Blitz - o império nunca dorme
Texto: Eugênio Martins Jr
Fotos: Internet (Trupe Olho da Rua)
Duas manifestações bem diferentes aconteceram em São Vicente e Santos no fim de semana passado. Sábado e domingo, respectivamente. Presenciei a primeira e acompanhei os desdobramentos da segunda. Duas medidas bem diferentes adotadas pela polícia militar mostraram que há parcialidade nas situações de rua.
A de sábado, acabou bem para os manifestantes e nem tanto para as pessoas em volta. A de domingo, não acabou mal só para os manifestantes, acabou mal para todo mundo.
A partir do relato a seguir, você pode tirar suas conclusões. Ainda é livre para isso, mas eu vou fazer de tudo pra te influenciar.
Manifestação 1 - Sábado, 29 de outubro, passei ali na praça Coronel Lopes em São Vicente, ou praça do camelódromo, ou para os mais antigos, praça do Correio.
Era seis da tarde, alguns jovens portavam faixas e cartolinas em uma manifestação religiosa. Vamos chamar assim por enquanto.
A faixa trazia alguma coisa escrita sobre o grupo: “Jovens a serviço de Jesus”. Ou algo nesse sentido. Nas cartolinas estava escrito: “ Se você acredita em Jesus, buzine”.
A manifestação era a seguinte, quando o semáforo fechava, alguns jovens se posicionavam em frente aos carros exibindo a tal faixa e outros desfilavam entre eles exibindo as cartolinas com os dizeres: “Se você acredita em Jesus, Buzine”.
Segundo uma das balconistas que trabalham no camelódromo, eles estavam ali há horas. Estive no local, umas quatro ou cinco fechadas de semáforo, o suficiente pra comprar um fone de ouvido. E a parada já me irritou. Imaginem quem estava trabalhando ali o dia inteiro.
Acreditem, não são poucas as pessoas que acreditam em Jesus em São Vicente e dispostas a buzinar para mostrar isso. Nas cartolinas estava escrito: “Se você acredita em Jesus, buzine”.
São Vicente é terra do prefeito Bili, aquele que por coincidência, ou não, foi o candidato escolhido por Deus há quatro anos. Pelo menos era o que dizia o seu slogan de campanha. Mas Deus, também conhecido pelo nome terrestre de Márcio França, parece não ter dado muita bola para o candidato que derrotou o seu filho na eleição. Não, não foi Jesus, foi o outro filho, o Caio.
Mas esse é outro assunto. Voltando ao sábado, eram dezenas de motoristas buzinando a cada semáforo fechado, pois nas cartolinas estava escrito: “ Se você acredita em Jesus, buzine”.
Não satisfeitos com o ruído infernal (hehehe) que as buzinas provocavam, os jovens ainda gritavam para os motoristas. “Aleluia”, “Jesus é nosso rei”, “Deus seja louvado”, e outras.
A polícia? Assistia tudo ali do lado. Impassível. Apesar de toda a pentelhação. Imaginem, uma buzina já enche o saco. Mais de vinte é de matar.
Em seu artigo 41, capítulo 3, o Código de Trânsito Brasileiro diz que o condutor de veículo só poderá fazer uso de buzina, desde que em toque breve, nas seguintes situações: I - para fazer as advertências necessárias a fim de evitar acidentes; II -fora das áreas urbanas, quando for conveniente advertir a um condutor que se tem o propósito de ultrapassá-lo.
Percebam que mesmo que você acredite em Jesus, não pode buzinar pra ele. A não ser nos casos em que não queira atropela-lo.
Errada estava a polícia, errados estavam os motoristas e errados estavam os jovens que, sinceramente, não sei o que estavam pensando quando planejaram a zona religiosa desastrosa e desrespeitosa com as pessoas ao entorno. Escrevendo em cartolinas: “Se você acredita em Jesus, buzine”.
Mais bonito seria se nas faixas estivessem escrito: “Se você acredita em Jesus, dê seta”. Se você acredita em Jesus, respeite a faixa de pedestres”. Se você acredita em Jesus, não corra”.
Sou ateu. Me sinto bem. Sem obrigação nenhuma. Leve. E não fico alardeando isso e nem querendo convencer ninguém que ser ateu é bom. Mas esse negócio de colocar Jesus em tudo tá enchendo o saco. E mais do que isso, esse fanatismo está passando dos limites. Invadindo a vida de quem não tá nem aí para religião, Jesus, Deus, Alá, sei lá.
Volto a repetir, uma ação invasiva, egoísta e sem educação. E a polícia não fez nada.
Jovens atores na porta do Palácio da Polícia
Manifestação 2 - Domingo, dia 30, a Trupe Olho da Rua, um grupo de teatro de Santos fazia o que faz há mais de dez anos, como o nome diz, peças de teatro para as pessoas assistirem na rua.
Estavam na Praça dos Andradas, local onde ocupam um imóvel que chamam Vila do Teatro, onde há o Centro Cultural Pagu (Cadeia Velha) e o Teatro Guarany. Um local com vocação cultural e que vem ganhando destaque nos últimos meses por causa de outras ocupações culturais.
Encenavam a peça Blitz – O Império Que Nunca Dorme, um protesto bem humorado à truculência da polícia militar. Se a peça é boa ou não, foda-se. Assista e tire suas conclusões. E você tem o direito de não gostar.
O que aconteceu domingo é o que interessa. A polícia chegou chegando com pistola na mão, interrompeu o lance e levou um dos atores preso. Caio Martinez foi algemado, colocado no camburão e levado ao primeiro distrito policial, com o pomposo nome de Palácio da Polícia.
E é aí que os dois fatos se encontram. Crentes em Jesus podem fazer o que querem em praça pública em São Vicente. Praça pública não, no meio do trânsito. Atores em Santos não podem criticar uma instituição terrena mantida por nós e que tem o dever de prestar serviço a nós.
Se liga. Estudos da Anistia Internacional e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que as polícias brasileiras, civil e militar, são rápidas no gatilho.
Em um relatório publicado em março de 2016, a especialista independente da ONU sobre minorias, Rita Izsák, alertou: cerca de 23 mil jovens negros morrem por ano, muitos dos quais, vítimas de violência pelo Estado. Se isso não é genocídio, qual o nome que você daria?
Mas como dizia a música do Rappa, também morre quem atira, e nossos policiais são os que mais morrem. O que falta para os governos reconhecerem que vivemos em uma guerra declarada entre os pobres?
Sabemos que o policial não pode se manisfestar sobre as péssimas condições de trabalho. Então, resta a sociedade civil fazer isso. E era isso que a Trupe Olho da Rua estava fazendo na praça batizada em homenagem aos libertários irmãos Andradas.
Os policiais que estavam no local passaram atestado de burrice. Com truculência policial, acabaram com uma peça teatral que tratava da truculência policial. Se tivessem ficado, assistido até o final e depois aplaudido, teriam mostrado alguma compreensão de sua própria situação. Funcionários públicos que trabalham em uma corporação que também os oprime, com uma disciplina desumana pagando salário de fome.
As posturas distintas da polícia nas duas ocasiões mostram por que está cada vez mais difícil se falar o que pensa no Brasil atual. A não ser que você apoie as bancadas da bíblia e da bala.
VIVA A TRUPE OLHO DA RUA.