quinta-feira, 3 de abril de 2014

A música de Adriano Grineberg rompe as fronteiras entre Brasil, Índia e África


Fotos: Leandro Amaral e divulgação
Texto: Eugênio Martins Júnior

Adriano Grineberg começou seu aprendizado na música erudita, mas logo a família percebeu que o garoto tinha facilidade para todo tipo de gênero musical.
O investimento deu certo, hoje Adriano é um dos pianistas mais solicitados pelos músicos de São Paulo. Além de ter tocado em muitos discos de blueseiros brasileiros e acompanhado no palco outros tantos estrangeiros, entre eles, Magic Slim, Corey Harris, Big Time Sarah e Shirley King (essa última na minha conta), o músico paulistano tocou também com o Ira, Graça Cunha, Wanderléia, Ana Cañas e atualmente acompanha a revelação da MPB Filipe Catto.  
Na verdade, Adriano é um artista de mil faces. Um dos maiores especialistas no órgão Hammond B3 no Brasil, desenvolve uma incansável pesquisa de ritmos que não se limita às fronteiras nacionais. Ele e o guitarrista Edu Gomes, que por sua vez integra a Irmandade do Blues, viajam à Índia regularmente e são responsáveis por diversos discos de world music, new age e blues lançados no Brasil nos últimos 15 anos.
Em uma época em que meia dúzia de lunáticos reivindica a hegemonia do blues no Brasil, o conceito de seu mais recente trabalho, o CD Blues For Africa, faz uma viagem ao mundo da música negra e mostra que tudo está mais misturado do que, às vezes, podemos perceber. Essa caminhada começa em Key Blues, disco de clássicos norte-americano, e termina nos quatorze temas de Blues for Africa.



Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical e quando começou a tocar piano?
Adriano Grineberg –
Comecei a tocar aos cinco anos. O piano surgiu na minha vida pela dificuldade nos esportes. Minha mãe tocava em um piano que ficava na marcenaria do meu pai. Comecei a fazer aulas e aquilo realmente passou a fazer parte da minha vida. Tinha muita facilidade em tirar música de ouvido. E ter estudado música clássica foi uma coisa muito importante para adquirir técnica, até para poder fazer outras coisas. Aos doze anos comecei aprender contrabaixo. Por sorte o meu professor era músico de orquestra, foi a pessoa que incentivou a ser músico, a estudar. Fiz meu pai gastar as economias dele e comprar um contrabaixo acústico e dediquei toda a minha adolescência a fazer testes para orquestra. Era aquele esquema, estudar oito horas por dia sem parar. Entrei na Orquestra Sinfônica Jovem do Estado como contrabaixista, mas não deixei de estudar piano. Formei-me em música na Escola Municipal de São Paulo, onde você tinha de tocar piano e um instrumento adicional. Até os 18 anos vivi na música clássica, mas sempre toquei outras coisas. O blues já havia surgido na minha vida.

EM – Quanto tempo você ficou na orquestra?
AG –
Fiquei três anos. Quando ia passar para a Orquestra profissional tive de fazer uma escolha de caminho. Na época as orquestras não pagavam bem os músicos, foi uma escolha definitiva na minha vida. Havia começado a tocar com o JJ Jackson em shows pelo Brasil e depois gravaria seu CD pela Eldorado, foi o primeiro disco que gravei. A questão financeira foi o fiel da balança.       

EM – E o blues, como entrou na sua vida definitivamente?
AG –
Como todos os brancos na América do Sul, pelo rock. Meu irmão era metaleiro e eu já convivia com Iron Maiden, AC/DC, Motorhead e sempre gostei. Havia um programa na TV Cultura chamado Som Pop e outro em outra emissora chamado Realce Baby. Às vezes o Som Pop fazia uns especiais com blues onde vi o B.B. King pela primeira vez, acho que em 1985. E ele balançava a cabeça e eu achava que ele imitava o Angus Young (risos).
Também virei ouvinte do programa do Jô Soares na Rádio Eldorado, mas pra valer foi em 1990. Meu irmão Sandro, que hoje é baterista da minha banda, ganhou uns convites para assistir o Blues Festival no Ginásio do Ibirapuera. Foi na última noite do festival, uma noite antológica com a Brazilian Blues All Stars, banda formada pelo André Christovam, Frejat, Flávio Guimarães, Greg Wilson, Paulo Zinner, Nelson Brito, uma jam session que terminou com o Ed Motta cantando Rock Me Baby. Na sequência foi a Koko Taylor. O engraçado é que naquela noite eu não entendo o show, achei muito parado, minha referência era mais roqueira. É claro que depois de anos reconheci o valor, era um tremendo show de Chicago blues. Gostaria de ter assistido esse show uns 15 anos depois. O grande momento da noite foi o Magic Slim que fez o mesmo Chicago blues. Mas aquele músico tem uma atmosfera, uma aura diferente. Ele fez um solo de uma nota só e quando acenderam as luzes do ginásio as pessoas ovacionavam como se ele tivesse acabado de fazer um gol. Depois daquilo eu pensei: “Humm, acho que vou tocar blues”.
No show do Magic Slim que você produziu em 2007 e que eu toquei, contei essa história pra ele que realmente se emocionou. Fazer esse show com ele foi uma realização e gravar o DVD depois também. Ele é um cara muito humilde, família, chega no horário. Um cara que ensina muito mais do que música às pessoas. E depois fui tocar na banda do JJ Jackson que é meu amigo até hoje. Foi o trabalho que me fez entrar definitivamente na música.


EM – Quanto tempo você esteve na banda de Jackson?
AG –
Entre 92 e 95. Depois ele deu um tempo na carreira, mas eu já conhecia a galera do blues. Fiquei amigo dos caras da Irmandade do Blues, o Vasco Faé, o Edu Gomes. Num desses encontros conheci o Lancaster e fiquei três anos em sua banda, gravando dois discos. O Lancatster revolucionou a forma de fazer blues. Ele tinha uma preocupação com a roupa, a estética. Ele foi muito feliz em seu primeiro disco, tem arranjos do Proveta. Antes de entrar no Chicago blues ele abordava vários estilos. Seu baterista era o Tuto Ferraz, um monstro no instrumento. Quando conheci o Lancaster, comecei a perceber como um músico deve gerenciar sua carreira.

EM – Você é um dos raros músicos que se dedica ao órgão Hammond B3 no Brasil, como se interessou pelo instrumento?
AG –
Toco os dois, Hammond e piano. Engraçado que quando toco Hammond em meu trabalho solo não consigo cantar. O Hammond faz uma função parecida com os metais, então eu preciso de um instrumento mais percussivo, onde fico batucando pra me acompanhar (risos). No começo nem sabia que o Hammond tinha aquele sistema de chaves, ouvia e ficava pensando, como o cara consegue “molhar” o timbre dessa forma? Mudar o som no meio da música? O Hammond entra justamente em uma das turnês do Lancaster. Uma das primeiras experiências de trazer um americano pra tocar aqui, o Deacon Jones. Fizemos cinco shows em 1995 e pude ver como ele trabalhava. Vi como ele manipulava o sistema de drawbars, usando uma caixa Leslie que pode ficar estática ou em movimento. O legal é que eu tocava junto com ele, não precisava descer do palco. Fazíamos como as bandas americanas fazem com piano e Hammond juntos. Atualmente os discos do Adriano Quarteto que gravo em estúdio são com os dois instrumentos, claro, faço um overdub aqui e ali. E o Deacon tem a experiência de ter trocado com o Freddie King, John Lee Hooker, além de ser uma grande pessoa.       

EM – Vejo que você grava e toca bastante com músicos de diferentes estilos, gostaria que falasse sobre essa vida de sideman.
AG –
É uma coisa que acostumei fazer e não consigo me imaginar não sendo sideman. É uma coisa que me faz bem. Acho que os trabalhos se completam. A Wanderléia está fazendo um show comemorando cinqüenta anos de carreira e vai regravar o lado B da Jovem Guarda. É um repertório riquíssimo e que não fez sucesso. Ela curte justamente essa pegada blueseira do Hammond. Estamos fazendo uma releitura dessa forma mais estilizada. Ela está realizando o que realmente sempre quis fazer. E vê-la subir ao palco com aquela vontade me faz pensar que para ser músico você não tem de só tocar bem seu instrumento, você tem de passar uma mensagem para as pessoas e é o que ela faz.



EM – E com relação ao Filipe Catto é o inverso. Ele está chegando agora.
AG –
Exatamente. Quando parei de tocar com a Ana Cañas achava que seria a última artista nova que ia acompanhar. O Filipe foi uma surpresa, ele é a nova MPB, mais até do que a Ana Cañas. Então o Filipe Catto é um desafio, você tem de estar sempre renovando na linguagem, timbres, é um trabalho que não tem limites. Sou também sua segunda voz, todas as coisas que eu pesquiso acabo utilizando lá. Ele tem só vinte e cinco anos. É um artista muito novo pra colher o que está colhendo. Me faz bem, chego renovado para fazer o meu trabalho. Quando você toca com um artista não se preocupa com produção, é outra viagem.

EM – Dá muito trabalho gerenciar a própria carreira?
AG –
Muito trabalho. Muito mais do que tocar. Vender show é fácil, o problema é fazer a pré-produção. A parte burocrática, divulgação, passar as informações para a sua equipe.

EM - Você já viajou várias vezes à Índia e África, isso hoje faz parte da tua música. Fale um pouco sobre isso.
AG –
Acabam sendo a mesma experiência. Todas as vezes que fui à Índia, fiquei sempre uma semana de passagem na África, Angola e África do Sul. Sempre fiz um trabalho de pesquisa de músicas étnicas do mundo inteiro. Sempre fui muito ligado à filosofia e existe uma proximidade entre as duas culturas. Por exemplo, o vodu que foi desenvolvido na África e foi para a América Central nasceu na Índia. Em um estado chamado Gujarat. Tornei-me cantor entoando mantras na ioga tardiamente, aos 25 anos. Existe uma forma de cantar e a partir disso descobri a minha voz.
Eu, o Edu Gomes, o Edson Aquino e o percussionista Renato Martins, que hoje mora na Bélgica, nos juntamos para fazer um disco de músicas indianas, mas com características brasileiras. Em vez de tabla, usávamos moringa; eu fiquei responsável pela harmonização, dos arranjos; o Edu substituiu a cítara pela slide. Recriamos essas histórias. Existem músicas nesse CD que são devocionais, para Ganesha, Shiva, Krishna e outras divindades hindus e músicas profanas também. Fizemos um retrato da Índia. Esse disco foi lançado lá em 2004, antes de ser lançado no Brasil, em 2007.  



EM – E como foi a receptividade?
AG –
Foi boa. O indiano tem a sensibilidade muito grande e eles não se sentem donos daquela cultura. Existe um pensamento milenar que aquilo que foi feito e concluído na Índia são fragmentos de coisas universais. Eles enxergam a cultura deles na prática de outras culturas. Em questão de latitude, a distância da Índia para o Equador é a mesma que o Nordeste brasileiro, às vezes você está lá e pensa que está em Maceió, é cheio de coqueiros, o clima é muito parecido, o tempero, a pimenta, o uso do coco na culinária. Por isso eles não se surpreenderam com o CD.

EM – Você chegou a apresentar o trabalho lá?
AG –
Apresentei algumas vezes, tocamos no aniversário do guru Sai Baba. Mandamos o CD e ele nos convidou pra fazer o lançamento com tudo pago por sua organização. Deixamos lá alguns CDs que seriam vendidos em trabalhos filantrópicos. Mas foi uma festa, na Índia não existe tanta violência, o povo é um pouco mais tranqüilo. Acho que eles já passaram por mais coisas, existe uma unidade entre o mais rico e o mais pobre.

EM – Não estou querendo te contrariar, mas as notícias que a gente tem da Índia é de um país beligerante, o país tem bombas nucleares e os homens praticam estupro coletivo e outras coisas.
AG –
Você está certíssimo. A Índia não se preparou ao longo das décadas para essa abertura que o mundo está vivendo. A primeira vez que estive na Índia foi em 95 e era um país super rígido. Esse lance de um cara conhecer uma menina é muito diferente do que aqui. Em todos os lugares há separação de homens e mulheres. Ao mesmo tempo é um povo muito sensual, inclusive na música. Outra coisa que atrapalha muito a Índia é o sistema de castas, uma coisa colocada pelos ingleses. Antes do domínio inglês o sistema de castas era por funções, casta dos músicos, economistas, soldados. Para exercer seu domínio em um país tão grande, a coroa britânica separou em quatro castas e isso causou um atraso social muito grande. A terceira vez que voltei pra lá, em 2004, para o lançamento do Vera Mantra, liguei na MTV e tinha uma banda parecida com o É o Tcham, com uma menina rebolando e tal, parecia até que tava dançando na boquinha da garrafa. Então, não sei como vai ser esse povo lidando com isso. A questão dos estupros coletivos não me surpreende e acho que pode se tornar pior.



EM – Vamos para a África. Como nasceu o Blues For Africa?
AG –
O meu primeiro contato foi através daqueles corais de música gospel da África do Sul, que é o país africano que eu conheço melhor. O que me chama a atenção é a questão filosófica. Os artistas africanos tentam passar o lado positivo de uma coisa que aparentemente não tem lado positivo. Falar sobre a África é falar sobre sofrimento, guerras, mas que por trás disso existe um povo que é alegre. Isso é do blues, rir da sua própria desgraça. A coisa mais africana que existe no blues é isso. Você não está bem, mas tudo bem. O brasileiro também é assim, herdamos isso dos africanos. Musicalmente falando, há a minha experiência com os artistas. A primeira foi o Corey Harris, que acompanhei em 2003 e tenho o sonho de acompanhar de novo. A maneira como ele tratava as combinações, incluindo o reggae, os ritmos da América Central, foi uma influência direta. A outra foi o Marku Ribas, com quem tive a chance de fazer alguns shows antes de ele falecer ano passado. Pra quem não sabe, o Marku Ribas é um compositor ator, participou do Macunaíma, autor da música Zamba Bem, um cara revolucionário em seu tempo, anos 70. Ele tinha flerte direto com a música africana. Quando falei que tinha um trabalho de blues e que tinha admiração por ele, ele me disse com aquele jeitão dele de ator: “Porque você não faz um trabalho com o blues africano, é tudo a mesma coisa”. O CD abre com Iko Iko, do Mardi Gras de New Orleans, que tem uma ligação direta com a cultura creole, a porta da África. Pesquisei a música sul-africana, com a qual tive contato maior pela língua zulu dos corais. Conforme ouvia a melodia, a versão já ia ficando pronta. Não foi um trabalho fácil, mas foi feito com muita naturalidade.

EM – Entre o período de pesquisa, desenvolvimento e gravação, quanto tempo levou para esse trabalho ficar pronto?
AG –
Uns dez anos. Ia acrescentando músicas. Após o Key Blues, queria fazer um disco mais world music, mas só com três músicas africanas. Mas aí o Edu Gomes, que é meu parceiro e produz, achou que eu tinha de fazer um disco inteiro já que tinha dezenove músicas. O disco começou a tomar forma. Das dezenove, ficaram quatorze. Onze versões e três compostas por mim em dialetos africanos, além do Zulu, o Bembe em uma música tradicional da Zâmbia, uma espécie de hino do país. Para muitas dessas músicas não existem traduções. Você fala uma palavra e representa uma frase, é muito complexo. Por exemplo, Jingoloba, do Santana em Iorubá, da Nigéria, significa remelexo. Tem outra em Ioruba que é minha, Olodumare, uma referência aos orixás, tem berimbau, trazendo a coisa aqui para o Brasil. Tenho uma composição em Ibó, que é outra tribo da Nigéria e com a participação do Rex Thomas que é nigeriano. Ele nem é músico profissional, mas compõe músicas, é educador, mora em Alto Paraíso. A gente compôs Ekenemu Uwa que é uma mensagem de felicidade, de coisa boa para as outras pessoas. Tuareg Blues também é minha, em homenagem ao povo tuaregue que não tem fronteiras. Eu canto em inglês e o Edu Gomes faz um violão puxando para o árabe. Tem muita mistura nesse disco.

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