Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Arquivo pessoal Alex Rossi, Getty
Na segunda-feira, dia 22 de agosto, morreu enquanto dormia, aos 94 anos, Toots Thielemans, o principal nome da gaita cromática de todos os tempos.
O mundo inteiro lamentou a perda do jazzista belga que tocou com os principais músicos do gênero, entre eles, Ella Fitzgerald, Quincy Jones, Bill Evans, Frank Sinatra, Ray Charles, Larry Schneider e Oscar Peterson.
Aventurou-se também pela música pop tocando com Nick Cave, Paul Simon, Billy Joel e Stevie Wonder, sempre imprimindo seu toque de midas. Com Elis Regina, por quem se encantou, gravou Elis e Toots.
A harmônica cromática está para a trilha sonora de cinema assim como as cervejas belgas estão para nosso paladar: Perdidos na Noite, de John Schlesinger (1969) e, Jean de Florette, de Claude Berri (1986), foram algumas trilhas compostas e gravadas por ele.
Thielemans descobriu o instrumento em 1938. Atraído pela música de Ray Ventura, conheceu o jazz durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o cigano Django Reinhardt sua primeira grande influência. No fim da década de 1940 mudou-se para os Estados Unidos, onde acompanhou Charlie Parker. Por lá fez história.
Para falar mais sobre esse que é considerado a maior referência em seu instrumento, Alex Rossi, gaitista brasileiro radicado na Holanda, onde dá aulas, toca no circuito jazzístico e que, com Gabriel Grossi, produziu um disco em homenagem a Thielemans com outros gaitistas.
Recentemente lançado, We Do it Out of Love ainda pode ser encontrado por aí. Uma comovente homenagem.
ALEX ROSSI
Conhecia Toots Thielemans sem saber, ouvindo sua harmônica na trilha de abertura do programa infantil Sesamo Street. Depois um amigo me apresentou o tema de Midnight Cowboy.
Com o tempo fui adquirindo outras coisas, até um amigo me emprestar West Coast East Coast que, na minha opinião, é um de seus melhores discos.
Desde então passei a escutá-lo diariamente, sem folga. Devolvi o disco do amigo e comprei meu próprio exemplar.
No início era difícil entender como ele fazia aquilo na harmônica - e ainda é.
Um gênio, demorei para assimilar as primeiras frases, super emocionantes e complexas, com o tempo fui adquirindo mais e mais discos e ouvindo todos os dias, dividindo as audições com os outros mestres da harmônica blues.
Quando mudei para Dallas (EUA), tentei assisti-lo ao vivo mas nunca dava certo, vi na TV uma vez, fiquei chocado com tanta virtuose mas, de certa forma, também com a simplicidade contagiante. Com a chegada da internet ficou mais fácil adquirir material CD, DVD, mp³, etc… em um momento cheguei a ter a discografia completa.
Quando Toots tocou no Rio e São Paulo eu morava na Argentina e mais uma vez não consegui assisti-lo ao vivo.
De volta ao Brasil me restava assistir aos vídeos e discutir com os amigos sobre sua maneira de tocar. Lembro das tardes de sábado com os maestros Maurício Einhorn e Emílio Damasceno, quando nos reuníamos para tocar e ouvir alguns de seus temas e tentar descobrir como ele fazia aquilo.
Veio minha primeira turnê na Europa e os ventos me levaram para a Antuérpia (Bélgica). Sábios ventos.
No primeiro dia me dei conta que o Toots, que morava nos EUA e era naturalizado americano, era de origem belga.
Não custava dar uma olhada na sua agenda. E não é que ele tinha um show na na próxima semana na cidade onde eu estava!? Estava sem rumo e decidi ficar mais uma semana para poder assistir a esse show, uma semana que viraram cinco anos.
Um amigo ligou para o Dirk, manager na época (falecido há alguns anos, um gordão gente finíssima), agitando para que eu pudesse assistir a passagem de som e conhecer o Toos pessoalmente, não estava acreditando, difícil conter a emoção, passei a mão na magrela e fui pedalando feliz ao encontro de um herói, um ídolo, parecia um sonho.
Chegando ao local me apresentei, seu manager me atendeu dizendo que Toots não estava bem e que o show poderia ser cancelado.
Fiquei esperando até a hora do show que, por sorte, aconteceu . Como havia chegado muito cedo, me sentei no meio da primeira fila, bem na frente do palco, a uns três metros do super herói Toots Thielemans.
Assisti e gravei o show com uma felicidade enorme, escutando com muita atenção cada nota, dele e da banda. Esse primeiro show foi incrível.
O show terminou e todos foram embora. Sou músico e sei como as coisas funcionam, me plantei ao lado da porta do camarim cujo entra e sai era intenso. O tempo passava e nada, o gordão passava por ali várias vezes e nada dele me ver ou me chamar. Depois de uma hora que estava ali sozinho, parecendo uma criança pedindo bala, acho que ele se lembrou e disse: “come on in”. Que felicidade. Entrara no camarim do Toots e ali se encontrava um gigante de 86 anos. Inacreditável a emoção, me ajoelhei e beijei-lhe os pés - ele não curtiu, mas foi o que me ocorreu no momento. Achei que ia ter um ataque cardíaco de tanta emoção.
No camarim se encontrava um senhor que havia feito o show de abertura, nada menos do que Philip Catherine, ele me chamou em um canto e tocamos Wave, de Tom Jobim, para o Toots e por ali fiquei mais uns minutos admirando aquele gigante da música.
Em cinco anos na Belgica tive várias oportunidades de vê-lo ao vivo, acho que estive em 95 % dos seus shows entre 2008 e 2014. Inclusive trabalhei em alguns festivais de jazz como voluntário no som do palco para poder vê-lo e ouvi-lo de perto, na passagem de som, etc.
Certa vez aconteceu um festival de Jazz e no dia do meu aniversário era o show do Toots. Falei com ele na passagem de som e disse: “Que legal que você está tocando hoje aqui no dia do meu aniversário, um super presente. Obrigado”. Ele disse: “É seu aniversário hoje? Espera aí”. E tocou feliz aniversário na passagem de som. A música saindo do PA, incrível!
Depois deste episódio houveram outros shows nos quais estive presente. Não faltava em um, assistia e gravava para poder estudar o que ele tocava.
Certa vez, no backstage de um show desses me dei conta que estávamos sozinhos, o bom senhor me ofereceu um vinho, falávamos sobre Elis Regina e música brasileira. Pensei em perguntar se havia uma técnica, um truque ou um segredo para estudar, mas não tive coragem. No momento da depedida ele me disse com aquela vozinha de de um senhor de 86 anos: “You know what you have to do, you know what you have to do, you know what you have to do. YOU HAVE TO PLAY, YOU HAVE TO PLAY. Fui para a casa de magrela pensando naquilo e só depois me dei conta do que ele quiz dizer.
Há dois anos, em uma das visitas de meu amigo Gabriel Grossi aqui em casa, colocamos uma ideia na mesa, fazer um disco em homenagem a esse gigante da música. Iniciamos os contatos e a produção do disco We do it out of love, um disco com seis gaitistas de várias partes do mundo: Franco Luciani (AR), Olivier Ker Ourio (FR), Antonio Serrano (ES), Gregoire Maret (SW), Gabriel Grossi e eu do Brasil. A ideia era cada um colocar duas músicas, algo do Toots escrito por ele ou escrito para ele.
Depois de muito trabalho o álbum ficou pronto e tivemos a oportunidade de entregá-lo em sua casa em Bruxelas. Uma pessoa incrível, super generoso, amável, ficou emocionado e gostou muito do disco.
Me sinto super afortunado em poder dividir essa produção com o amigo Grossi e de poder dividir o disco com outros cinco top harmônica players de todas as partes do mundo.
E realmente foi uma oportunidade linda poder entregar o álbum ao Toots enquanto ele ainda estava entre nós.
Sou de uma sorte imensa, ter conhecido pessoalmente este gigante, um gênio, um ser humano incrível, doce, amável, sensível, carinhoso. Faltam adjetivos para descrever este senhor, para mim não somente um harmonicista de primeira, mas um músico e pessoa incrível, que tinha o poder de tocar a alma das pessoas com uma nota, além da técnica que é a melhor do mundo no instrumento, uma maneira de tocar incrível. O mundo precisa de mais pessoas assim.
VIVA Toots Thielemans.
Leia também entrevista com Alex Rossi para o Mannish Blog: http://mannishblog.blogspot.com.br/2013/08/alex-rossi-lanca-disco.html