Na era pré-histórica os LPs chegavam aqui, fossem eles de artistas famosos ou não. O trabalho de garimpo valia muito nas prateleiras das lojas.
Assim conheci Yellow Moon (1989), de uma banda esquisita lá de New Orleans, os Neville Brothers. Naquela época eu só queria saber de AC/DC, Iron Maiden, Ramones e os irmãos Neville não estavam no radar.
Já tinha escutado o Gumbo, do Dr John, que até achei legal, mas confesso que na época não entendi a profundidade da música e da cultura de New Orleans.
Antes de sentir o som do Neville Brothers o que me chamou a atenção foi a capa, com umas pinturas vodús, humanos com cabeça de animais e um índio – como disse, ainda não conhecia a tradição dos índios de New Orleans – e na contra capa os quatro irmãos com aquele visual só deles.
Então, a gente entrava na loja e pedia pra escutar os discos e nesse quesito eu era o cara mais pentelho do bairro. Ouvia até coisas desconhecidas, como Neville Brothers.
E foi nessa que senti as primeiras batidas daquela percussão hipnótica em My Blood, não menos do que a voz do Cyril Neville lamentando as merdas que aconteciam na África e na América negra. E ainda acontecem. O sangue deles fervendo e, naquela hora, o meu também.
Em seguida, o saxofone de Charles Neville anunciou Yellow Moon, a música de um quase corno que dá nome ao disco cantada pelo irmão Aaron e que faz dançar a lot. Seja qual for o assunto, eles vão te fazer dançar. É New Orleans.
Fire and Brimstone bota fogo na sala com sua potente parede de metais, cortesia de um dos grupos mais legais daquela cidade, os Dirty Dozen Brass Bands.
A mudança de direção acontece com A Chage is Gonna Come. O tema clássico de Sam Cooke quebra o clima predominantemente dançante e mostra o lado religioso de New Orleans. Mais adiante, a parede de teclados de Will the Circle Be Unbroken vai nos levar pelo mesmo caminho da espiritualidade.
Rosa Parks ficou famosa ao se recusar sentar em um banco destinado aos negros no fundo de um ônibus em Montgomery, no estado segregacionaista do Alabama. Foi presa e tornou-se símbolo da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Em Yellow Moon ela ganha o funk/rap Sister Rosa, reverenciando toda essa história de resistência.
With God on Our Side e The Ballad of Hollis Brown foram modificadas daquele jeito que só quem tem coragem e sabe realmente o que está fazendo pra mexer com o velho Bob Dylan.
Com um baixo marcante, Wake Up assume toda a dramaticidade de um tema anti bélico, assim com em With God on Our Side. Após trinta anos, nada mudou na cena política.
Hipnótica, Healing Chant não podia ser mais vodu. Se você assistiu o filme Coração Satânico, lançado na mesma época de Yellow Moon, vai saber do que estou falando. As imagens vão vazar do teu cortex na hora. Coisa que Voodoo não é. Fala sobre o assunto, mas é um mezzo funk bem menos impressionante que a outra.
O disco fecha com Wild Injuns apontando, já naquela época, para o que acontece hoje nos palcos e ruas da cidade mais diversa e musical dos EUA. Funk até umazora.
Enfim, Yellow Moon é pop e genial ao mesmo tempo. Poucos artistas sabem fazer a mistura como os irmãos Neville. Uma aula de música, de história, de New Orleans.
O time inclui Aaron Neville (voz, teclados, pecussão), Art Neville (voz e teclados), Charles Neville (sax, percussão, backing vocais), Cyril Neville (voz, bateria, percussão), Brian Stoltz (guitarra), Tony Hall (presença continua nos festivais do Bourbon Street em São Paulo, no baixo, percussão, backing vocais), Willie Green (bateria), Brian Eno (teclados, efeitos sonoros, e voz em A Change is Gonna Come), Daniel lanois (guitarra, teclados e backing vocais), Malcolm Burn (teclados, guitarra), The Dirty Dozen Brass Band (sopros), Eric Kolb (programação de teclados), Kenyatta Simon a Kufaru Mouton (percussão em My Blood), Aashid Himmons and Terry Manual (teclados em Sista Rosa).
Músicas:
My Blood
Yellow Moon
Fire and Brimstone
A Change is Gonna Come
Sister Rosa
With God on Our Side
Wake Up
Voodoo
The Ballad of Hollis Brown
Will the Circle Be Unbroken
Healing Chant
Wild Injuns