Greg Wilson e Noel Andrade - Sesc Santos 21/04/2018
Fotos - Tiago Cardeal
A entrevista de Flávio Guimarães contida no primeiro Blues – The Backseat Music foi fácil. Nossos caminhos se cruzaram na estrada um montão de vezes e numa dessas acabou acontecendo. Mas passei anos tentando falar com os outros caras, Greg Wilson, Cláudio Bedran e Otávio Rocha.
Finalmente consegui e, com sorte, falei com o novo integrante da banda pioneira do blues no Brasil, o baterista Beto Werther, que por sua vez foi integrante de primeira hora da também carioca Big Allanbik.
Aos desinformados, digo que o Blues Etílicos foi pioneiro na mistura do blues com alguns dos ritmos brasileiros, dando régua e compasso a muitos artistas que vieram depois. Letras em português e inglês, com muita personalidade.
Ao longo dos 30 anos de estrada, eles misturaram guitarra com berimbau, tocaram Raul, homenagearam Muddy Waters e, acima de tudo, inventaram o blues na terra do samba.
O caminho dos integrantes genuinamente cariocas cruzou o caminho de um americano – olha a encruzilhada aí de novo – e a banda foi criada em plena efervescência do rock nacional.
As letras de Cazuza e a guitarra de Frejat, já flertavam com o velho blues. As de Celso Blues Boy também. Mas nunca assumiram o namoro. O Blues Etílicos foi lá e raptou a noiva, casou e gerou diversos filhores. O Big Allanbik foi um deles. Beto Werther conta um pouco dessa história aqui. E também fala um pouco sobre o irmão cantor, Ricardo Werther, falecido em 2013.
A entrevista aconteceu em um show da turnê Canoeiros, CD homenagem a Tião Carreiro, gravado em parceria com o violeiro Noel Andrade, aqui na minha cidade, Santos.
Canoeiros mostra que o tempo não consumiu a disposição e muito menos a criatividade da banda. A mistura da viola caipira do interior com a slide do Mississippi rende bons frutos e o “country” O Menino da Porteira é a prova.
O tempo passa para todos e a banda que misturou blues e birita mostrou que o segredo da vida é se manter em movimento. Como diz o Larry McCray: “Get Your Blues On”.
Entrevista com Greg Wilson
Eugênio Martins Júnior - Você nasceu em Tupelo, no Mississippi, terra do Elvis, veio ao Brasil e depois voltou aos Estados Unidos para estudar. Como essas influências musicais agiram na tua cabeça? Essa mistura?
Greg Wilson – Meus pais vieram trabalhar como missionários quando eu tinha seis meses de vida. A regra da Igreja Batista era que eles tinham de ficar pelo menos cinco anos e depois voltar aos Estados Unidos por um ano. Eles tinham de viajar pelo país e falar nas igrejas sobre os trabalhos que haviam feito no Brasil. Passei um tempo ficando cinco anos aqui e um ano lá até acabar aqui o ensino ginasial. Depois fui cursar a universidade nos Estados Unidos, após me formar voltei pra morar de vez no Brasil.
EM – Teu pai era regente de corais. O que vocês escutavam em casa?
GW – Ouvíamos todos os tipos de música. Ele gostava muito das big bands, aquelas coisas do sul. Nasci em Tupelo porque eles estavam na universidade do Mississippi, mas o pessoal é todo da Carolina do Sul. Me criei aqui no Brasil, Rio Grande do Sul e Paraná e depois no Rio de Janeiro onde estou até hoje. Esse ano que eu passava lá era sempre na Carolina do Sul. Meu lance musical era todo dentro da igreja. Meu pai era músico e fazia isso nos corais, quartetos, seminários. Eu vivia rodeado de instrumentos, todos os meus irmãos são músicos. Quer dizer, tiveram aprendizado. Tiveram seus instrumentos. Eu só fui tocar blues depois que voltei da universidade. Já sabia, já conhecia, mas não tocava. Gostava muito de James Taylor.
EM – E como foi o encontro com o pessoal do Blues Etílicos?
GW – Quando morei no Rio estudei na escola americana. No final, alguns amigos foram para as suas universidades nos Estados Unidos. Mas nas férias, geralmente no verão, eles voltavam para o Rio e alugavam um apartamento por uns meses, onde eu ia sempre fazer um som. Um belo dia entram o Flávio e o Cláudio atrás de um deles que era guitarrista de blues. Ele tinha colocado nesses quadros de universidades um anúncio se oferecendo como guitarrista e foi tocar com o Blues Etílicos. Eu ia aos shows e acompanhava a galera. Quando acabou a temporada esse cara foi embora e como eu já estava entrosado com a rapaziada me candidatei à vaga. Gravamos o primeiro disco e entramos na Eldorado.
EM – Eu tenho uma curiosidade. Você nunca teve vontade de fazer uma temporada nos Estados Unidos, a terra do blues?
GW – Já tive e gostaria de fazer isso com a banda. Mas por incrível que possa parecer a gente nunca teve esse projeto e dessas bandas novas todos já fizeram isso (risos).
Mas a gente não seguiu o tradicional, a gente compõe em português. Digamos que a nossa missão era inserir o blues na nossa realidade.
EM – Mas você gravou um disco solo bem blueseiro. Com bastante shuffle, o Blues Etílicos gravou Viva Muddy Waters e o Flávio gravou umas coisas bem tradicionais nos discos solos. Vocês fazem isso bem.
GW – Claro. Se quiséssemos poderíamos gravar vários discos assim. Também tem a gaita, da slide, do meu vocal. Se a gente vai tocar num bar de blues pra se divertir é blues total.
EM - Fale sobre a parceria com o Alex Rossi.
GW – A gente se conheceu nos anos 90. Numa dessas idas a Porto Alegre. Ele me convidou para fazer umas gigs por lá com uma banda. Numa dessas ele arrumou um show em um projeto cultural. Era numa sala arrumada, com cadeiras. Era só minha guitarra e a gaita dele. Quando acabou o show o cara do som disse que tinha gravado tudo.
EM – E aquele disco é o show na íntegra!? Ele gravou direto da mesa?
GW – É. Demos uma mexida, claro. Mas nem sabíamos que estava gravando. Pensamos em fazer esse CD pra conseguir mais shows.
EM – Acredito que a viola caipira é prima da slide do blues. Gostaria que falasse sobre a parceria com o Noel Andrade que gerou um disco e esse show? Como surgiu a ideia?
GW – Tudo começou com um encontro entre ele e o Flávio, que sugeriu pra nós, que topamos na hora. As letras do Tião Carreiro, a história, são parecidas com a dos blueseiros. Trabalhamos nos arranjos e o show está aí.
EM – Surgiu a ideia fazer a versão de Menino da Porteira? Vocês transformaram numa música country americana.
GW – O Noel sugeriu fazer essa parte em inglês. Começou a ficar interessante e a gente mandou ver.
EM – Voltando ao teu CD, vi uma grande influência do Allman Brothers ali. Tem inclusive músicas deles. Fale mais um pouco sobre esse trabalho.
GW – Estava tocando em um bar no Rio com essa banda me acompanhando há uns três anos todas as segundas. Resolvemos fazer o disco e eu juntei o repertório, fui puxando coisas que gostava e o Allman Brothers escutava desde a adolescência. As músicas do Allman Brothers na verdade é do Elmore James. Entramos no estúdio de manhã e terminamos no mesmo dia. Foi uma loucura. Depois acertamos algumas coisas no som.
EM – Vocês foram os fundadores do blues no Brasil. Como vê a cena blueseira após trinta anos?
GW – A coisa alastrou. A gente fez uma história. Naquela época não tinha banda de blues. A gente começou a viajar o país inteiro e começou surgir banda aqui, banda ali. Hoje em dia, nossa senhora! Exitem instrumentistas maravilhosos, guitarristas, gaitistas. O Flávio criou uma legião de gaitistas. É legal de ver. Claro que tem pessoas que se aproveitam um pouco do cenário e não sabe nem quem é Muddy Waters. Mas isso tem em qualquer lugar. Às vezes atrapalha um pouquinho o trabalho da gente. Mas o nível está altíssimo.
EM – O que falta fazer com o Blues Etílicos após trinta anos?
GW – Voltando aquela história, gostaria de fazer uma turnê pelos Estados Unidos agora, depois de tantos anos juntos. Não só tocando o tradicional, mas o nosso repertório, pra ver a reação deles. Isso é uma pulga atrás da orelha.
Entrevista com Cláudio Bedran
EM - Naquela efervescência do rock carioca dos anos 80, como tiveram a ideia de fundar uma banda de blues?
Cláudio Bedran - Eu e Flávio éramos amigos e eu já tocava baixo quando ele começou na gaita e foi se apaixonando por blues. O rock clássico que eu gostava estava em crise, era tempo de new wave e punk, que só curti bem mais tarde. Tocava mais jazz/rock e música instrumental BR em pequenos festivais e bares. O mais relevante que fiz até fundarmos o Blues Etílicos foi tocar numa orquestra de gafieira e num musical infantil (!!!) de relativo sucesso. O Flávio começou a me aplicar uns LPs de blues e eu gostei. Percebi que o som que mais gostava, Deep Purple, Led Zeppelin, Humble Pie, Jeff Beck, Johnny e Edgar Winter, AC/DC era fruto direto do blues. Um belo dia, à noite, num bar, ele sugeriu montarmos uma banda de blues, coisa que não existia no Brasil, pra tocar em boteco, sem maiores pretensões. Achei ótima ideia e fomos em frente.
EM - O Blues Etílicos começou como um trio?
CB - Não. Flávio e eu conhecíamos o Otavio, que tinha um sebo de discos bacana no Flamengo (bairro do Rio). Ele gostava de blues e de tocar slide, daí o convidamos. Fechamos a nossa primeira banda de blues com o guitarrista Sérgio Bap e o Paulo Batera. Fizemos dois shows num bar dias 25 e 26 de dezembro de 85, sob o "criativo" nome de Banda Experiência. Depois Otavio foi para os Estados Unidos de bike e a gig se desfez. O Flávio como cantor e gaitista e eu continuamos na luta, já como Blues Etílicos. Éramos chapas do Rodolpho Rebuzzi, - guitarrista que depois seguiu como músico instrumental e de estúdio, que hoje faz trilhas sonoras para filmes e TV - e completamos a banda com um suíço de passagem pelo Brasil, o Bernard Christian, na bateria. A essa altura nosso repertório já incluía composições nossas. Gravamos uma demo com Safra 63, que fiz há 32 anos, mas cuja letra é assustadoramente atual. Tocou bastante na lendária rádio "Fluminense FM, A Maldita" e com isso começamos a ficar conhecidos no Rio. Eu diria que esse é nosso começo, como um quarteto esperando a volta do Otavio pra se tornar um quinteto. O ano seguinte foi decisivo para nos tornarmos o que somos hoje, com a volta do Otavio, a entrada do Greg e do Gil Eduardo, e a gravação do nosso primeiro álbum.
EM - Como chegaram ao nome?
CB - Em dezembro de 85, com duas noites já agendadas no falecido bar Viro da Ypiranga (Laranjeiras, RJ), precisávamos de um nome. Flávio e eu queríamos algo com a palavra blues, até para deixar claro o estilo que queríamos tocar. Nessa, após um ensaio na casa do Otavio, fomos pro boteco. Aí um sugeriu Blues Lisérgico, outro Blues Psicodélico. Então veio o Paulo Batera, vê a garotada toda, (tínhamos 22/23), com copo de cerveja na mão e diz: "Por que não Blues Etílicos?" Pronto, era isso. Mas o Sérgio, que não bebia e cuja namorada era a "divulgadora" da gig, queria "Banda Experiência" e foi isso que saiu no tijolinho do jornal. Nome pouco criativo, porém mega adequado à confusão sonora que fizemos naquele Natal.
EM - Qual foi o primeiro grande show e o grande momento do Blues Etílicos?
CB - O primeiro grande show foi uma abertura que fizemos pro Barão Vermelho, no Circo Voador, creio que no início de 88. Queríamos mostrar que éramos bons e, segundo quem estava lá, conseguimos. Aliás, nossa onda com o Barão é muito boa. Rola uma admiração mútua. Frejat e Guto compuseram Terceiro Whisky pra gente, Flávio já gravou com Frejat, Otavio tocou na Midnight Blues Band deles no Hollywood Rock, tenho uma gig paralela com Fernando Magalhães, outro dia compus uma música com Guto, enfim...
Tomara que o grande momento ainda esteja por vir, mas o Festival de Ribeirão foi emocionante, um curso intensivo de blues, além de nos lançar nacionalmente. Também teve uns shows memoráveis com Paulo Moura e Ed Motta, aberturas para gringos, shows com Sugar Blue e Larry McCray.
EM - Cláudio, você é o único que não tem carreira solo, gravando discos fora da banda. Por outro lado está sempre envolvido em algum projeto, Clube do Blues, Cozinha Etílica etc. Ou seja, fazendo o trabalho de pedreiro. Fale sobre isso.
CB - Na verdade tive várias gigs paralelas ao BE, mas não são blues, daí a turma blueseira não fica sabendo. Teve uma chamada Macabu, bem interessante. Foi num momento em que Flávio estava mega focado na paralela dele. Eu, Otavio, Pedro e Greg começamos então a gravar um álbum. No meio do projeto o Greg achou que o som estava muito estranho e saiu fora. Realmente tem algumas coisas bem loucas. Inclui participações do Seu Jorge em Sujeito Mané, dividindo vocais com Pedrão (https://youtu.be/tZNJ1iEAsn4) e em H2O (https://youtu.be/0t9lvIn6DSA), que depois gravamos no Puro Malte. Tem uma suíte progressiva chamada Flauaualta Bongozando Jaca que você não vai acreditar (https://youtu.be/pwn0j2EKN5M). Outra foi Krakatao, gig instrumental com Beto Werther, Otavio e Waltinho Vilaça, depois com Dillo D'Araújo no lugar do Waltinho (https://youtu.be/RW50OGNsbSc). Também participei de álbuns de alguns amigos, inclusive Mauro Santa Cecília, letrista de várias do Barão e Frejat e parceiro de algumas do BE (https://youtu.be/7dJGKxGVTwQ). De uns 10 anos pra cá, tenho promovido jams semanais no Rio. Nessa levei som com todo mundo daqui, além de muitos blueseiros do Brasil afora. Chegamos a gravar um álbum comigo e Pedrão convidando vários amigos, mas está literalmente engavetado aqui em casa. A qualidade da captação não ficou das melhores, mas quem sabe um dia sai.
Tenho uma banda paralela com Fernando Magalhães (Barão), Gil Eduardo (ex-batera do BE) e Paulo Loureiro (voz), chamada "I Love Rock and Roll". O repertório conta a história do rock, de hoje até a origem em Robert Johnson. Tem ainda uma outra, "Freak Brothers", que é mais uma reunião eventual de amigos onde compomos uns troços bem legais, com bastante suingue. Também com Gil e Paulo, mas com Rodrigo Larese e Luis Keller nas guitarras. Outro trabalho paralelo ao BE que tive por um tempo foi o de advogado. Renderia um pocket book, mas basta dizer que parei com isso há vários anos e que incluiu aventuras em Sergipe, Minas, Argentina e Itália.
EM - Puro Malte é o trabalho mais recente, uma homenagem à boa cerveja. A cerveja de vocês ainda está sendo fabricada?
CB - Na real, o mais recente é um EP (2018) que ainda não saiu, já com o Beto na batera. Inclui uma parceria do Flávio com Pedro Luís em 3.000, cuja letra é a cara da loucura nacional e intercontinental que estamos vivendo (https://youtu.be/a2ng7UqKpVA). E o Canoeiros (2017) com Noel Andrade. Tem um ao vivo de 2016 comemorando os 30 anos. Não está entre os meus preferidos, embora tenha coisas bem legais
O "Puro Malte" (2014), tem maioria de autorais inéditas, é um ótimo trabalho. Quanto à nossa cerveja, "Hell Bier", era uma Lager lupulada bem bacana, com bastante Amarillo, feita pelo Mestre Severino, da Mistura Clássica. Capitaneei esse projeto, instigado pelo amigo Giovanni Calmon, distribuidor de cerveja aqui no RJ. Fomos uma das primeiras bandas brasileiras a surfar essa onda, foi sensacional. Aprendemos muito sobre cerveja, fizemos bons amigos. Mas foi uma aventura com início, meio e fim. Como você pode dizer melhor que eu, é um trabalho que toma muito tempo e energia, chegou o momento de parar. Mas no futuro, quem sabe?
EM - Após quase trinta anos, o que falta o Blues Etílicos fazer? Esse projeto é um exemplo de que vocês ainda estão buscando abrir mais horizontes na música.
CB - A obra do Tião Carreiro, por exemplo, abriu o tampão da nossa mente. É muito gratificante descobrir a riqueza de um som de raiz, que sempre esteve aqui ao lado, mas que nós só percebemos agora. Modéstia à parte, conseguimos aí fazer uma coisa nova, bem world music. Diga-se que Menino da Porteira é uma das histórias mais blues que já toquei na vida. Eu, Otavio e Beto ficamos com nó na garganta ao fim da versão que tocamos em Santos.
EM - Vocês foram os fundadores do blues no Brasil. Como vê a cena blueseira de hoje?
CB - Acho que a cena vai bem, com muita novidade bacana. Sou fã do Laranjeletric, banda de blues carioca formada por músicos negros, coisa paradoxalmente rara no blues BR. Também do Rio tem a ótima cantora Sonja. Adoro o Fred Sunwalk, de Ribeirão. Curti muito tocar com o Bruno Marques, guitarrista mineiro de blues da melhor qualidade. O Cristiano Crochemore, gaúcho radicado no Rio, toca um blues rock de primeira. O Oly, de Porto Alegre, faz uma mistura de blues e milonga muito bacana. O Dillo D'Araújo, de Brasília, toca blues pra caramba, mas foca num trabalho fora do segmento. Tem ainda os ótimos Eric Asmar de Salvador e Artur Menezes de Fortaleza. Isso pra não falar da turma mais antiga. E com certeza estou esquecendo vários nomes recentes, é muita gente boa tocando blues.
EM – No Puro Malte tem duas músicas que me chamaram a atenção. Cotidiano 2, do Toquinho e Vinícius, que retrata um momento do Rio quando a vida era mais relax. E Na Hora de Atravessar que retrata o momento atual, quando a pessoa tem de ficar mais alerta. Gostaria que falasse sobre isso.
CB - Bem, pra começo de conversa, o "nº2" do "Cotidiano" é código para "merda". Vem daquele papo "vou ao banheiro fazer nº2". A letra trata de um tipo de vida que para muitos, inclusive os autores e eu, é insuportável. É uma "calma" muito cara. Já em "Na Hora de Atravessar", a letra fala sobre a vida insegura numa megalópole moderna, num país onde respeitar leis, inclusive as de trânsito, é coisa de otário. Hoje, a falta de atenção à educação nas quatro décadas que separam as duas musicas resultou em milhões de pessoas sem estudo ou qualificação profissional. Pra complicar, a política de guerra às drogas não funcionou, até piorou as coisas. Como droga ilegal só perde para armas e petróleo em termos de lucro, isso levou a um crescimento exponencial das quadrilhas de varejistas, das milícias, da violência urbana e da corrupção entre policiais, políticos e militares. Afinal, não se fabricam drogas, fuzis, granadas e metralhadora .50 em favelas, né? A parada tem que passar por um caminho longo até chegar lá...
Atualmente o interventor no RJ está tentando atacar uma raiz do problema, a corrupção na cúpula das polícias, o que está causando uma reação ainda mais violenta, do tipo: "olha com quem cê tá mexendo, rapá..." Em princípio sou contra intervenção, mas parece que o cara está falando sério.
Quanto à tal da vida mais relax no Rio e no BR de outrora, é discutível. É verdade que éramos "90 milhões em ação", menos da metade da população atual, e havia muito menos violência nas ruas. Só que a "vida melhor de antigamente" era boa pra quem? "Cotidiano nº 2" é de 1972. Pouco antes, minha mãe, quando casada, precisou pedir permissão por escrito a meu pai para trabalhar, era lei. Ele pulava mais cerca que cabrito maluco, mas quando minha mãe se encheu e resolveu se separar em 1970, passou a ser discriminada como "desquitada", palavra quase tão pejorativa quanto "vagabunda". Não existia divórcio! Em 74 eu estudava em colégio católico, onde pegava mal ser filho de pais separados.
Aliás, quase não havia negros nos colégios particulares tradicionais do Rio durante os 70. Sem exagero, a porcentagem era menor que 1%. E, quando iam visitar os colegas brancos, o porteiro os mandava subir pelo elevador de serviço! Em 1980, na Engenharia UFRJ, a proporção talvez chegasse a um negro para cada 30 ou 40 "brancos". Ser mulher ou negro era pedreira, mas ser gay nos anos 70 significava ser cidadão de terceira categoria. Faltava armário pra esconder a turma. Do general mais conservador aos cartunistas d'O Pasquim, todo mundo esculachava gay. Não só aqui. Na Inglaterra, URSS, EUA e Cuba também. Até o início dos 80, ser músico no Brasil equivalia a ser vagabundo, drogado e "subversivo em potencial", enfim, cidadão de segunda classe. Meu pai e minha mãe quase tiveram um troço quando larguei engenharia pra ser músico. Inclusive o leque de profissões liberais respeitáveis se resumia a engenharia, medicina e direito. Pra completar, "Cotidiano nº2" foi gravada na fase mais barra pesada do regime militar (68/74), quando expressar opiniões como essas aqui podia até dar cadeia. E ainda tinha censura, que só acabou no fim dos anos 80. Chegamos a submeter letras do Blues Etílicos à aprovação da censura! Veja só que loucura... Lembrando agora, a coisa era muito medieval. Não gostaria de voltar àquela época, prefiro me adaptar e tentar melhorar um pouco a minha.
EM – Tá certo. Qual é o próximo projeto do Blues Etílicos?
CB - Além de aperfeiçoar o Canoeiros, estamos envolvidos com o lançamento do novo EP 3.000, já com Beto Werther na bateria. Tem algo novo surgindo no horizonte, mas é melhor deixar amadurecer um pouco antes de dar como certo. Afinal, "o homem que diz vou, não vai..."
Entrevista com Otavio Rocha e Beto Werther (Blues Groovers)
EM - Como surgiu a ideia de fazer os Blues Groovers que ainda tem o Ugo Perrota?
OR – Eu, Beto e Ugo sentimos que havia espaço pra uma banda com um senso ritmo forte. A gente achava que faltava no blues uma enfase no ritmo, fica tudo muito em cima de solos, daí o nome, Blues Groovers. E a gente sempre associa a música negra com uma cozinha forte, no funk, soul, samba. E no blues não, é sempre o solista. E a ideia é oferecer aos artistas interessados uma cozinha sólida que desse uma boa base.
EM – E o pessoal do Rio já conta com vocês, nao é isso? Eu tenho várias gravações com vocês fazendo o suporte.
OR – Em 2007 o Charlie Musselwhite veio ao Brasil e o Flávio Guimarães montou uma banda para acompanhá-lo que era eu o Ugo e o André Tandeta, um super batera. A partir daí surgiu a ideia. E com a saída dele veio o Beto.
OR – Surgiu o selo Delira Música que tinha vários artistas, o disco da Rodica (Weitzman), o ao vivo do Flávio que, quando ouvimos, achamos a qualidade muito boa e lançamos.
Beto Werther – E o surgimento do Delira foi perfeito. Um trio para acompanhar artistas aqui do Brasil e de fora. Daí veio o Alamo (Leal), o Maurício (Sahady), o (Cristiano) Crochemore.
EM – E ainda está na ativa?
OR – Sim, o Ugo Perrota saiu e entrou o baixista Cesar Lago, uma amigo nosso lá do Rio, de uma banda antiga chamada Beale Street. Hoje tocamos com o Cristiano Crochemore e Alamo Leal.
EM – Voltando um pouco no tempo, gostaria que falasse sobre o Big Allanbik. Quando formaram já tinha a influência do Blues Etílicos?
BW – Com Certeza. O Big Allanbik surgiu de uma banda chamado Gato Negro lá de Niterói, que era o Ugo Perrota, o Vitor Gaspar e a Eulina. Não lembro quem era o batera. E eu e o Big Gilson tínhamos uma banda chamada Emoções Baratas. O Renato Arias, que havia sido empresário do Blues Etílicos, assistiu a um show nosso no Circo Voador e resolveu empresariar a banda. Só que ele queria uma mega banda e juntou as duas. Um ou outro acabou saindo, entrou o meu irmão no lugar da Eulina... é meio confuso, mas foi assim que surgiu o Big Allanbik. Foi tudo muito rápido, o Renato já tinha todos os contatos. Fomos fazer um show em uma casa em Santo André que não lembro mais o nome...
OR – Jazz and Blues.
BW – Isso. O cara da gravadora viu o nosso show e resolveu gravar. Na época tinha selos, rádio e lugar pra tocar. Pegamos uma época que o Blues Etílicos pegou bem mais. A gente ainda conseguiu subir aquela escada e seguir junto com eles.
EM – Como o blues apareceu na tua vida e do teu irmão, Ricardo Werther?
BW – Quando o Big Allanbik apareceu ele nem cantava. Tinha vontade. A gente chamou ele porque era mais fácil. O Ugo era contra. Eu comecei bem antes. Mas ele sempre cantava. Sempre foi afinado. Imitava o Frank Sinatra. Tinha esse dom, era meio fanfarrão, a alegria da festa. Quando viu que a gente estava montando uma banda, imagina?
EM – Depois ele gravou um disco solo excelente, o Turning Point.
BW – Isso foi bem depois, o Big Allanbik já havia acabado. Na época o Blues Groovers, o Marco Tommaso no piano e o Pedro Strasser na batera também, tinha dois bateristas. Quando o Big Allanbik acabou ele ficou afastado da música por seis anos, casou e foi para Teresópolis. Quando voltou a gente já estava com o Blues Groovers.
OR – O Ricardo tinhas as duas influências, do jazz e blues rock. Eu, o Ugo e o Beto, dávamos o chão do rock. O Pedrão, que é um baterista de jazz, e o Marco que é um pianista de jazz também. Quando juntou as duas vertentes saiu aquele disco do Ricardo. Você vê que ali tem coisas de jazz. Essa era a visão do Ricardo.
BW – Foi o trabalho de quase um ano. Lançamos o disco em 2010, fizemos alguns shows em festivais, mas aí não deu mais tempo. (Ricardo Werther morreu em 18 de fevereiro de 2013).
EM – Otávio, você é um ás da slide, que é uma técnica dos primórdios do Blues. E faz isso como poucos. Como transportou essa técnica para os anos 80 e faz até hoje. Como é o estudo por trás disso?
OR – Por uma razão estranha, pra mim sempre foi uma coisa muito natural. Desde criança ouvia o Johnny Winter e o Rory Gallagher e pensava que se conseguisse tocar aquilo seria o cara mais foda do mundo. Depois que aprendi a afinação aberta em um livro perdido em 1982 ou 1983, não existia internet, informação era coisa rara, já sai tocando. Ainda sou aquele garoto tocando igual. Claro, a gente desenvolve.
BW – O Otávio sempre teve isso de tirar o som da guitarra, do amplificador, às vezes um pedal, mas pouca coisa. Tirando o máximo do mínimo.
EM – Então continuamos em 1982. Como tiveram a ideia de montar uma banda de blues na efervescência do rock nacional?
OR – Nos juntamos pela primeira vez em 1985. Foi uma coisa de paixão mesmo. Ninguém queria tocar isso. Eu tocava no banheiro. Quando conheci o Flávio e o Bedran percebi que havia pessoas que também gostavam. E era legal me sentir um desbravador. A gente fazia shows com o André Christovam e conversava com ele sobre isso, sobre a sensação de estar chegando na cena, desbravando, uma coisa maravilhosa. De aprender fazendo.
BW – Com o Big Allanbik foi o contrário. Ele foi montado. O Emoções Baratas que tocava músicas dos Stones, autorais também, e o Vitor Gaspar, o Ugo Perrota e a Eulina eram mais do blues. Eu vim do rock, nunca tinha ouvido blues. Conheci o blues pelo contato com o Blues Etílicos, o Otávio. Ouvia muito rock inglês.
EM – O Brasileiro é diferente até nisso. No Mundo inteiro o rock nasceu do blues. Aqui o blues nasceu do rock. Todo mundo que tocava rock passou a tocar blues.
OR – O Big Allanbik era uma banda de “blues progressivo”, com super arranjos.
BW – A gente era psicopata de ensaios.
EM – E agora Beto você está tocando com os caras que eram os teus ídolos. Qual é a sensação?
BW – Foi o que falei no início, assistia esses caras quando ainda tocava de brincadeira. Tocar com eles é uma vitória pra mim. É muita coisa, não é uma banda qualquer.
EM – Uma banda que tem 30 anos passou por muitos planos econômicos e muitos percalços da música brasileira.
OR – É uma banda que tem blues no nome, no DNA, e de repente está fazendo um show desse com o Noel Andrade. A gente sempre foi muito aberto. Sempre cantamos em português, nossas composições. É difícil. As pessoas pararam de compor. Tocam sempre as mesmas músicas. Pra mim compor sempre foi fundamental nessa profissão. Desde o primeiro disco, além de músicas próprias, tem vários tipos de roupagem que você pode dar ao blues. Hoje você tem acesso a todos os originais do blues, mas ao mesmo tempo vai muito direto naquilo. E o risco de virar um cópia é enorme. O que a gente levou 20 anos pra aprender a galera aprende em seis meses hoje.
EM – É só ligar o computador.
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