Adriano Souza (Foto: Nando Chagas)
Texto : Eugênio Martins Júnior
Fotos: Nando Chagas
“Tom Jobim é universal. Nesse exato momento, em qualquer canto do mundo, há alguém tocando sua música, seja numa sala de concerto para centenas de pessoas ou no escurinho de uma sala noturna, para um casal de mãos dadas. Num estúdio de gravação com hora a peso de ouro, ou numa esquina, em torça de uma moeda”.
Essa afirmação está na contracapa do recentemente lançado Ouvidor do Brasil – 99 vezes Tom Jobim, livro de Ruy Castro, jornalista e especialista em bossa nova.
Por coincidência, recebi um release do meu amigo, também jornalista e músico, Fábio Cezanne, que um pianista no Rio de Janeiro estava lançando um álbum homenageando o maestro. O trabalho se chama Adriano Souza Plays Tom Jobim. Nada mais simples.
Por coincidência ainda maior, em uma das respostas, Adriano cita as paisagens naturais do Rio de Janeiro que tanto inspiraram a criação de Tom Jobim, assim como permeia, o livro de Ruy Castro.
Além disso tudo, fui ouvir o disco e três coisas me chamaram a atenção:
A primeira é a leitura pessoal que o Adriano faz de temas há muito conhecidos por nós, unindo o lirismo de Jobim com o batuque do Rio. Adriano explica na entrevista que levou anos para gravar o álbum e que isso foi benéfico ao resultado final.
A segunda é que Adriano cresceu como músico dentro de uma igreja cristã. Nos últimos anos tenho conversado com excelentes músicos egressos do ambiente religioso e que têm migrado para outros estilos musicais. As igrejas há muito têm feito esse papel sócio-cultural e isso é muito bom para a música.
E a terceira diz respeito a mim. Tentei ouvir o disco durante o dia, mas não consegui. Minha rua passa ônibus toda hora, estou cercado de prédios sempre com obras, tem um pássaro preso aqui na vizinhança e o seu canto desesperado me incomoda muito. Os sons da cidade atrapalharam a audição desse disco delicado. Estamos tão habituados ao caos urbano que só percebemos que o silêncio é necessário nessas horas.
Além de Adriano Plays Tom Jobim (2024), sua discografia conta com Em Tempo (um álbum só com hinos religiosos de 2019); e alguns singles lançados nas plataformas digitais.
Eugênio Martins Júnior - Como foi a tua infância musical e a tua formação?
Adriano Souza – Minhas primeiras influências musicais foram dentro da igreja protestante. Sou filho de pastor da igreja batista, cresci em meio às atividades musicais de igreja. Minha primeira participação foi no coral infantil, aos 06/07 anos de idade. Mas antes já ouvia. A igreja tem essa tradição de cantar. Em 2016 gravei um álbum só com esses hinos, em piano solo. São hinos tradicionais, cristãos, a maioria norte-americanos, cujas letras eram versões.
Foram as primeiras influências. Depois, dentro da igreja mesmo, na década de 80, houve uma mudança, na forma musical mesmo. Chegaram músicas de compositores brasileiros, muitos influenciados pela música que faço hoje, pois trabalho muito com a música brasileira, MPB, Bossa Nova. Havia um grupo de compositores de São Paulo, o Sérgio Pimenta, João Alexandre, Jorge Camargo. Era uma missão chamada Vencedores por Cristo que começou a fazer um repertório grande de um cancioneiro diferente. Incluindo outros instrumentos, porque até então os instrumentos na igreja eram piano e órgão. Começou a ficar com influência mais popular. Isso me atraiu para o violão. Na igreja foi meu primeiro instrumento, aos nove anos. E já havia uma influência de rock, pop. Além de tocar na liturgia do culto também, os cânticos mais novos que iam chegando, com bateria, baixo, uma novidade. O teclado apareceu na minha vida aos 13/14 anos. Em um dos ensaios fui parar no teclado, um órgão tradicional. Comecei a passar as coisas que fazia no violão e ali nasceu meu interesse.
EM – Isso tudo no Rio de Janeiro?
AS – Depois do ensino médio decidi vir estudar no Rio. Esse ambiente da igreja foi em Macaé, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro onde fui criado, apesar de eu ser capixaba, de Cachoeiro do Itapemirim. Meu pai veio para o Rio estudar em um seminário teológico em 1974 e em 1978 a gente já foi para Macaé.
Quando vim para a cidade do Rio estudar foi a minha primeira incursão pela MPB, de conhecer a música popular mais a fundo. Até então meu envolvimento com a música era mais no âmbito da música cristã. Meu irmão já trazia para casa uns discos de MBP, Guilherme Arantes, Milton (Nascimento). Já tinha uma influência. Nesse período fui estudar numa escola chamada Centro Ian Guest (CIGAM), quando também começo a ter contato com o jazz. Fui fazer uma entrevista com o Ian Guest, que era o dono da escola, um húngaro radicado no Brasil, muito importante por causa dos songbooks de vários artistas que vemos hoje. Além de ter dado aula para o Almir Chediak, que era um cara que escreveu livros importantes, como Harmonia e Improvisação.
Lá na escola fui fazer harmonia, percepção e piano. Comecei a estudar piano com a Marisa Gandelman e depois com Rafael Vernet. E nesses estudos de harmonia, paralelo às aulas de pianos, estudei com Sérgio Nacif, Renato Alvim, depois com Domingos “Bilinho” Teixeira e depois o próprio Ian Guest. Quatro semestres diferentes de harmonia. Essas primeiras aulas aqui no Rio foram muito enriquecedoras. E dali comecei construir pontes do que seria o meu trabalho aqui no Rio.
Comecei a dar aula em Macaé, ia e voltava toda semana. Até que por volta dos 22 anos decidi vir morar no Rio de vez, onde estou até hoje.
EM – Então houve duas fases de estudos, popular e erudito?
AS - Sempre mantive o estudo da música erudita, porque sempre vi a necessidade de uma base técnica maior. A Marisa Gandelman lá no começo já me passava alguns exercícios, coisas ligadas à técnica pianista. Era um universo que me interessava, eu gostava. Estudei com Maria Alice de Mendonça, uma professora de Juiz de Fora que veio morar no Rio. Cheguei a estudar com a Sonia Vieira, Linda Bustani, Ronal Silveira. Mais recentemente resolvi fazer o curso de bacharelado de piano na UniRio. Então sou formado em harmonia e percepção pelo CIGAM, lá atrás, nos anos 90. E sou formado em piano na classe da professora Lúcia Barrenechea, que foi uma experiência mais intensa, de vivenciar o repertório clássico de uma maneira mais abrangente. Na faculdade você tem isso, tem de cumprir todos os períodos da música. Então toquei bastante coisa, foi um período muito enriquecedor.
EM - O álbum Adriano Souza Plays Jobim contém oito temas. Você trabalhou o lirismo em alguns e a batucada em outros. Gostaria que falasse sobre a obra do Tom Jobim como fonte.
AS – Quando fui separar as músicas existia essa preocupação de haver o contraste. Mais lentas, de andamento médio, mais líricas, como você comentou, e outras mais ritmadas. Mas não estava tanto atento a essa coisa que acabou ficando bem clara. Do samba, da batucada, com o lirismo das músicas do Tom. Isso acabou ficando e criando esse contraste. A obra do Tom tem essa riqueza de contrastes. De fato Tom Jobim é uma fonte grande de inspiração. A gente vive em um país onde a música popular atravessa a gente desde muito tempo. O próprio Tom foi influenciado por compositores que vieram antes dele, e por seus contemporâneos, obviamente.
Compositores que ele mesmo cita, como Dorival Caymmi, Ari Barroso, Noel (Rosa). Outros menos conhecidos, como Custódio Mesquita, Valzinho, que era um violonista da Rádio Nacional. Já compunham esse estilo de música com a harmonia mais sofisticada. O Tom conseguiu fazer isso. Com essa coisa do formato da canção, com aquela quadratura na maioria das músicas. O que proporcionou aos músicos uma grande assimilação. Para poder tocar como Standards.
EM – No formato canção e também no instrumental.
AS - Na música instrumental, isso também é uma coisa interessante. E uma obra muito variada. Você tem valsas, baladas, sambas, e tudo de uma beleza grandiosa, né? Sua música é uma obra inesgotável para todos os músicos. Como estava falando, a gente vive em um país que tem compositores incríveis, cada um com sua característica. Portanto, somos privilegiados por crescermos ouvindo artistas como Tom Jobim, Gil, Dorival, Milton, Djavan, Chico, Paulinho da Viola, só para citar alguns. Isso é de uma riqueza inesgotável. E para a gente que faz música instrumental, e no meu caso, não sou compositor... até componho, mas, confesso que curti essas coisa de pegar uma música que já existe e trabalhar em cima dela. Isso acaba virando um tesouro. Essa coisa de transformar uma canção. Digo transformar porque já passa a ser uma transformação quando você tira a letra, né? Digo, trabalhar o arranjo e a interpretação propriamente dita.
EM - A capa desse álbum é um piano cujo tampo imita as linhas sinuosas e delicadas do pão de açúcar. Eu te pergunto: Qual a necessidade de lançar um álbum com tamanha delicadeza em uma época com tanto ruído?
AS – A ideia desse álbum já existe algum tempo. Quase que 20 anos. Só que lá atrás ele se chamaria Jobim Ballads. Só com músicas mais lentas. Chegou a ser escrito na Lei Rouanet, consegui aprovação, mas não consegui captar para gravar. Algumas dessas músicas, como Modinha, Estrada Branca, Caminhos Cruzados já estavam. Não consegui captar e fui deixando, a vida foi seguindo. Obviamente trabalho em outros projetos, com outros artistas, dou aula também. Não tinha como dedicar tempo só para isso. De certa forma foi bom porque acabei amadurecendo musicalmente essas idéias. Modinha e Estrada Branca me instigaram na busca pela minha formação musical. Estudar a técnica pianística. Vi que precisava de mais coisas, além do conhecimento da harmonia, de trabalhar a sonoridade, a técnica do piano. De Certa forma o repertório que escolhi me ajudou. Em relação ao período atual da tua pergunta, não saberia responder o por quê. É o que naturalmente estou fazendo nesse momento. E como enxergo a música do Jobim.
É claro que daqui a alguns meses posso fazer algo diferente. Mas isso reflete a minha visão um pouco sobre a música de maneira geral. É como consigo me expressar. A obra do Tom também tem isso. É uma obra delicada. Procurei ficar muito atento às idéias que ele imprimiu de alguns arranjos. Ao mesmo tempo também sugerir a minha intenção. Imprimir as minhas ideias. Mas a obra do Tom é essa delicadeza que está presente na natureza. Quando você olha para o Rio, que ele tratou tão bem quando falava sobre isso. E quando escrevia. Várias de suas letras citavam a natureza do Rio, antes desse discurso entrar em evidencia e que é super importante. O Tom já falava muito sobre isso. Sobre a preservação da natureza. Recentemente fiz um clipe da música Modinha e acabei filmando tudo ali no Jardim Botânico, um lugar meio que o quintal do Tom. A delicadeza e ao mesmo tempo a força que tem a natureza. Vamos dizer, o ruído, para usar a expressão que você usou, é a obra do Tom. Esse ruído natural. Ruído no bom sentido. Que inspira a gente. Pra mim, que tenho a alegria de morar aqui no Rio, cidade com todos os seus problemas, mas uma cidade linda. E se tratando de se debruçar sobre a obra do Tom é interessante, você passa pela cidade e ao mesmo tempo vê paisagens que inspiraram o maestro, no sentido de estar aqui. Apesar de não tê-lo conhecido pessoalmente. De estar tão próximo daquilo que o inspirou.
EM - No Rio de Janeiro ainda existe aquela cena forte de jazz como em São Paulo? Quer dizer, não só um circuito. Para haver um circuito tem de haver a disposição das pessoas em pensar: “Pô, vamos naquele lugar que vai rolar um jazz”.
AS – Na década de 80 o Rio teve um período muito fértil. Muita opção de show. Além de espaços abertos com shows gratuitos. Muito importantes para a criação do público da música instrumental. Depois rolou uma escassez, acho que por conta da violência na cidade. Também com a falta dos governos, tanto estadual como municipal, a gente viveu um período de fechamento de várias dessas casas que tinham shows de música instrumental. Mas há algum tempo a tentativa de retomada. Falando de música instrumental, temos alguns lugares que têm programação semanal. Tem o Beco das Garrafas que está lutando para se manter. Nessa semana vou tocar lá. Todos os domingos rolam shows de bossa nova ou instrumental. Tem a Casa do Choro, que é um teatro muito bacana no Centro do Rio. Apesar do nome não tem só choro, rolam outras formações instrumentais diversas. Tem o Cardosão, que é um bar em Laranjeiras, onde há alguns anos toda terça-feira tem música instrumental com o pianista Luiz Otávio, Ney Conceição, José Arimatéa, Erivelton Silva, Bernardo Bosísio. Eu toco quase toda semana no Bistrô da Casa, que é um bistrô ali do lado da Igreja da Glória, junto com o Edu Neves. A gente faz de duo ali. Tem o Blue Note que voltou. Tem essas iniciativas de concertos nas casas, para um público mais reduzido, mas que é muito bacana. Os chamados house concerts. Há alguns anos tem acontecido isso aqui no Rio e tem sido muito importante para o fortalecimento da música instrumental na nossa cidade.
EM – Do rock ao jazz, toda a música que emana do Rio de Janeiro tem a batucada no sangue. Evidenciando a cidade negra que é o Rio. Gostaria que falasse sobre isso.
AS – De fato a influência do samba no Rio é notória. Que bom. Essa proximidade física, literalmente, do morro com o asfalto, vamos chamar assim, fez muito bem à cultura musical do Rio. Essa música que normalmente faço junto com outros músicos, que é a bossa nova, o samba, tem essa mistura claramente. O que comentamos sobre o disco que gravei. Das melodias sofisticadas. Essa palavra não é tão boa, vamos dizer assim, mais trabalhadas. Não gosto de usar a palavra sofisticada porque acaba soando como se o que não fosse “daquela” maneira não seria legal. Vamos dizer mais elaboradas, né? Como citei, até esses próprios compositores como o Tom fazem coisas mais simples e é também bom demais. Acho que a gente tem esse privilégio aqui no Rio, convivi e estou convivendo com tantos músicos fantásticos. Com tantos cantores fantásticos. Acho que a minha história está muito ligada ao samba. Trabalhei com a Beth Carvalho, cheguei a tocar com o Nelson Sargento, trabalho com o Paulinho da Viola, Roberto Menescal. Essa proximidade com o samba mais de raiz acrescentou muito à minha visão da música. E o Rio de Janeiro é o lugar que a maioria dos artistas escolheu para ficar e eu agradeço a Deus por poder estar aqui e vivenciar isso de perto. Essa riqueza que o samba e o morro são para o Rio de Janeiro.
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