Texto: Eugênio Martins Jr e Nuno Mindelis
Foros Cezar Fernandes
Após quase 500 anos de sua presença, Portugal proclamou a independência de Angola transferindo a soberania ao “Povo Angolano”, de forma efetiva a partir de 11 de Novembro de 1975.
O problema é que o país era dividido por três grupos políticos, MPLA, UNITA e FNLA que em seguida à proclamação deram início a uma sangrenta guerra civil.
Nesse ambiente cresceu Nuno Mindelis, um garoto que, como nós, curtia os Beatles e os Rolling Stones. Ouvindo os blues e o barulho de projéteis e explosões.
Após viver o drama da guerra, Nuno e família refugiaram-se no Canadá e definitivamente no Brasil, para se tornar um dos maiores guitarristas de blues do país. Morou no Rio e hoje está em São Paulo, onde consolidou sua carreira.
Estreou em disco em 1990 com Blues e Derivados com letras em português e no ano seguinte gravou Long Distance Blues com as participações de Larry McCray e J.J. Milteau, um dos gaitistas mais importantes da França.
Seus próximos dois trabalhos passaram para a história do blues nacional, ambos têm a participação de Chris Layton (bateria) e Tommy Shannon (baixo), o “Double Trouble”, duo que acompanhou o guitarrista texano Stevie Ray Vaughan. Com eles, Nuno não só ganhou reconhecimento das platéias internacionais, mas também um apelido: “The Beast”. São, Texas Bound (1995) e o elogiadíssimo Blues on the Outside que traz as pérolas The Grass is Greener, Spinning Wheel, Motorhead Baby e a faixa título.
Em Twelve Hours, Nuno volta ao estilo cru que o consagrou e em 2005, com Outros Nunos, outra surpresa, o CD com temas centrados nas letras e em seu lado literário com as participações de Zélia Duncan e Rappin’ Hood.
Hoje, quando essa entrevista está sendo publicada com exclusividade no Mannish Blog, Nuno Mindelis está gravando um CD nos Estados Unidos com Duke Robillard e seu time. Sobre isso, leia um breve relato de Nuno Mindelis.
“Gravamos no Lakewest Recording Studios, (Road Island, ao lado de Boston), com Duke e Jack Gaulthier, empresário de Duke e engenheiro do disco.
Jack já gravou lá com o Tom Waits e Jimmy Trackery, vai gravar em breve com Billy Boy Arnold (produção e Duke) e outros. A banda foi a do Duke, Brad Hallen (baixo), Mark Teixeira (batera), Bruce Bears (órgãos, Hammond, Rhodes, Wurlitzer e piano acústico) e o próprio Duke em algumas bases - e possivelmente vocais, ele ficou de substituir uns versos que cantei, a gente achou que ficaria bem legal ele dobrar comigo). Vai ter uma música que fazemos dueto de guitarra solo também, Hellhound.
Gravamos ao vivo no estúdio em dois dias, depois eu refiz algumas guitarras (boa parte permaneceu absolutamente original, solo e base feitos juntos e ao vivo mesmo, como se tocasse numa apresentação). Fiz alguns backing também e agora isso será mixado pelo Duke e Jack e eu ouvirei o resultado depois. Uma as musicas pelo menos terá backing vocal com negros e talvez congas.
A banda foi exemplar, profissionalíssima, dedicada e com muita espontaneidade, criando coisa além do requerido, atitude de criador mesmo, ficamos muito amigos, houve uma empatia imediata, demos muita risada durante todo o processo e continuamos escrevendo uns aos outros agora que estou longe. Foi muito legal.
Depois disso, baixei para a Florida e tenho feito shows ao vivo. Segue em primeira mão uma foto para você, com Susan Tedeschi e Derek Trucks”.
Eugênio Martins Júnior – Hoje você tem uma relação de amor e ódio com o blues, mas ele já lhe deu muita alegria. Você já tocou com algumas feras do gênero e conseguiu inclusive um certo reconhecimento. Quero que você fale sobre esse sentimento.
Nuno Mindelis – Você tem razão. Essa questão de amor e ódio é temporária pelo fato de eu ter começado há muitos anos. É uma história muito antiga. Fazendo um cronograma rápido, até os cinco anos eu ouvia música clássica que era a música que meus pais ouviam. Depois ouvi os Shadows fazendo Apache com aquela guitarra surf. Aos nove ouvi Otis Redding e a coisa do blues começou por causa do Booker T, Steve Crooper e aquela turma toda. Então, tudo isso é muito antigo, em 87 quando começou o chamado blues nacional, pra mim já tinha uns vinte anos que eu mexia com o blues. Sem exagero. Eu tinha uma bandinha em Luanda que tocava Rory Gallagher, que naquela época ainda era do Taste, Stephen Stills, Eric Clapton, isso em 70. Quando cheguei aqui no Brasil em 76 eu já vinha tocando blues. Aos 18 vi o Willie Dixon com o Roy Buchanan no Canadá. Na verdade, esse negócio de amor e ódio pode não ser a expressão exata, pode ser uma necessidade de reciclagem, porque estou há mais de quarenta anos fazendo blues. Vejo as pessoas que estão sendo seduzidas e arrebatadas pelo blues hoje como uma coisa que aconteceu comigo há cem anos. Qual é a novidade? (risos). Mas essa relação pode ser também porque o blues me engessa para fazer outras coisas e sei fazer muitas outras coisas, modéstia à parte. Mas ninguém presta a atenção nelas. Então você pensa, “pô quero me livrar do blues”. Não querendo comparar, mas o Johnny Winter fica anos sem fazer nada para evitar esse tipo de coisa. Ele não estava se agüentando mais, coisa que está acontecendo comigo. Não tenho mais paciência para minha própria música. Você quer fazer outras coisas e os fãs reclamam. Já veio fã me dizer que eu posso achar tudo igual, mas que eles acham do cacete.
EM – Certo, mas o Johnny Winter está lá no Texas e não sofre a influência da música brasileira que é muito forte. Você sofre. Está muito exposto à nossa música.
NM – Entendi a sua analogia, mas não sei se é isso. Ele sofre muito a influência de música mexicana, cubana, eles têm muito isso. O Ry Cooder, o Danny Gatton, eles faziam muita coisa México. O Bob Dylan andava fazendo umas rumbas. Quando era mais novo, um primo canadense disse que eu precisa tomar cuidado para não embrutecer. O cara estava preocupado que eu fosse embrutecer como os caras que faziam blues, Muddy Waters e tal. Eles só sabiam fazer aquilo. O próprio Eric Clapton fez um disco eletrônico e está sempre mudando o cardápio dele. É normal isso, os fãs puristas não gostam, mas é importante que isso aconteça para o artista se reciclar. É como se ele saísse de férias e voltasse pro blues com mais gás.
EM – O teu disco Free Blues tem bases eletrônicas.
NM – A ideia era essa. Se uma criança do século 21 perguntasse o que é o blues, você poder mostrar dentro da linguagem dela. Não é música eletrônica, mas é blues feito eletronicamente. Com baterias acústicas adicionadas às bases sampleadas, com um disfarce acústico em cima, guitarras tradicionais. Esse é um bom exemplo, esse disco me fez sair de férias e voltar com vontade de fazer um novo Texas Bound. Resumindo, é mais um problema meu do que um problema real.
EM – Você é da época que o André e o Blues Etílicos faziam letras em português e você só veio a gravar em português após muitos anos, em Outros Nunos. Você não sente vontade em fazer blues em português. O blues é amigo da língua portuguesa?
NM – Antes de tudo isso, eu fiz um álbum chamado Blues e Derivados. Um LP que tinha algumas coisas em português. Tocou muito na rádio Eldorado. Teve muitas críticas e todas diziam que eu devia cantar em inglês. Então os discos seguintes, da Movieplay que tem uma distribuição forte lá fora, Long Distance Blues foi em inglês. Aí a crítica disse: “Pô que pena, poderia ter sido feito em português” (risos).
Eu sou lusófono, é um conflito que existe. Você é arrebatado pela cultura gringa, como é o caso do blues e do rock, mas seus heróis literários são outros. Desde o primário você estudou Eça de Queirós, Machado de Assis, na verdade você acaba sendo uma anomalia. Agora, a língua portuguesa não é amiga do blues assim como o inglês não é amigo do samba. Na real, você prefere ouvir samba em inglês ou em português?
EM – Em português. Mas é que nunca fizeram um samba legal em inglês. E também não há tantos artistas americanos cantando samba como brasileiros cantando blues.
NM – Eles cantam bossa nova em inglês...
EM – E acho que bossa em inglês fica bom em alguns casos.
NM – É... acaba ficando bom, mas é como se fosse um filme dublado. O que acho é que dá pra construir o que você quiser em qualquer língua e sem fronteiras. Dá pra fazer um disco de blues bem feito em português. Tenho a certeza que dá pra fazer.
EM – Quando foi a primeira vez que o blues bateu na veia?
NM – Na minha vida isso aconteceu por volta dos doze anos quando recebi do meu primo me deu um compacto que de um lado tinha a música You and Me e do outro So Exited do B.B. King. Aquilo foi um impacto violento. Corrigindo, isso foi aos 11 anos. Aquilo começou a mudar a minha cabeça e aos quinze anos me lembro de ter escrito uma carta a um amigo dizendo que tinha certeza que nunca mais ia fazer nada da vida a não ser blues. Esse foi o primeiro impacto, mas ouvi antes o Otis Redding cantando Rock me baby em versão soul. Aí veio aquela febre do blues inglês com Eric Clapton e John Mayall, Stones apontando o dedo pro pessoal de Chicago. Tinha mil LPs de blues aos 17 anos em Angola. Só os originais.
EM – Você saiu da Angola e foi parar no Canadá. Uma vez nós conversamos e você me falou que nessa época viu o Weather Report, Frank Zappa e shows de blues. Fale sobre isso.
NM – Saí da Angola por causa da guerra. No Canadá vi shows de todo mundo que ouvia em disco. Então, lá eu assisti Deep Purple, Jethro Tull no auge. E a história do Weather Report é interessante porque o show era do Gentle Giant, que foi um dos shows mais impactantes da minha vida. Quem abria era o Weather Report, acho que com o Miroslav Vitous ainda, a banda original. Aí eu perguntava pro pessoal quem era que estava tocando e ninguém conhecia. Não queriam nem saber, era a bandinha de abertura do Gentle Giant. Foi uma fase interessante, tinha uma banda no Canadá que era Stephen Barry no baixo e o Paul, não me lembro o sobrenome, na batera. Eles acompanhavam todos os caras do blues que iam pra lá e eles tocaram com o Muddy Waters! Quando cheguei ao Canadá um dos meus primos tocava em uma banda de blues famosa, a Albert Fayley’s Band, e era casado com uma das vocalistas. E os irmãos dela também eram dois grandes guitarristas dessa banda. Então me juntei com esses caras e a gente tocava na sala. Foi quando comprei a minha Les Paul. Meu primo ficava impressionado por eu ter saído da África e saber as letras dos blues. Pra mim, que na época tinha 16, 17 anos... assistir o Willie Dixon. Pra você ter uma ideia, eu chorava. Estava a três metros do Willie Dixon e do Roy Buchanan.
EM – Essa Gibson que você tem hoje é dessa época?
NM – Sim, precisava comprar e ela custava uns 750 dólares, equivalente hoje a três mil dólares. Comprei só pra isso. Trabalhava em uma fábrica de camisas e fazia tudo, carregava os rolos de tecido, cortava tecido que era um cargo mais graduado, varria o chão. Fiquei dois meses e pouco, mas o salário mínimo era alto. Eu comprei a guitarra e já saí. É uma Gibson Les Paul Custon e está aqui até hoje.
EM – Você sofreu os impactos da guerra ou saiu no começo?
NM – Estava lá na fase mais crua, de combate. De 74 a 75, até um mês antes da independência eu estava lá. Tenho histórias que parecem de cinema. Situações de guerra, de tiro, de perda. A parte da guerra mais crua eu peguei em cheio. Pra você ter uma ideia, quando havia silêncio, a gente tinha mais medo do que quando havia explosões. Nesse momento o silêncio é assustador, você começa a olhar para os lados e não tem referência. Você não sabe onde vai ser o próximo estouro. Esse foi o cenário que saí da Angola e fui considerado um desertor porque saí com uma licença provisória. Deu problema no aeroporto, ia para Lisboa e acabei indo para o Canadá. O piloto teve a família assassinada e o avião não passou. Foi o último vôo da Varig que havia avisado que se voltassem a atirar nos aviões deixaria de operar aquela rota. E aí os caras atiraram mesmo. A gente aterrissava e decolava com as luzes do avião apagadas pra não servir de alvo. Luz no céu de noite era alvo. Sabe quando o avião decola com luz apagada? Então, igual.
EM – Não, nunca passei por isso (risos). Como era a cena blueseira no Brasil quando você chegou?
NM – Não rolava nada. Se havia alguma coisa era dentro de alguma casa, o cara estava ali fazendo o blues dele. Cheguei e fui morar em um conjunto no Leblon que os caras chamavam de selva de pedra. Um monde de gente virou minha amiga porque eu cheguei com uma Les Paul e os caras só haviam visto o Jimmy Page com uma daquela. E tinha o pessoal fazendo MPB, que eu não sabia fazer, mas ia lá com a gaitinha que eu levava no bolso e tocava blues e rock. Falava pro pessoal, vem cá vou te mostrar o que é blues e aí achava um disco do Canned Heat e comprava pro cara. Fiz isso várias vezes e era classe média alta. Os caras não gostavam e eu acabava ficando com os discos. Tenho um amigo lá até hoje e o cara me escreveu dizendo que a esposa dele não gostava de mim porque eu o ensinei a gostar de Frank Zappa. Você vê, não rolava nada. Não era igual a Argentina, Chile, Espanha, Holanda, Angola ou Congo. As colônias na África também ouviam o que a metrópole estava ouvindo. Aqui não, era outra onda. Era a onda da bossa. Há poucos países no mundo que conhecem a força da sua própria cultura e o Brasil é um deles. O Brasil não estava ouvindo blues naquela altura, mais ou menos como os americanos não estavam vendo cinema europeu. Se nós temos Hollywood aqui porque eu vou ver cinema europeu, entendeu? Acho que deve ter sido por aí.
EM – Então, aí o blues chegou por aqui nos anos 80 e está aí até hoje. Vou arriscar até a dizer que no mercado mundial o Brasil é um dos países que tem mais blues, mesmo que não seja a música mais popular.
NM – A Inglaterra tem muito blues e blues muito bom. A Alemanha... não sei dizer. Do ponto de vista da qualidade, os Estados Unidos, a Alemanha, a Suécia. Você pega uma banda das boas acha que os caras são americanos. Na Alemanha a mesma coisa.
EM – E no Brasil, não? Aqui tem Nuno Mindelis, Flávio Guimarães, André Christovam.
NM – Obrigado por me incluir. A linguagem daqueles caras é muito mais verossímil. O próprio Eric Clapton fala até hoje que não entendia como os caras do blues estavam pagando pau pra ele se eles eram muito mais legítimos. A nossa legitimidade vai pro vinagre perto desses caras. Sem querer desapontar você.
EM – De maneira nenhuma. Olha só, em uma época em que o John Paul Hammond, o R.L. Burnside e outros gravam discos com bases eletrônicas e as coisas estão se misturando. Por exemplo, o Jefferson Gonçalves mistura blues com ritmos nordestinos e o Blues Etílicos com berimbau. Qual é a legitimidade que você defende?
NM – Sabe aquela história que americano quando quer fazer samba acaba parecendo rumba e todo mundo acha engraçado e o brasileiro gosta de brincar com isso. O que estou dizendo é exatamente o outro lado da mesma moeda só que aí as pessoas não gostam de ouvir. Quando eu vou pra Austin, no Texas, volto tocando muito mais, com outras referências. A informação direta, permanente no seu ouvido... todo mundo deveria fazer um estágio lá. Volta muito mais enriquecido. É impressionante como a informação direta faz a diferença. Um japonês cujo sonho é tocar samba igual a brasileiro, ele tem de morar aqui senão na rola. Por mais que você ouça disco o dia inteiro há sempre alguma coisa que você só aprende in loco.
EM – Mas é o que eu estou dizendo. Caras como o Ivan Márcio, o Igor Prado, o Big Gilson, que viajam para os Estados Unidos e tocam direto com os caras de lá. Ano passado o Giba, o Maurício Sahady e o Cristiano Crochemore também foram pra Chicago e fizeram um intercâmbio. Alguma coisa não há de se desenvolver disso aí? Sem querer ser ufanista.
NM – Bom, se você considerar o blues dos anos 80 e o de agora, deu uma melhorada violentíssima. Há vários pontos a considerar nisso que você disse. Nos anos 80, 90 quando me perguntavam se eu achava o blues nacional bom eu já ficava muito preocupado porque não poderia falar que não achava pra não desapontar todo mundo. Mas o fato é que era muito insipiente mesmo. Muito Mandrake. Eu dizia que o blues brasileiro ia ser bom quando os garotos que estavam naquela época com sete ou oito anos crescerem. Lembro que em 92 os garotos não podiam entrar nos meus shows. Falei isso várias vezes em entrevista. E foi o que aconteceu, foi preciso mais de uma década pra esses meninos crescerem e começarem a arrepiar. Os caras que não pegaram o blues no berço... nos anos 80, quando surgiu no Brasil, todo mundo queria blues, os caras punham no roteiro, toca samba, toca bolero e blues... o blues explodiu na mídia e os convertidos diziam que tocavam blues. Os caras tinham uma ideia vaga do que era e faziam coisas horríveis. E andava por ali um monte de bandas que faziam uma massa sonora feia, mal executada. Eu chamo de convertidos. Os anos 80 e 90 produziram muito lixo. E não havia crítica na época, como não há até hoje, e engoliam qualquer coisa e queriam que você falasse bem de tudo. Naquela época, sempre falava pra não me perguntar sobre o blues de hoje, mas sobre o blues daqui a vinte anos. Você vê que as novas gerações que arrepiam hoje são os caras que tinham sete anos nos anos 80. Nesse aspecto o blues no Brasil melhorou muito. A questão do intercâmbio é porque o Brasil é a sexta economia do mundo e todo mundo quer vir tocar no Brasil e não só blues, todo mundo quer vir pra cá. Querem trabalhar, arrumar emprego aqui e tal. Os americanos sempre foram interesseiros: “Se você me arranjar um show no Brasil eu também te arrumo uma gig lá”. Na verdade, eles são extremamente xenófobos em relação à música que não é americana. Desculpa se estou desmistificando um monte de coisas com você, mas tenho experiência suficiente. O blues é americano e é assim que eles vêem o negócio. Desculpa se quiser limar essa parte pode limar.
EM – Não tem essa de limar, não.
NM – O negócio é o seguinte, o celeiro de blues é nos Estados Unidos e eles não dão importância nenhuma ao blues brasileiro a não ser em querer tocar aqui. Não ligam a mínima nem pra nenhum outro. Falei uma frase forte que tem de ser acompanhada de outra frase, senão ela fica fora de contexto e aí todo mundo fala “Ahhh, o Nuno é um pentelho”. O outro exemplo que eu te dou é que só existe um bluesman inglês que acontece nos Estados Unidos e que é o Eric Clapton. Nem o Gary Moore com aquela mídia maciça em cima e a mesma gravadora dos Rolling Stones aconteceu nos Estados Unidos. Isso não quer dizer que isoladamente o cara não faça a sua história. Mas isso não afasta o respeito individual. O Bryan Lee, por exemplo, é meu fã. Ele tem disco meu e fala as músicas que ele gosta e tal. Mas na hora que você quer entrar no blues oficialmente, não entra. O Ivan Márcio é bom gaitista aqui e em qualquer lugar do mundo. Ele pode tocar nas gigs em Chicago sem fazer diferença nenhuma. Sem sotaque. Mas, o que me refiro é do ponto de vista oficial. Se ele quiser fazer uma carreira de gaitista na América, primeiro sempre vai aparecer um gaitista americano. O próximo Stevie Ray Vaughan não vai ser um cara daqui.
EM – É, mas eu estive com o Duke Robillard em Rio das Ostras e ele falou no teu nome. Isso é um reconhecimento, não é? Disse que ia trabalhar com você. Fala sobre esse trabalho.
NM – Tem um americano que não é músico, mas tem programa de blues, tem discos e tal, é um bluesófilo, um cara como você, curtidor de blues. Ele é o meu fã e me mandou um e-mail como se fosse para minha assessoria, sei lá, pra outra pessoa: “Prezados senhores, gostaria de saber quando é que o Nuno Mindelis virá tocar na Filadélfia?” Um e-mail bem formal. Aí eu respondi que ia quando me chamarem. Ele ficou impressionado de eu ter respondido direto pra ele. Aí esse cara me chamou pra participar do W.C, Handy Award, o Oscar do blues em Memphis. Então eu estava no aeroporto de Memphis indo pra Filadélfia e senti um toque no ombro e uma voz: “Hey beast”. Quando olhei pra trás era o Duke, aí eu perguntei como ele sabia o meu apelido lá e ele disse que tinha o meu disco. Aí esse Jesse, que me levou a Memphis, tem um selo de blues e é sócio do Duke e eu não sabia. E isso tem um tempo e eu não vou e fica engraçado eu falar pro Duke que aqui está uma pauleira e eu não posso ir gravar. E isso mostra a relação amor e ódio que eu te falei. Se fosse há dez anos eu já estaria lá e gravando dez discos. Agora estou mais calmo e nem sei o que vou gravar, blues tradicional, disco de rock, minha cabeça está atrasando. Fui pra Nova York só pra manter o assunto aquecido, estava produzindo um festival em Aldeia da Serra que tinha gente grande, Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Ballet Stagium, João Carlos Martins, Isaac Karabtchevsky, é um trabalhão. E ao mesmo tempo mais três projetos. Agora eu vou parar, com exceção de shows que tem de fazer, e vou desenhar esse projeto com o Duke Robillard. Ele vai participar do disco, ele falou pra gente fazer um jam álbum, entrar no estúdio e tocar e eu achei demais. Isso quer dizer que ele está se colocando também como músico e não só como produtor. Isso pra mim é um passo importante na minha carreira porque esse cara foi convidado por Bob Dylan pra gravar um disco. Ele já gravou com John Hammond, Tom Waits.
EM – Não dá pra fazer de qualquer jeito.
NM – Tenho que saber o que fazer. Eu acho assim, o ócio chama o ócio. Se você começa a fazer, começam a vir coisas melhores na cabeça. Tenho de inverter esse processo, costurar um repertório e fazer um disco.
EM – E também tem o lance dos estilos, ele é super elegante e você é a fera (the beast). Isso pesa?
NM – Eu pensei em fazer de jazz na onda dele. Sempre gostei mais de rock nas coisas, mas tenho também essa pegada, essa coisa mais sutil. Se você ouvir Dana’s Song do disco Twelve Hours, mas não sei se é o que eu quero. Estou um pouco com rejeição a coisas datadas, estou querendo inventar alguma coisa. Mas tudo o que eu fizer é o blues que está fazendo. E eu falo isso para todos os músicos, que está tudo muito previsível, não há nada inovador. O Jeff Beck falou uma coisa que eu concordo, ele toca no Crossroads, aquele mega festival do Clapton e é tudo muito bonito, tecnicamente impecável, mas não sai disso há quarenta anos.
EM – E esse apelido The Beast, como surgiu?
NM – Tem um jornal, pelo menos tinha no Texas, chamado Austin Blues, e eu fui capa dele e eu estava indo tocar no festival da Antone’s que tinha Clarence Gatemouth Brown, Chris Layton e Tommy Shannon, Albert Collins, o clube e a gravadora Antone’s. Uma das Mecas do blues americano como Chicago. Dali saiu o Stevie Ray Vaughan, Doyle Bramhall que eu vi tocando de calção aos 15 anos. Então estava indo tocar e deu na capa desse jornal: “The South American beast who’s coming to your town”. Foi assim que começou, a imprensa americana me chamando de fera.
EM – Foi nesse festival que você conheceu o Chris Layton e o Tommy Shannon e iniciou a parceria que rendeu dois discos?
NM – Ali eu vi ambos tocando, mas não conheci pessoalmente. Tinha um produtor da Antone’s, o Eddie Stout, que ficou impressionado comigo. Cheguei até a fazer uma joint venture com o disco Texas Bound que saiu Antone’s/Eldorado. Toda a vez que você vai gravar fora manda o rascunho para o cara ter uma ideia do que vai ser pra chamar os músicos certos. Esse cara me pediu pra fazer isso, porque se fosse um som mais Chicago ia chamar uns caras com essa característica. Então ele estava tocando a fita cassete que eu mandei com o rascunho do Texas Bound, comigo tocando todos os instrumentos, quando o Tommy Shannon entrou na loja. Aí o produtor jogou um verde e perguntou se ele queria tocar no disco e contou toda a história. Aí o Tommy falou que seria um prazer. O Eddie me ligou fazendo aquelas brincadeiras, adivinha quem quer tocar no teu disco? Mas era pra ser em uma música ou duas e na real a gente gravou o disco inteirinho. Eu, o Chris e o Tommy gravamos todas as bases ao vivo no estúdio em um dia, inclusive com gaita, teclado. Embora tenha cantado mal eu tenho orgulho dele.
EM – Pegando a informação quer você deu de fazer outras coisas fora do blues, você tem planos de fazer um disco como o Outros Nunos?
NM – Eu quero fazer sim um projeto, não exatamente como o Outros Nunos, época que eu já estava começando a ficar inconformado com a mesmice e querendo abraçar um pouco a eletrônica a serviço do bem sabe, com aqueles elementos hip hop e tal. E eu continuei isso no disco Free Blues, do ponto de vista instrumental aplicado em blues e não em temas meus. A diferença essencial entre Outros Nunos e Free Blues é que um tem texto meu, inclusive na saída do exílio, com 17 anos. Então me preocupei com o texto e o baú de poesia que tenho desde que nasci. O Free Blues é parecido com o Outros Nunos do ponto de vista instrumental porque ele usa elementos da eletrônica, coisas sampleadas, hip hop, house que eu achei que fzem com que o blues e mantenha para as novas gerações. Mesma forma que o Eric Clapton e a rapaziada quando injetou eletricidade no blues e fez uma coisa nova. Talvez eu faça um disco em português, mas não com esses elementos eletrônicos que eu também já saí de férias. Mas um disco que tenha blues e rock, mas que tenha elementos de pop também, que eu possa convidar amigos. Gostaria de convidar a Zélia Duncan que cantou no Outros Nunos pra cantar outras coisas. Num disco menos visceral. Uma coisa menos complexa, mas arrepiando no rock com os amigos tocando.
EM – Pra finalizar, quantas guitarras você tem?
NM – Uma Schecter, uma Fender mais novinha pra bater na estrada, a Gibson Les Paul que comprei quando era moleque. Não tenho muitas guitarras, agora mesmo estava falando com a patroa que eu queria uma (Gibson) 335 vermelha, mas é cara. As pessoas acham, que eu tenho umas quarenta guitarras (risos), mas a maioria é coisa velha.