, então, em um sentido muito real, o Brasil é uma grande parte da história do blues americano.

EM – Seu livro levou algumas décadas para ser concluído e quebra alguns paradigmas em relação a Robert Johnson. Você desafia alguns pesquisadores no sentido de desmistificar sua história. Eu gostaria que você falasse sobre isso.
BC - Quando o livro estava sendo finalizado, eu costumava dizer que basicamente tudo o que pensávamos saber sobre Robert Johnson estava errado, então sim, concordo que acho que o livro quebrou vários paradigmas e desafiou praticamente todas as pesquisas que haviam sido feitas anteriormente sobre Robert Johnson. Ficarei feliz em falar mais com você sobre isso.

EM - No seu ponto de vista, ainda há muitas histórias para serem contadas?
BC - Tenho certeza de que há muitas histórias semelhantes que precisam ser contadas, mas o tempo está ficando curto - praticamente não restou ninguém vivo que estava presente quando tudo isso estava acontecendo, por isso é imperativo que documentemos o que pudermos antes que acabe. Também é importante ouvirmos os jovens artistas de blues negros para ouvir sua história e como eles se veem em relação à história do blues. Por exemplo: quão importante é para eles permanecerem fiéis à tradição?

EM - Viajando pelo interior do Mississippi, por todas aquelas cidades descritas por você, hoje ainda podemos encontrar o blues tradicional como nos primórdios? Depois de 100 anos de história?
BC - Infelizmente há muito poucos lugares onde o blues original ainda continua. Belzonia, Mississippi ainda é uma das poucas exceções onde o blues tradicional ainda vive. É onde Jimmy "Duck" Holmes ainda tem sua juke joint Blue Front Cafe e ainda toca na tradição do blues como Skip James. Existem alguns jovens músicos negros como Christone "Kingfish" Ingram, Blind Boy Paxton, Marquise Knox e Jontavious Willis que mantém esse sentimento vivo, mas infelizmente eles são a exceção.

Capa do boxset lançado pela Columbia no ínicio dos anos 90
dentro da série Roots Blues 

EM – Nos anos 60 houve um revival, que muitos gostam de chamar de “redescobrimento” do blues, e muitos artistas como Skip James, Son House, Johnny Shines e outros. Robert Johnson foi um desses? Eu gostaria que você falasse sobre isso.
BC - Robert Johnson foi um dos primeiros músicos de blues acústico que ouvimos por causa do álbum "Robert Johnson King of the Delta Blues Singers" que saiu em 1961, alguns anos antes de qualquer um deles.

EM – Robert Johnson é creditado com uma aura de mistério, mas na verdade muitos artistas se envolveram em histórias sinistras: Leadbelly foi preso por assassinato, Skip James era um contrabandista, Son House também se envolveu em crimes. O fato é que a vida desses homens não foi fácil. O ambiente era hostil aos bluesmen.
BC - Você está certo, mas o ambiente era hostil aos homens negros em geral. Para um homem negro do sul dos Estados Unidos, o ambiente era realmente muito ameaçador e desumanizante. É por isso que tantas dessas pessoas se tornaram músicos de Blues, porque eles queriam tentar escapar da vida difícil de ser um meeiro ou apenas outra forma de propriedade.

EM – O veterano Tail Dragger disse que os jovens negros nos Estados Unidos não estão mais interessados no blues. Eles só querem fazer rap hoje em dia. Você concorda?
BC - Eu nem me atreveria a falar pelos jovens negros. Como eu disse, o blues está em um estado lastimável e foi cooptado principalmente por músicos brancos, então se os jovens negros se afastassem dele porque não queriam ouvir músicos brancos tocando suas músicas, eu não os culparia. Mas realmente não posso responder a essa pergunta.

Rory Block umas das grandes estudiosas da obra de Robert Johnson

EM – Agora uma provocação. Podemos dizer que Robert Johnson, Muddy Waters e Jimi Hendrix foram os três inovadores do blues. Os três divisores. Com base nessas informações, podemos dizer que o próximo inovador está prestes a aparecer?
BC - Essa é uma pergunta interessante, mas acho que a resposta é não. É um grande equívoco pensar que a cultura é sequencial ou sempre se baseia em si mesma. Na verdade, a cultura pode se mover para o lado, para trás ou para algum lugar que nunca esperávamos, então realmente não temos ideia de qual será a próxima "inovação". A única coisa que podemos ter certeza é que haverá um.

EM - Há alguma coisa que você gostaria de falar e eu não perguntei?
BC - Como eu disse, fiquei feliz em responder essas perguntas e se você quiser mais esclarecimentos ou mesmo se tiver mais dúvidas. Agradeço seu tempo e esforço em acompanhar tudo isso.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Já estão à venda os ingressos para a 4ª edição do Sesc Jazz

 O Sesc São Paulo realiza entre os dias 5 e 23 de outubro mais uma edição do Sesc Jazz, com 20 atrações nacionais e internacionais em 54  espetáculos presenciais distribuídos em sete unidades

Dobet Gnahoré

Ao longo de três semanas, de 5 a 23 de outubro, o jazz ocupa sete unidades do Sesc SP: Guarulhos, Jundiaí, Piracicaba, Pompeia, Presidente Prudente, Ribeirão Preto e São José dos Campos. É o Sesc Jazz que chega à sua quarta edição, com 20 atrações nacionais e internacionais, atividades formativas e programação on-line, que exploram a diversidade musical da cena contemporânea ligada à memória afrodiaspórica, a tradição, a vanguarda e o território.

A programação se abre para múltiplas escolas e tradições e suas poéticas sonoras, conectando continentes, por meio de nomes consolidados no cenário artístico internacional, sem renunciar do espaço para artistas de gerações mais recentes. 
Referências mundiais como a flautista norte-americana Nicole Mitchells, o pianista congolês Ray Lema, o cornetista Rob Mazurek com sua Exploding Star Orchestra, também da cidade de Chicago, Estados Unidos, coabitam a grade de atrações com artistas jovens como o coletivo londrino Kokoroko, liderado pela trompetista Sheila Maurice-Grey, o pianista sul-africano Nduduzo Makhathini e a cantora, percussionista e multiartista Dobet Gnahoré, da Costa do Marfim. 

A presença feminina, aliás, se apresenta de forma bastante contundente nesta edição, que recebe vozes expressivas, como a da cantora peruana Susana Baca e a da brasileira Alaíde Costa, que dividirá o palco com sua conterrânea Ilessi, em um encontro geracional voltado à música negra brasileira das últimas décadas. Além das pianistas Macha Gharibian, armênia radicada na França e Kathrine Windfeld, da Dinamarca. 

A tradição da música brasileira também tem grande visibilidade durante as três semanas do Sesc Jazz com projetos significativos, como a retomada do álbum Quarteto Negro, que completa 35 anos em 2022, com três de seus integrantes originais: Zezé Motta, Djalma Correa e Jorge Degas, além do clarinetista Ivan Sacerdote completando a formação, que contava, em sua versão original, com Paulo Moura, falecido em 2010. Outro álbum lembrado nesta edição é Lágrima / Sursolide Suite, de Lelo Nazário, lançado há 40 anos. Laércio de Freitas e Airto Moreira, por sua vez, são festejados em vida, por meio de dois espetáculos-homenagem inéditos que se debruçam sobre suas obras e reúnem nomes importantes da cena instrumental brasileira.  
Um outro ponto de atenção desta edição são os concertos das Orquestra Afrosinfônica e Orkestra Rumpilezz, ambas da Bahia, em um interessante contraponto aos projetos de Chicago, presentes nesta edição, com propostas estéticas similares de diálogo entre campos musicais distintos. A primeira, liderada pelo maestro Ubiratan Marques, apresenta repertório coadunando o conceito de música de concerto às expressões afro-brasileiras tradicionais e contemporâneas. A segunda, celebra o legado de seu maestro fundador, Letieres Leite, falecido em 2021, por meio do universo artístico de outro valor da música brasileira: Moacir Santos, que neste espetáculo terá parte do repertório de seu álbum de estreia, Coisas, revisitado pelo grupo soteropolitano, por meio de seus arranjos singulares. 

Orquestra Afrosinfônica

Atrações:

Andre Christovam (BRA) - Com mais de 30 anos de estrada, seu trabalho artístico propõe a compatibilidade rítmica entre os elementos musicais brasileiros e influências advindas do blues. É autor de dois discos - Mandinga (1988) e Banzo (2002) -, que se tornaram referências e alçaram André Christovam como um dos principais nomes do blues do Brasil.  

Dobet Gnahoré (CMF) - Dobet é cantora, percussionista, compositora e dançarina. Defensora do Pan-africanismo, a Marfinense canta em várias línguas: bété, fon, baoulé, lingala, malinké, mina, bambara, swahili, xhosa e wolof, evocando as feridas, as riquezas e esperanças do continente africano. Vencedora do Grammy de 2010, apresenta uma mistura de sonoridades pan-africanas, urbanas e tradicionais.  

Abajur (FRA/BRA) - é o encontro surpreendente e explosivo entre sons e ritmos brasileiros de Jussara Marçal, Lello Bezerra, Clara Bastos e Maurício Takara e o complexo material criativo da cena europeia dos franceses Nicolas Pointard e Christophe Rocher, do Nautilis Ensemble 

Especial Laércio de Freitas Moderno e Eterno (BRA) - Moderno e Eterno é o registro de parte de um legado de Laércio de Freitas, que corria grande risco de se perder. Os shows vão contemplar algumas facetas de um dos mais importantes compositores, pianistas e arranjadores do Brasil, não à toa chamado de gênio por Radamés Gnattali e declarado por Cristovão Bastos como seu ídolo 
 
Exploding Star Orchestra (EUA) - é uma das muitas faces musicais do compositor e cornetista de Chicago Rob Mazurek. Paralelamente ao seu trabalho solo, desenvolveu esse projeto que conecta ensembles de Chicago e de São Paulo, com uma sonoridade mais eletrônica e batidas modernas.  

Ilessi e Alaíde Costa (BRA) - Encontro musical entre Ilessi, cantora e compositora carioca, que acolhe diversos modos de manifestação da música brasileira: o tribal, o sofisticado, o experimental, o sentimental, o velho e – preferencialmente – o novo, e Alaíde Costa, também carioca que, com mais de 81 anos de idade e 60 de carreira, é uma das principais cantoras vivas da história da MPB.  
 
Kathrine Windfeld (DIN) - Compositora, arranjadora e pianista dinamarquesa apresenta show com Kathrine Windfield em formato quarteto (Ribeirão Preto) e com sua big band (Pompeia e Jundiaí). Em 2014, Aircraft, seu primeiro álbum com KWBB, lhe rendeu o prêmio de Melhor Nova Artista do Ano, no prestigiado concurso Danish Music Award, em que concorreu ainda nas categorias “Álbum do Ano” e “Melhor Compositora”.  

Kokoroko (REU) - Parte da efervescente cena de jazz inglesa, o coletivo londrino Kokoroko, atualmente formado por Sheila Maurice-Grey, Cassie Kinoshi, Richie Seivwright, Onome Edgeworth, Ayo Salawu, Tobi Adenaike-Johnson, Yohan Kebede e Duane Atherley, apresenta um repertório que destaca a relação entre a música e a cultura africana.  
 
Lelo Nazário (BRA) - Compositor, arranjador, pianista, produtor e diretor musical, apresenta o show Passado Presente: 40 anos de carreira solo, que passeia pelo repertório dos álbuns Lagrima..., Se..., Simples, Africasiamerica e Projeto MI², acompanhado por velhos companheiros que estiveram ao seu lado nestes projetos: Zeca Assumpção, Rodolfo Stroeter, Teco Cardoso e Nenê. 

Macha Gharibian (FRA) - Pianista francesa, Macha Gharibian é também cantora, compositora, arranjadora e assina a produção dos seus álbuns. Apresenta em seus trabalhos uma fusão das influências de sua ascendência armênia e vivências em Paris e Nova York.  

Mariá Portugal (BRA) - Baterista, cantora, compositora e produtora musical, Mariá Portugal, também conhecida por seu trabalho na banda Quartabê, apresenta show com repertório baseado em seu álbum Erosão, lançado em 2021, primeiro trabalho solo da artista. Partindo da canção, a improvisação acústica e a manipulação eletrônica, o álbum apresenta o cruzamento entre essas três vertentes musicais.   
 
Nduduzo Makhathini (AFS) - O pianista sul-africano une em seu trabalho espiritualidade, cultura zulu e as tendências modernas do jazz com grande sensibilidade. Ativo também como educador e pesquisador, Nduduzo equilibra sua expressividade inventiva com as referências de sua ancestralidade. 


Nicole Mitchell´s Black Earth Sway (EUA) - Nicole Mitchell é flautista e compositora. Emergiu da cena musical de Chicago dos anos 1990 e é representante da cultura afro-americana experimental. Na banda Black Earth Sway, é acompanhada pelas musicistas Coco Elysses, Alexis Lombre e JoVia Armstrong.  

Orquestra Afrosinfônica (BRA) - Liderada pelo maestro Ubiratan Marques, a Orquestra Afrosinfônica apresenta uma amálgama da sonoridade afro-brasileira com a linguagem da música de concerto, explorando a fronteira entre música popular e erudita. O conceito de "afrosinfônico" nasce da elaboração de arranjos orquestrais associados a manifestações identitárias da cultura popular brasileira de matriz africana. 
 
Orquestra Rumpilezz (BRA) - Criada em 2006 pelo maestro Letieres Leite, a Orkestra Rumpilezz tem em sua base a percussão de matriz africana, apresentada com roupagens harmônicas influenciadas pelo jazz moderno. Em formato de big band, o grupo apresenta um repertório que explora o universo percussivo afro baiano em um diálogo musical único. 

Quarteto Negro (BRA) - Depois de 35 anos de seu lançamento, o álbum Quarteto Negro é revisitado por três de seus integrantes originais: Zezé Motta na voz, Djalma Correa na percussão e Jorge Degas no baixo. Para substituir Paulo Moura, falecido em 2010, Ivan Sacerdote é o convidado. 
 
Ray Lema Quinteto (CON) - O pianista e compositor Ray Lema sempre teve interesse em vários estilos musicais, o que o levou a percorrer caminhos que misturam o avant-garde jazz com influências da Europa Oriental, a musicalidade da África Ocidental e as tradições congolesas. 
 
Susana Baca (PER) - Cantora e pesquisadora da cultura afro-peruana, Susana Baca representa em sua obra um recorte da afrolatinidade. Ganhadora do prêmio Grammy Latino nos anos de 2002 e 2020 e ex-ministra da cultura do Peru, a cantora apresenta tradições afro-americanas que passam por ritmos como a marinera e a cumbia.  

Tradição Improvisada (BRA) - O projeto apresenta a improvisação do jazz em contato com a música regional. Nasce do encontro dos músicos Thomas Rohrer, Panda Gianfratti e Maurício Takara com Nelson da Rabeca (In Memoriam) e Dona Benedita, mestres da cultura popular alagoanos.  

Tributo a Airto Moreira (Fingers) (BRA) - Sob a batuta de Pichu Borrelli, os músicos Annette Camargo, Libero Dietrich, Lael Medina, Danilo Moura, Manoel Pacífico e Jica Thomé executam na íntegra o álbum Fingers (1973), de Airto Moreira. O show conta com a participação de Filó Machado.

Serviço Sesc Jazz:

De 5 a 23 de outubro de 2022
Programação disponível em: SESCP.ORG.BR/SESCJAZZ e nas redes sociais do @sescsp e unidades participantes

A venda de ingressos, será realizada em ambiente on-line a partir de 21/09, quarta-feira, 12h pelo site e aplicativo Credencial Sesc SP e presencialmente nas bilheterias do Sesc SP a partir do dia 22/09, quinta-feira, 17h,  - Limite de 4 (quatro) ingressos por pessoa.

Unidades que realizarão shows do Sesc Jazz 2022:

Sesc Pompeia l Rua Clélia, 93 l (11) 3871-7700
Horário de funcionamento:  terça a sábado: 10h às 22h. Domingos e feriados: 10h às 19h.
Horário da bilheteria: terça a domingo: 14h às 19h

Sesc Guarulhos I R. Guilherme Lino dos Santos, 1200 I  (11) 2475-5550
Horário de Funcionamento: terça a sexta, das 9h às 21h30; sábado, das 9h às 20h; domingos e feriados, das 9h às 18h.
Horário de bilheteria: terça a sexta: 9h às 21h, sábado: das 9h às 20h. domingos e feriados: 9h às 18h

Sesc Jundiaí I Av. Antônio Frederico Ozanan, 6600  I (11) 4583-4900
Horário de funcionamento: terça a sexta, 9h às 22h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 19h
Horário da bilheteria:  terça a sexta, das 9h às 21h30; sábados e domingos, das 10h às 18h30

Sesc Piracicaba I R. Ipiranga, 155  I  (19) 3437-9292
Horário de Funcionamento: terça a sexta das 13 às 22h; sábados, domingos e feriados das 9h15 às 18h15
Horário da bilheteria:  terça a Sexta: 13h30 às 21h30;  sábados, domingos e feriados: 9h30 às 17h45

Sesc Ribeirão Preto I R. Tibiriçá, 50 I   (16) 3977-4477
Horário de Funcionamento: terça a sexta, das 13h às 22h; sábado, domingo e feriado, das 9h30 às 18h30
Horário da bilheteria: terça a sexta, das 13h às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 18h.

Sesc São José dos Campos  I Av. Dr. Adhemar de Barros, 999  I (12) 3904-2000
Horário de Funcionamento: terça a sexta, das 7h às 22h;  sábados, domingos e feriados: das 10h às 19h.
Horário da bilheteria: de terça a sexta-feira, das h às 21h30; sábados, domingos e feriados,  das 10h às 18h30

Sesc Presidente Prudente I R. Alberto Peters, 111 I (18) 3226-0400
Horário de Funcionamento: terça a sexta, das 8h às 20h; sábados, domingos e feriados, das 9h às 18h.
Horário da bilheteria: terça a sexta, das 8h às 19h30 ; sábados, domingos e feriados, das 9h às 17h30 .

Plataforma Sesc Digital - sesc.digital

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Sai Dias, o terceiro disco do Filippe

 

Filippe Dias

Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Divulgação

Em abril de 2012 estive no Rio de Janeiro de férias por uma semana e catei um lugar para curtir uns blues na cidade maravilhosa. Fui parar em Laranjeiras, no Bar do B, onde todas as segundas feiras rolava uma jam session chamada Clube do Blues, foi o primeiro que tive notícia no Brasil, com o Maurício Sahady e a cozinha etílica, o Cláudio Bedran e o Pedro Strasser (respectivamente baixista e baterista da Blues Etílicos). 
O Clube do Blues era informal, não tinha carteira de associado, não tinha mensalidade e não tinha nem músicos fixos. Mas o lugar encheu de gente, bebi boas cervejas e saí de lá com uma certeza: “Vou fazer em Santos”.
A ideia era copiar o lance do Rio, lugar pequeno, dia de poucas atrações na cidade e disponibilidade dos músicos. Conversei com o Studio Rock Café (quando a casa ainda era legal) e acertei com os donos as bases para o evento. Só faltava arrumar uma banda. 
Conheci o Filippe Dias nessa época, por intermédio de um amigo em comum. Vi que o cara gostava de blues e assim montamos uma banda exclusiva para o evento que começou com cinco músicos fixos e todas as terças-feiras
Desde então acompanho a trajetória do Filippe, vendo sua evolução, seja tocando ao ar livre na Av. Paulista ou em festivais. Acompanhei o esforço que fez para ficar conhecido no meio blueseiro e de outros estilos.
O primeiro trabalho, o EP Borderliner que, segundo Filippe foi fruto de um relacionamento tumultuado, foi lançado em 2016. Nada mais blues. Logo depois gravou o Live Sessions com a formação atual do Filippe Dias Trio.
Com o CD Dias, que acaba de ser lançado com show no Bourbon Street Music Club, em São Paulo, o guitarrista guarujaense cravou suas pegadas na estrada do blues.
O show contou com alguns dos onze temas de Dias, Don’t Bother Calling, Don’t You Hear, Brother Brother, We went To The Moon, Singularidade e Barquinho. Além de Filippe, o trio é composto por João Lopes (bateria) e Enielse (baixo).   

Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical?
Filippe Dias – Nunca tive músico profissional na família. Quando criança meu pai estudou em conservatório e tocava piano, mas tinha preguiça do aprendizado. E não gostava que o mandassem estudar. 
Então, tínhamos um piano em casa e eu cresci com ele tocando. E desde criança a música chamava a minha atenção. Lembro de ficar olhando-o tocar. E até hoje toca as mesmas músicas. O repertório dele nunca evoluiu. Quando ele saia do piano eu sentava e começava a tocar. Tinha ouvido bom e já conseguia achar as notas que ele tocava. 
Já a minha mãe comprava muito CD. Em casa tinha Beatles, Pink Floyd, muita música brasileira. Tenho um lance emocional com o Clube da Esquina por causa da minha mãe. E um irmão da minha mãe passou um tempo na casa dos meus pais e levou dois violões. Por conta disso o meu irmão começou a fazer aulas, mas também não tinha paciência pra aprender. Ele tocava violão sentado na cama e eu sentava do lado dele e conseguia reproduzir as coisas que ele tocava. 
Nos meus dez anos quando os amigos iam em casa eu chamava pra escutar música. Já achava legal. Achava que música era algo pra se fazer. 
A guitarra eu descobri na casa de um amigo. O irmão dele tinha uma Tagima e quando o vi tocando pela primeira vez fiquei maravilhado. Passei a ir na casa dele não pra jogar bola, mas para inventar um motivo para pegar a guitarra e tocar. No Pedi uma igual de Natal para os meus pais. Tenho ela até hoje, foi o instrumento que eu me desenvolvi. Era 2001. 

EM – E quando conheceu o Blues?
FD - A minha mãe encontrou uma escola nas páginas amarelas da lista telefônica a Escola Simonian de Música, em Santos, e comecei a ter aulas com o professor Fábio Cruz. Ele pediu pra eu mostrar o que sabia fazer no instrumento. Eu toquei I Saw Her Standing There, dos Beatles. É uma música que tem quase a estrutura do blues, com um acorde com sétima que eu sabia fazer. Ele me falou que o blues usava muito esse acorde e perguntou se eu sabia o que era o blues. Diante da minha negativa ele perguntou se eu gostaria de aprender e foi aí começou. Ele me deu um CD gravado com Roy Buchanan, Eric Clapton e Stevie Ray Vaughn. E nós começamos a tirar aquelas músicas. E ele me mostrou o improviso e quanto era divertido tocar blues, por não ficar preso a uma estrutura. E por isso que eu não sei muita teoria. Ia para a aula para improvisar em cima das bases que ele levava. Fiquei uns três anos e meio na escola. Logo após isso comecei a aprender por conta própria baixando músicas da internet. 

EM – E o que o jovem Filippe escutava nessa época?
FD – Beatles já chamava a minha atenção por causa da sonoridade que as coisas da minha época não tinham. Tinha o pensamento que se a coisa era antiga era boa. Então fazia essa associação. Dark Side Of The Moon (Pink Floyd), Clube da Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges), etc. E havia uma coletânea que minha mãe havia comprado que era Jimmy Reed, Muddy Waters, John Lee Hooker e BB King. Lembro de  escutar e achar aquilo muito curioso. Aquela coisa pura, a carga emocional. Soava muito diferente.


EM – Nessa época o Stevie Ray era deus. Tanto que toda a geração que veio depois foi influenciada por ele. Hoje a gente tem vários clones.
FD – Sim, lembro que eu ficava na frente do espelho imitando o jeito dele. Todo mundo queria ser o Stevie Ray Vaughn. Mas logo depois eu me distanciei disso.

EM – E começou a tocar quando e onde? Lá no Guarujá mesmo?
FD – Eu não tinha amigos e nem parentes músicos, ninguém para me colocar na cena. O que aconteceu também foi por acaso. Estava no Orkut e vi alguém anunciando que haveria um session no Café Central (Bar em Santos). Lembrei, foi o Mauro Hector. E era sete da noite e eu peguei o carro da minha mãe e fui lá. Quem estava organizando era o Rodrigo Moreno, do Gaita BS, grupo de gaitistas da Baixada Santista. Então sentei bem lá na frente e surtiu resultado, porque eles me chamaram pra tocar. Depois dessa eu entrei pra turminha ali. Toda a jam session que tinha eles me chamavam. Mas não tinha cachê. Nem pensava nisso, queria tocar. 
Logo depois, me apresentaram pra o dono de um bar que havia ali na divisa de Santos com São Vicente, o Saloon Rock Bar, o Valtão. 

EM – Lembro, era um bar na “fronteira” entre Santos e São Vicente. Perto do Emissário, terra sem lei. (risos)
FD – Sim. Era bem tosco mesmo, mas era um bar de rock and roll. Ali nós fazíamos um som, o Valtão tocava bateria, mas não era profissional. Eu levei o Serginho, um baixista do Guarujá, para tocar todos os sábados. Tocávamos por cerveja, não me ligava em cachê ainda. Mas foi uma escola pelos seguintes motivos: o Valtão não era um músico exímio, então nós tínhamos de fazer o melhor som que conseguíamos para compensar isso. Então quando íamos tocar sempre havia as mesmas pessoas para escutar. O bar quando estava cheio estava com 15 pessoas. Parecia cena de trash movie.

EM – E o que aconteceu depois dessa fase drink no inferno?
FD – Não. Fui para São Paulo cursar publicidade. Meu pai sempre teve condição. Tive uma vida privilegiada, ele me deu guitarra e sempre muito mais do que eu precisava. Por isso pude escolher o caminho da música, profissão tão incerta no Brasil. Passei a tocar nas festas da faculdade e em uma delas a galera gostou e veio falar comigo e foi ali que decidi que era isso que iria fazer da vida. Decidi me formar e me auto proclamei músico.

EM – Te conheci nessa época. Foi quando começamos o Clube do Blues de Santos. Eu fui pro Rio de Janeiro ver o Mauricio Sahady, o Cláudio Bedran e o Pedro Strasser e voltei com a ideia.
FD – O Clube do Blues foi importante. Acho que foi o movimento mais enfático em colocar o blues como uma cena em Santos. Havia o Gaita BS, mas não tinha a mesma ambição e a mesma organização. Era um festão. O Cube do Blues foi o primeiro evento sério que participei como músico profissional.

Filippe Dias e Jam For a Dime - Clube do Blues de Santos

EM – Mas também enfrentamos alguns problemas...
FD – O problema é que em Santos se reclama quando não tem esse tipo de evento, mas quando não tem não vai. Lembro que tinha dia que lotava e no outro não ia ninguém. Não fazia o menor sentido. Tivemos dias bons e ruins. Mas foi ali que tive a minha primeira banda, a Jam For a Dime. Também foi bom porque tive a oportunidade de tocar com o Giba (Byblos), que era um cara que tinha disco gravado. Assisti o Igor (Prado), com o Lynwood Slim, a Shirley King.  

EM – Desse ponto de partida resolveu voltar para São Paulo, mas agora como músico? 
FD – É, trabalhava em uma agência e saí pra ser músico. Novamente, não conhecia ninguém. A solução foi tocar em uma jam session arranjada pelo Alexandre Zéqui, que também não era profissional. Era no Gillan’s Inn. Conheci o Chico Suman e ele me convidou para tocar uma música na gig dele. Quando a Suman Brothers terminou ele me chamou pra tocar com ele em outra banda. Foi quando me inseri de vez na cena de São Paulo. 

EM – Você começou a tocar na Paulista também.
FD – Montei meu trio e parei de tocar com o Chico. Pintou a oportunidade de tocar na Paulista, mas com os Breacos, que era o Fabio Brum (guitarra), o Faísca (baixo) e o AC (bateria). Uma vez o Brum não pode ir e me chamaram. Foi do caralho, minha primeira experiência na Paulista. Um tempo depois montei o trio que está até hoje, com o Inielse (baixo) e o João (bateria). Logo depois disso eu comprei um gerador. Os meninos vestiram a camisa e a coisa decolou. Tocar na Paulista virou parte essencial da minha carreira em termos de publicidade. 

EM – Daí você partiu para a gravação do Borderliner, teu primeiro EP.
FD – É a primeira vez que vou contar essa história. O Chico Sumam tinha uma amiga que era uma aspirante a escritora. E ela queria que alguém musicasse suas letras. O Chico me passou a bola e como não tinha nada pra fazer no momento, peguei uma das letras e fiz algumas adaptações, inclusive na melodia. Tive de mexer porque não eram boas. Enviei o resultado e ela ficou emocionada com o aquilo e em pouco tempo estávamos namorando. Mas era uma pessoa muito narcisista, dizia que tinha contatos, que ia nos colocar no David Letterman, etc.



EM – É sério isso?
FD – Sim, disse que conhecia o cara que “fechava” as atrações do programa. Bom, eu estava com as músicas e consegui o telefone do Igor (Prado), achando que poderia produzir o disco, mas ele me indicou o Amleto Barboni. Entrei em contato e enviei as demos. Ele topou fazer. O certo era dividir os custos, mas como era eu que tinha a perspectiva de ser músico, acabei bancando as gravações sozinhos. Uma de muitas idiotices que fiz. Apesar de todo o meu trabalho, quando o relacionamento acabou as músicas viraram dela, entende? Mas acordamos que ambos poderiam usar a músicas. Como eu havia bancado os fonogramas, eles eram meus, mas as músicas os dois poderiam usar da forma que quisessem. 
Beleza. Só que semanas depois ela me ligou dizendo que havia registrado as músicas em uma editora e mandou eu me virar. Tive de entrar em contato com a editora, uma das piores experiências da minha vida, parecia que estava entrando em um covil de ladrões, mas contei a minha história e o dono viu que se fossemos parar na justiça com aquilo iria ser ruim pra ele. No fim o disco foi bem recebido, recebeu elogios de artistas, entre eles o Vasco Faé.

EM – Qual é o espaço que o blues, uma música com mais de cem anos e que não é nossa tem no Brasil? 
FD – Deveria haver mais espaço. Por que a riqueza musical desses sons... é como entrar em um museu e ver uma pintura que foi feita há duzentos anos e poder voltar no tempo com aquela obra de arte. Ninguém toca, porque é uma linguagem muito especializada, pura, primitiva, que tem de que tocar até meio errado pra parecer legal. Trazer a limitação como recurso estilístico. É uma crítica que eu tenho aos festivais de blues aqui no Brasil. Não tem espaço para o Delta Blues. Vi que era difícil e comecei a tocar isso para poder ser o melhor entre todos. Sabe como é garoto. Então comecei a fazer downloads de Mississippi John Hurt, Skip James, Blind Blake, que é uma bizarrice. Uma vez estava tocando no Saloon e tinha um cara chamado Kadu Abecassis, na época ele tocava com a Malu Magalhães, na plateia. No fim ele veio perguntar a minha idade e me convidou para tomar uma cerveja ali no Emissário. Ele acendeu um baseado e deu o violão na minha mão. Eu toquei um blues e devolvi pra ele. Aí ele começou a tocar um blues que ele gostava ali na minha frente usando o finger stile, aquela sonoridade velha. Aquilo me provocou. Na época me senti intimidado, mas por causa do Kadu mergulhei de cabeça nessa sonoridade do Delta. Por acaso o encontrei um tempo depois em um show seu, na Praça dos Andradas, aqui em Santos, ele e o Peter Hassell, com quem fazia dupla Mustard and Custard.  

EM – O teu disco mais recente, o Dias, levou um bom tempo pra ser produzido. Você começou antes da pandemia. Percebi um salto entre os dois trabalhos. Gostaria contasse a história desse disco.
FD – É o momento mais importante da minha trajetória. O Borderline foi lançado em 2016. Depois disso continuei amigo do Amleto Barboni, que considero um mestre na produção. Ficamos muito próximos. 
Então, após o lançamento do Borderline não queria mais parceria com ninguém. Fiquei compondo em casa, um processo doloroso. Há dois caminhos, compor igual àquilo que você gosta e a sonoridade vai te agradar. Ou você tenta fazer algo com a tua cara. O que não é fácil porque muita coisa já foi feita. Ainda mais sendo eu um cara do blues. Queria me distanciar do que os caras fazem. Por que é o que todo mundo faz aqui no Brasil. Estudei todos os discos do Igor, acho-os maravilhosos, mas não trazem nada de novo pra mim. Pro Filippe Artista. Se eu fosse por esse caminho seria mais um guitarrista de blues, mas como artista não é o que eu busco. Então coloquei todos os elementos que eu gosto e comecei a escrever algo com a minha cara. Então compus muito em casa. Nasceu Don’t Bother Calling que é um blues mais moderno. Tem um apelo para a molecada. Quero agradar quem gosta de blues e quem não conhece tanto. Ao mesmo tempo o Amleto abriu uma escola de blues lá no Mosh (estúdio em São Paulo) e me perguntou se eu não queria gravar uma música. A gente ensinava o processo de gravação para os alunos e eu ficaria com os fonogramas. Todas as músicas que compus foram sobre experiências pessoais. A primeira música era sobre ruptura, a segunda já era a partir desse ponto. E assim foi. Defini que o disco teria esse conceito temporal. De coisas que acontecem em sequência. Foi muito automático, quando vi tinha doze músicas. 

The New Blood com Jam For a Dime Gaylor (baixo), Pedro Leo (bateria) e Filippe Dias, Fábio Brum, Eduardo Elói e Beto Gonçalves (guitarras).

EM - Gravar um disco com 11 músicas é um processo longo, imagino que houve um desgaste. Quero dizer, chega uma hora que você não aguenta mais lidar com aquilo e quer lançar logo. 
FD - Consegui um preço legal e decidimos fazer no Mosh, o maior estúdio da América Latina. Gravamos de forma analógica, na fita magnética. Começamos em dezembro de 2019, mas quando chegou em fevereiro de 2020 começaram os rumores de pandemia. Quando acabei de gravar os pianos fechou tudo. Mas ninguém pensou que seria tão grave e a gente só retomou os trabalhos em janeiro de 2022. Já havíamos gravado 60% e pra mim todas as músicas já estavam prontas. Mas nesse tempo que fiquei parado, mudei todo o final do disco. Não tive depressão, mas fiquei muito mal. Espero nunca mais passar por isso. E todo isso que senti coloquei no disco, as duas músicas finais coloquei orquestra. Achava que fazia sentido. Usei uma orquestra de 32 músicos. Gastei vinte e três mil reais do meu bolso.       

EM - Gastou quatro anos da tua vida, vinte e três mil reais e compensou? Vale a pena no Brasil de hoje? 
FD – Vou ser sincero, esse investimento talvez nunca volte. Não através do disco. Como produto que vai te gerar um lucro financeiro, definitivamente não. Mas a certeza que eu tenho é que vai ficar. Não prevejo o futuro e não quero ser pretensioso, mas é um trabalho que se as pessoas escutarem daqui a dez, vinte anos, acharão um bom disco. Uma boa história contada através da música. Citei o Igor porque admiro o trabalho dele e acho que é outro que vai resistir ao tempo. 

Filippe Dias Trio - Foto Monica Quinta

EM – Hoje é difícil você ver alguém falando em disco conceitual. Pouca gente está disposta a fazer isso hoje. A moda é EP.
FD – Meus discos favoritos são discos conceituais. Pet Sounds, Sargent Peppers, enfim... Sempre quis fazer pelo menos um disco desses na minha vida. Nem que fosse um grande investimento de dinheiro, de dedicação e criatividade.

EM – É, a gente vive procurando um sentido pra vida, mas para mim aproveitar o tempo que você tem por aqui é o mais importante. Se você fizer muitas coisas e coisas boas esse tempo vai passar devagar. Você vai saborear cada momento. Se você ficar parado esse tempo vai escorrer pelas tuas mãos e quando você perceber já está perto da morte e não realizou nada. A pandemia deixou isso bem claro. Refleti muito.
Fiz toda essa introdução para entrar em um assunto capcioso. Como você vê a posição dos blueseiros brasileiros com relação à política e a situação pela qual o Brasil está passando? 
Quero dizer, o blues nasceu como música de protesto e a soul music nos anos 60 foi a trilha sonora dos movimentos de direitos civis, pelo menos nos Estados Unidos. E hoje o Brasil tem músico que apoia esse Estado proto-fascista, e é a favor desse descalabro que está acontecendo no país, inclusive na cultura. E se não é a favor do governo, é omisso em denunciar ou se posicionar. 
FD – Acho que dá até para expandir um pouco. Estamos falando de blues, obviamente, mas os grandes músicos brasileiros são omissos. Curiosamente, quem está se posicionando é a Anitta. Uma mulher, que veio da perifa e está lá com a atitude que os roqueiros não tem. E com muita coragem. Já começa que o cara que toca blues aqui no Brasil é individualista. Não há união. Há muito canibalismo. E individualismo é o que há no governo hoje. As pessoas não pensam no coletivo, no social, no bem de todos. 

EM – Só por isso? Não por ser a maioria de homens brancos que não sofreu uma fração do que grande parte da população sofre hoje?
FD – Também. A gente vem da classe média. E a gente tem de saber de onde vem as coisas que a gente está cantando. Que dor que a gente está cantando? 

EM – E nem digo falar sobre a sua dor individual. Mas quando você se cobre a noite na cama não pensa nas pessoas que estão passando frio ali debaixo da tua janela? Um artista tem o poder de falar sobre isso.
FD – Um questionamento que eu levanto é que se o artista de blues fosse menos reprodutor e mais criativo a gente não teria mais margem para essas abordagens? Inerente a isso que estamos vivendo hoje. Música sobre plantação de algodão não tem nada a ver com a gente. Esse incomodo me fez tentar compor algo diferente. Quem é mais blueseiro, o cara que grava um disco e reproduz o som de Chicago igualzinho ou o Cartola?

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Santos Jazz Festival completa 10 anos

 

Jefferson Gonçalves e Duo Bittencourt

Após dois anos sendo realizado online o Santos Jazz Festival comemora seus 10 anos de vida de forma presencial, entre os dias 28 e 31 de julho, nos Arcos do Valongo.
Para quem não conhece o local, as estruturas são montadas em um espaço ao ar livre, na área portuária de Santos, onde antes funcionava um galpão que por algum tempo esteve desativado e hoje é usado principalmente para fins culturais.
Além do local que realça a histórica relação entre o porto e a cidade, o festival, que continua gratuito, realiza outras apresentações e oficinas no entorno do Centro Histórico.
A abertura será no Sesc Santos com os shows do Coletivo Querô – Homenagem aos 20 Anos do Instituto Arte no Dique e depois Izzy Gordon & Banda com participação especial da cantora Ana Cañas. Os ingressos serão distribuídos a partir das 10h no dia da apresentação na bilheteria do Sesc, na rua Conselheiro Ribas, 139. 
No campo do Jazz, os destaques serão os shows do grupo Electric Miles e Jefferson Gonçalves e Duo Bittencourt.
Electric Miles recria a obra de um dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, muito influenciada pelo blues do sul dos Estados Unidos, mas que soube inovar como poucos a música de seu tempo.
Esse “tributo” dedica-se à fase elétrica de sua trajetória, a partir do final dos anos 60 até sua morte, em 1991. E também aos desdobramentos dela, com temas de Weather Report, Mahavishnu Orquestra e Return To Forever.
O agrupamento desses jovens jazzistas de São Paulo foi aconteceu quando o baixista Stefano Moliner e o produtor Eugênio Martins Jr juntaram forças e interesses comuns. São eles, Felipe Aires (trompete), Igor Boulos (guitarra), Thomaz Souza (saxofone), Saulo Martins (piano), Ivan Lopes (bateria) e o próprio Stefano Moliner (baixo).
Jefferson Gonçalves somou a qualidade de suas gaitas às percussões e à guitarra híbrida dos irmãos Júlio e Luciano Bittencourt
O tempero especial fica por conta da guitarra híbrida, instrumento desenvolvido pelo músico norte-americano Charlie Hunter, com sete cordas (três de contrabaixo e quatro de guitarra). Com essa formação, única no Brasil, o trio faz um som cheio de personalidade e muito groove. 
Para o novo show, os músicos reinterpretam composições de Jefferson, que, além de grande instrumentista, é compositor de mão cheia. Seus temas instrumentais levam os ouvintes a viagens musicais nas quais as esquinas do Nordeste brasileiro, sopradas pelos foles de Gonzagão e de Dominguinhos e os pifes dos Irmãos Aniceto, se cruzam com as do Mississippi profundo, dedilhadas nas cordas de aço de Muddy Waters e agora com a sonoridade incomum da guitarra híbrida. No repertório: músicas autorais repletas de groove, melodias e ritmos, ingredientes perfeitos para um show alto-astral, contagiante e porque não, dançante.

O Santos Jazz festival é o maior festival de jazz gratuito de música da Baixada Santista, traz uma média de 20 shows por edição, com line-up que valoriza e homenageia os artistas locais e nacionais.
O festival também dialoga com as artes plásticas, dança, audiovisual e com os empreendedores criativos trazendo mais experiências ao público. Esse ano haverá espaço kids, espaço gastronômico, bar e bazar criativo.
No pilar social, os organizadores contratam mão de obra local (designers, comunicação, produtores, fornecedores, etc..) gerando trabalho e renda. 
O palco do SJF também é aberto aos projetos sociais musicais da região, como o projeto Guri, Banda Querô, Banda do Lar das Moças Cegas, entre outros. Na edição de 2019, foi criada a Big Band LMC, composta por portadores de deficiência visual, do Lar das Moças Cegas, projeto temporariamente parado em função da pandemia, devendo ser retomado em 2023.


Confira a programação:

Abertura - 28 de Julho (quinta-feira) – SESC SANTOS – 20 horas

Dia 29/07 (sexta-feira) – ARCOS DO VALONGO
18h: VDJ Santos Jazz
19h: Elza Eterna! -  Quizumba Latina & Gab Veneziani
20h30: Eletric Miles Sexteto – tributo a Miles Davis
22h: Samblues – João Suplicy & Banda 
23h30: Francisco, El Hombre  em tributo a Carlos Santana 

Dia 30/07 (sábado) - ARCOS DO VALONGO
13h: VDJ Santos Jazz
14h: JAM Escola de Música Blackbird – Alunos e Professores
15h30: Kika Willcox & Banda – Jazz & Soul
17h: Wylmar Santos & Banda – Show  “AfroLatino”
18h30: Conde Favela Sexteto
20h: Parabéns, Tânia! - Projeto Tânia Maria
22h: Mental Abstrato & Lou Piensa (França) - Jazz & Hip-hop 
23h30: Tulipa Ruiz & Banda Pipoco das Galáxias 
1h: Baile Afrika Jazz - Dj Mamuth convida DJ AfreeKassia – parceria com o produtor Orlando Rodrigues do Movimento Hip Hop de Santos 

Dia 31/07 (domingo)- ARCOS DO VALONGO
13h: VDJ Santos Jazz
14h30: Orquestra de Metais e Percussão de Cubatão & Rafaella Laranja –                                              Show “Elis”  
16h: Mauro Hector toca Hendrix
17h30: Jefferson Gonçalves & Duo Bittencourt
19h: Filhos da Bahia in Jazz com os filhos dos cantores Saulo Fernandes (João Lucas),  Reinaldinho do Terra Samba (Zaia) e Carlinhos Brown (Miguel Freitas)  
Oficina-show para Crianças

Dia 28\07(quinta-feira) – 15 horas - Creche da Tia Egle – Zona Noroeste
“O Homem Sonoro” – Zero Beto (Arte Educador)

Dia 29\07 (sexta-feira) – 15 horas - Instituto Arte no Dique – Zona Noroeste
“O Homem Sonoro” – Zero Beto (Arte Educador)
Oficinas Teatro Guarany - (Músicos e Estudantes)*
Dia 31\07 – Domingo

13h30 – Oficina de Harmonia e Improvisação - Luciano Bittencourt (para guitarristas, baixistas e violonistas)
14h30 – Oficina de Gaita – Jefferson Gonçalves 
* Obs: Inscrições para as oficinas no site www.santosjazzfestival.com.br
Todos os shows e oficinas do festival são de graça e livres para todos os públicos.

domingo, 26 de junho de 2022

Diário de Rio das Ostras 2022 - 4º dia

 

A Cor do Som e convidados

Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Cezar Fernandes

Dois shows estavam programados para a Lagoa do Iriry no último dia, Tony Gordon e A Cor do Som. Assisti ao final do Tony Gordon e todo o show do A Cor do Som com plateia lotada. E de novo A Cor do Som quebrou a banca. Exceto pela inclusão de Palco ao repertório - parabéns Gilberto Gil que hoje completa 80 anos - foi o mesmo show. Mas com duas participações especiais, o Mu convidou o Erik Escobar, da banda do Tony, para uma dupla nos teclados e o Big Joe Manfra entrou pra solar ao lado do Armandinho - 6X0.
E no final, quando o Ari cantou Dentro da Minha Cabeça, o Tony Gordon subiu ao palco arrastando o Armandinho e o Ari e uma multidão pra fora daquele cercado que circunda a plateia de Iriry. O show acabou pra cima, como deve ser - 7X0. Uma lavada nas bandas gringas. 
Se ano passado o festival recebeu Eric Gales, Roosevelt Collier, Jon Cleary, Azymuth e Hamilton de Holanda, esse ano Blues Etílicos, A Cor do Som, Deanna Bogart e Big Joe Manfra e As Mulheres do Blues roubaram a cena. 

A Cor do Som - Domínio total sobre o público

Mais um - Frequento o festival de Rio das Ostras desde 2007 e nunca, ao longo desses 15 anos, presenciei uma confusão. 
Já havia percebido que na edição anterior, realizada em novembro de 2021, além da tensão por estarmos saindo das restrições impostas pela pandemia de covid-19, a temperatura da disputa política já estava um pouco acima do normal. 
Mas em 2022, ano de eleição, com o país exaurido por um governo de pessoas imorais, desonestas e incapazes de sentir empatia pelo próximo e isso inclui a Câmara dos Deputados sob o comando de Arthur Lira, foi muito pior. Esses quatro anos de desgoverno deixaram as pessoas mais exasperadas.
O último dia do festival, mesmo com a lagoa dividida por muitas bandeiras do PT e poucas do outro lado, escancarou a intolerância dos apoiadores de Bolsonaro. 
Vi um homem intimidando uma senhora que estava com a bandeira do PT em frente ao palco. Ele teve de ser contido por outros presentes para não agredir a senhorinha.
Um garoto foi agredido atrás do palco após uma discussão. Novamente outras pessoas tiveram de intervir para que o rapaz não sofresse ferimento grave, já que o agressor não parava de apertar seu pescoço. Todas as pausas entre as músicas eram preenchidas com gritos de Fora Bolsonaro e ofensas mutuas entre os eleitores de ambos os lados. 
Quem acompanha esse blog e a Mannish Boy Produções sabe que sou radicalmente contra esse governo. Por isso faço questão de colocar a minha opinião e reportar os fatos pelo meu ponto de vista.  
E o festival de Rio das Ostras é realizado com recursos da Lei Rouanet e agora do Sesc Rio de Janeiro. Portanto, quem estava ali curtia música com recursos públicos. Recursos esses, auditáveis e abertos a consulta pública nos sites governamentais, diferente da grana gasta pelas prefeituras de cidades do interior que pagam muito caro pelos artistas bolsonaristas, escândalo exposto recentemente pela mídia.

Gran Finale

Ao longo de 20 anos esse festival se tornou o principal evento de jazz e blues do Brasil. E esse ano, os shows nas cidades de Búzios, Paraty, Rio das Ostras, Niterói e Paraty formaram o um circuito cultural empregando muitas pessoas, fomentando comércio e turismo locais e levando cultura para todos. 
Portanto, não há mais espaço para a intolerância. Não adianta cercear a cultura porque a inteligência sempre vai vencer a truculência. Os movimentos negros vieram para ficar, o movimento LGBTQIA+ veio pra ficar. As mulheres vão continuar sua luta contra a misoginia e os povos originários pelas suas terras. E todo esses Brasis se encontram na cultura e na música. 
Nos últimos anos temos visto o desmonte da cultura e o desprezo pela educação por esse governo medíocre do Bolsonaro. Começou com o rebaixamento do Ministério da Cultura para Secretaria e vem ladeira abaixo. Esse ano tem eleição, e será a chance de revertermos isso.

Tony Gordon e a participação especial do Paulinho

Cerveja - Não bebi uma IPA decente em Búzios e em Rio das Ostras. Em Rio das Ostras bebi uma APA boa, apresentada pelo meu amigo Cezinha. 
Em Paraty bebi uma Juicy IPA muito boa, mas era de Cunha. A cachaça foi abundante. Mas andar naquelas pedras foi de foder. 
Esse ano me colocaram numa pousada em Rio das Ostras com o nome fofo: Meus Amores. Ótima. Familiar e tranquila. Se for ao festival em 2023 vou ficar lá.

Produção - O festival de Rio das Ostras só acontece com o empenho do time que trabalha lá há anos: Stênio Mattos, Ugo Perrota, Andrea, Juliana, Jefferson Gonçalves, Kleber Dias, Márcia Vilella, Jerubal e seu filho Marcos, Andrew, Mário, Letícia, Cezar Fernandes e toda a equipe da Like Produtora. Me desculpem se esqueci alguém.
Em 2022, além de assistir e reportar o evento, fui pra produzir os shows das Mulheres do Blues e ajudar na produção dos amigos da Blues Beatles. 
Com As Mulheres do Blues fizemos Búzios, Paraty e Rio das Ostras. O show de Niterói foi cancelado e nem me perguntem o motivo porque também não sei até hoje.

Fui apenas para tirar uma foto, mas acabei registrando um momento épico.


E a Loira do Palco atacou novamente. Lembram dela de 2019? 
Não basta ver o show, tem de participar. (foto: Eugênio)