quarta-feira, 26 de maio de 2021

Marcelo Naves, o tigrão da gaita - Vale do Paraíba parte 3

 

Marcelo Naves em ação

Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: acervo Marcelo Naves

Vale do Paraíba – parte 3

O gaitista Aki Kumar ia se apresentar no festival e também estava por ali de graça quando ofereci um livro com a entrevista que havia feito com ele um ano antes em outro festival. Ele pirou quando viu o seu nome no livro e ficou meu melhor amigo desde criancinha¹. Um ano depois, em São Paulo, o Phil Wiggins teve reação parecida quando mostrei a entrevista dele feita há alguns anos antes. Por coincidência (ou não) o Phil também apareceu no Brasil pelas mãos dos irmão Simi.  
Minha admiração pela banda Blues Etílicos sempre foi grande. Trata-se de uma das bandas mais importantes do Brasil de todos os tempos. Os caras que profissionalizaram o blues no país. A primeira banda a ter um gaitista na linha de frente, a investir em letras bem elaboradas em inglês e português e miscigenar o blues com o samba e a música caipira. É um verdadeiro privilégio conhecer músicos com essa visão. 
Nesse festival o Flávio Guimarães e o Cláudio Bedran me convidaram para fazer a cerveja da banda, o que topei na hora. Fiquei um pouco bolado, talvez, naquele momento ali no camarim, o álcool estivesse falando mais alto. Mas a parada não saiu da cabeça.
Para quem não sabe, além da produção cultural, faço cerveja no formato cigano, levando as minhas receitas pra fazer na fábrica dos outros. Achei que fazer cultura era pouca confusão na vida, então decidi também fazer cerveja profissionalmente e fundei a Cais – Cerveja Artesanal. Caso de internação mesmo.
Alguns meses depois desse encontro, a Blues Etílicos veio a São Paulo para um show no Sesc Bom Retiro, dia 01 de maio de 2019. Eu havia feito um contato com o pessoal perguntando se a ideia da breja ainda estava de pé e, para minha felicidade, eles disseram que sim. Depois desse show saímos para celebrar o acordo em um boteco no centro de sampa com o líquido sagrado. Em agosto de 2019 nasceu a Session IPA Blues Etílicos. 
O lançamento no Rio de Janeiro foi no Beer Joe, antigo bar do guitarrista Big Joe Manfra, com as participações do Flávio Guimarães e do Kleber Dias. 
Aqui em Santos, fiz uma série de lançamentos nos bares da cidade com muito blues, entre os artistas, Pedro Bara, Fábio Brum e Baby Labarba, Filippe Dias, Giba Byblos Trio e a Carla Mariani, cantora aqui de Santos. 
Em sampa tentei fazer em um bar lá chamado Blues and Beer, mas os caras nem deram bola. Ae troca o nome dessa porra de bar, mermãao. 
Fugi um pouco do assunto só pra dizer que a cerveja Blues Etílicos nasceu no festival de Jacareí em 2018. Portanto, Marcelo Naves que me convidou para participar desse evento é o padrinho da criança. 
Minhas passagens com o Flávio Naves² são várias, a mais legal foi a mini-turnê com Larry McCray (guitarra), Stephen McCray (bateria) e Bruno Falcão (baixista), em três cidades, São Paulo, Ilhabela e Brasília, Bourbon Street, Ilhabela Folk e Blues Festival e Festival BB Seguridade, respectivamente.


Eugênio Martins Júnior – Você o Fávio Naves e o Lancaster são primos, três blueseiros na mesma família. Como foi a tua infância musical?
Marcelo Naves – Meu pai foi responsável pelo meu primeiro contato com o blues. Ele ouvia na sala de casa, Oscar Peterson, Louis Armstrong, Muddy Waters, John Lee Hooker, BB King, tudo em vinil. Ele adorava dançar, lembro dele colocando a versão do Oscar Peterson de Take Five e dançando com a minha mãe. Na adolescência tive uma banda com os meus primos, o Flavio Naves, que na verdade se chama José Flávio Silva de Carvalho (risos). Na família a mãe dele foi a única que não colocou o nome Naves. Mas ele é da família Naves. O nome da banda era Estação Blues, com Gustavo Carvalho no contrabaixo, Alexandre Carvalho na bateria, Frederico Lucascheck na guitarra e o irmão do Lancaster, o Marcos Lancaster cantando e eu na gaita. Na verdade os Lancaster eram primos dos meus primos. Somos primos por consideração. Nunca fiz nenhum trabalho com o Lancaster, fiz canjas, mas ele me apresentou pra muita gente. Sou muito grato, me apresentou para o Flávio Guimarães, fui gaitista do Nuno Mindelis, com quem fui pra África. Ele ainda me diz que a banda dele é de guitarra, mas que eu ainda sou o gaitista dele (risos). Também foi o Lancaster que me deu o primeiro amplificador valvulado, um Gianini Reverb.   

EM – E quando a harmônica entrou na tua vida?
MN – Aos 15 anos comecei a me interessar muito pelo blues. Comecei a tocar guitarra, mas encontrei uma harmônica na gaveta do meu pai e comecei a curtir demais o instrumento. Os mesmos músicos da Estação Blues tinham uma banda que tocava rock nacional e algum blues. Tocamos alguns anos assim. Um tempo depois o Flávio foi para os Estados Unidos e voltou com um órgão Hammond. No começo ele arranhava e passou a tocar com a gente e com o tempo foi ter aulas e a banda acabou gravando um disco. Então comecei a estudar e levar a harmônica a sério. Abandonei a escola e mudei pra São Paulo pra estudar gaita. Estudava seis horas por dia. Só queria saber isso da vida.   

EM – Vejo uma cena blues crescendo no Vale do Paraíba. Penso que vocês três têm boa participação nessa história. Gostaria que falasse sobre isso.
MN – Modéstia à parte tenho a maior participação nessa história. O Flávio Naves tem bem pouco. O Lancaster foi quem começou a tocar blues aqui no Vale. Ele fazia shows no Revolution Café, fez uma coisa ou outra no Sesc. Mas ele sempre foi muito instável na carreira. Montou a Serial Funkers e saiu. Montou a Blues Beatles e saiu. Então ele não continuou aquele trabalho de blues firme dele. Anos depois retomou e agora está trabalhando firme nisso. Mas eu e o Flávio tentamos trabalhar juntos, toquei na Blues Beatles com ele e tive uma banda chamada The Real Deal. Mas a produção e o crescimento da cena do blues aqui no Vale do Paraíbe é 99% trabalho meu e do Danilo Simi, que é meu sócio desde quando começamos um projeto chamado Clube do Blues. A gente tocava muito fora, mas não tocávamos na nossa cidade. Família e amigos nunca viam a gente tocar. E na época a internet não era como hoje. Então montamos esse trabalho com a prefeitura chamado Clube do Blues. Oficialmente há oito anos. Começou como Blues na Praça, depois Sexta Blues. Fomos para o Museu de Antropologia de Jacareí e o projeto ganhou o nome de Clube do Blues. Esse projeto está vivo até hoje, inclusive na pandemia estamos fazendo online. Com o sucesso a prefeitura nos procurou para ampliarmos o projeto. Levamos a proposta do festival de Blues de Jacareí e estamos há seis anos com o evento. Há cinco anos as apresentações do Clube do Blues reúnem pelo menos 600 pessoas por noite. Com exceção daquela semana da greve dos caminhoneiros. Mesmo sem carro e sem aplicativo de transporte por causa da falta de combustível as pessoas foram de bicicleta, mais de 60 amarradas na porta do teatro. Registramos 340 pessoas. Vendo esse sucesso, as prefeituras de São José dos Campos, São Francisco Xavier, Monteiro Lobato, Guararema, nos procurou para fazer uma reprodução do evento nessas cidades. Então fizemos o Blues no Municipal, que já acontece há quatro anos em São José; um projeto chamado Música na Praça, em São Francisco Xavier; e outros que estão em negociação.  A pandemia paralisou algumas coisas, mas esperamos retomar. Fizemos também um projeto chamado Gasoline Brothers Blues Sessions, em parceria com o bar homônimo, com minha banda, a Tigerman, todos com atrações internacionais. Durou dois anos. Então, todo esse emprenho para realizar os eventos partiram de mim e do Danilo Simi. Há muitos anos o Lancaster realizou o Clube do Blues em um bar lá em São José dos Campos, nome que me inspirou a fazer o nosso evento. 

Marcelo Naves e Michael Dotson

EM – E como você vê a cena nacional? Quer dizer, tem blues em vários lugares, mas não há uma unidade. 
MN – É normal. Nos Estados Unidos também não é assim. O que falta é a presença do poder público. Às vezes dá uma força pra um em detrimento de outro. Às vezes o cara nem toca blues direito, é meio rock, nem é da cena, e tem um puta espaço. Mas também sou contra esse lance do músico frustrado, que vice dizendo que ninguém o apoia. Sempre corri atrás do meu sucesso. Não tinha cena? Estamos gerando uma cena aqui no Vale do Paraíba. Tirando essa época de pandemia, eu já começava o mês com uma série de shows gerados por mim. Eu crio meus eventos, onde toco com meus amigos, com os gringos. Mas acho que tem um espaço legal na cena nacional. No Brasil eu já tenho algum espaço, algum respeito, alguma consideração. Da mídia, dos conhecedores de blues, dos fãs e acho isso importante. Eu descrevo a cena de blues ok, mas com espaço para crescimento. Falta uma série de coisas, ainda vejo no blues brasileiro uma galera que não toca blues de verdade. Tocam rock com blues, mas blues mesmo, tradicional, ou de Chicago, ou da Califórnia, o west coast blues, respeitando o estilo? Poucas bandas.

EM – Sei que você gosta de uns equipamentos diferentes e tem um super amplificador de gaita. Gostaria que falasse sobre isso e qual é o teu set de gaita hoje?
MN – Gosto de equipamento porque o gaitista de blues é um estudante. Ele pesquisa quem são os caras, o estilo musical e suas vertentes. Paralelamente também estuda o instrumento, as técnicas, como fazer o tongue blocking, o tongue flutter, tongue switching, tudo o que os grandes mestres como Little Walter, Slim Harpo, Big Walter Horton faziam. E tem um terceiro estudo que um gaitista de blues faz que é o dos equipamentos. Se você for comparar com a gaita chorinho, hoje a gente tem um grande mestre Vitor Lopes, ele estuda as técnicas do choro e a gaita dentro dele. No blues a mesma coisa, mas também os amplificadores, os equipamentos. Que microfone o Little Walter usava? Que amplificador o Big Walter usava? Como eles tiram aquele som? E qual amplificador posso usar hoje em dia pra chegar nesse som maravilhoso ou o mais próximo possível? Essa pesquisa me fez gostar cada vez mais buscar o equipamento perfeito. Dentro disso temos duas linhas. O equipamento que vai dar o timbre mais perfeito possível. E tem o necessário que você precisa pra poder subir num palco. Se vai tocar em um festival que tem 15 mil pessoas na plateia não pode levar um amplificador de 7 watts. Precisa levar um ampli grande, que te sustente, que “empurre” aquele som. Trabalho com dois tipos de equipamento. Um vintage, que trás aquele timbre especial, pra eu fazer gravação. E um ampli grande que me dá a potência necessária pra shows grandes. Utilizo um Premier Model 50, de 1947, original. Além de microfones de 1940/50 pra tirar um timbre mais sujo. E tenho um grande amplificador que é um Harp King, um dos únicos amplificadores feito pra gaita. Ele tem um sistema de anti-feedback, que é um dos grandes problemas dos gaitistas. Se você liga a gaita em uma ampli de guitarra dá microfonia, dá barulho. Ele tem 109 watts de potência com seis falantes de 10’. É o único Harp King da América Latina. É um ampli feito por um cara chamado John Kinder, da Kinder Instruments. Um amplificador incrível. 

EM - Você está com uma banda chamada Tigermen. Fale-me sobre ela e sobre esse nome. 
MN – Essa banda é composta por Leo Duarte (guitarra e filho do gaitista Sérgio Duarte), Jaderson Cardoso (bateria), Raoni Brascher (baixo) e Tiago Guy (guitarra) e eu na gaita e voz. Sendo que os dois guitarristas e o baixista fazem backing vocals. O nome veio do filme chamado The Lady’s Men (O Tigrão), mas como buscamos o mercado internacional ficou The Tigermen. 

EM – Aproveitando essa parada nos palcos, estão trabalhando em algum projeto novo?
MN - Estamos gravando o próximo disco, o Fourty Cups of Coffe, tudo a ver com a minha realidade, pois tomo café o dia inteiro. Eu moo meu próprio grão, crio abelhas jataí no apartamento, tenho mais de três mil abelhas em duas caixas. Tiro meu próprio mel para adoçar café. Faço blend com os grãos fortes, com os mais ácidos, com os mais suaves. Sou amante do café.


EM – E já aproveitando a questão anterior, gostaria que você falasse como está tocando a tua atividade de músico e também a de produtor em tempos de pandemia, já que os festivais estão parados. 
MN – Não gosto desse negócio que o músico tem de se reinventar. Tem de se reinventar porra nenhuma. Tem é que fazer o seu trabalho. Antes tinha show no palco e agora é só online? Então vamos fazer online. Não estou reinventando nada. Como estou fazendo? Lutando pra manter o máximo de shows de forma online. O festival de blues de Jacareí aconteceu assim. O Clube do Blues e o Blues no Municipal também. Sou contra fazer o show e fazer vaquinha. Quando você atinge mais de seis mil inscritos em seu canal no Youtube ganha a possibilidade de fazer o Super Chat, onde as pessoas podem doar dinheiro. O cara faz se ele quiser. Olha só, sem desrespeitar alguém que está usando desse recurso pra sobreviver. Pra mim soa mal. Assim como tocar na rua com o chapéu no chão. Isso é super legal em alguns locais do mundo. Mas aqui no Brasil não é. Então estou correndo atrás dos projetos. Desenvolvi um curso de gaita online, no qual entrego muito conteúdo. Fiz um curso só que tem tudo, se chama Uma Gaita Blues com Marcelo Naves. E foi um sucesso, em uma semana vendi super bem. E estou fazendo lives pagas, com contratante. Comecei a fazer uma coisa que nunca achei que ia conseguir na minha vida, acordar às seis da manhã para trabalhar. É melhor do que ficar chorando.     

EM – Cara vou cutucar uma ferida. Alguns artistas de blues nacional reclamam que os músicos que acumulam a função de produtor preferem trazer nomes obscuros do blues dos Estados Unidos do que dar moral para os artistas daqui. O que tem a dizer sobre isso?
MN – Acho isso ridículo. Pra mim é papo de perdedor. O cara não consegue levantar a carreira a ponto de ser relevante ou fazer um festival sozinho e fica reclamando dos outros. Você conheceu o Aki Kumar, um artista fenomenal. Fiquei sabendo de várias declamações de músicos brasileiros. Dizendo que eu havia trazido um indiano que toca blues, mas ninguém conhece. Que gaitista do Brasil você conhece que toca melhor do que o Aki Kumar? Que tem mais relevância? Eu não conheço. Com todo respeito. O Aki Kumar é respitadíssimo na Califórnia, está em festivais junto com Kim Wilson, Rod Piazza, é o único gaitista do mundo a assinar com a Sony Music, faz um trabalho autoral incrível. Também reclamaram do Alabama Mike, dizendo que ninguém conhecia. Ele também está em grandes festivais, na Califórnia, Texas, Louisiana. O próprio Kim Wilson gravou no último disco do Alabama. Será que ele tem tão pouca relevância assim? Ou será que os artistas brasileiros não conhecem e ficam enciumados? Ou porque estão fechados na própria bollha? A maioria dos gaitistas do Brasil mal sabem tocar tongue blocking. Mal estudam e pesquisam o blues tradicional. É incrível trazer os caras de lá, eu aprendo muito com eles. Taryn Donath, uma pianista que ninguém conhece, nunca vi um pianista tocar melhor que ela. Também com todo o respeito aos nosso pianistas aqui do Brasil. Mas ela é um fenômeno, você a vê tocando boogie woogie e não acredita. E não trago só porque é conhecido, trago porque é bom. Trouxe a Dawn Tyler Watson e também recebi a mesma crítica: “Ah Nunca ouvi falar!”. Só em 2018 ela ganhou três prêmios Blues Music Award, melhor disco, melhor cantora e melhor artista revelação. Então, isso é fala de brasileiro perdedor. Acho que o cara não faz a carreira dele ter relevância e transfere a culpa para o outro.

Marcelo Naves e Tigermen

EM – Como é estar do outro lado do balcão? Quer dizer, produzir um festival, lidando com poder público, negociando com fornecedores e até com músicos. Não rola um desgaste?
MN – Rola muito desgaste. Tem de aprender a falar com o poder público. Aprender a lidar com gente tentando puxar seu tapete. Já tive gente da minha família tentando puxar o meu tapete. De perto, próximo. Mas a gente tem de fazer. Tem de trabalhar. Não ligo de vivenciar isso. Eu e o Danilo aprimoramos muito as nossas técnicas. Fizemos de tudo para fazer nosso festival, montamos até uma empresa para poder entregar as coisas que o poder público exije. Então, nesse outro lado do balcão eu faço acontecer. 
 
EM – Você tem acompanhado muitos artistas e já tem um longo trecho percorrido no blues. Poderia citar dois momentos importantes da tua trajetória?
MN – É difícil citar dois. Acho que a Diunna Greenleaf, um grande nome do blues, cantora da velha guarda do Texas. Ela é realmente incrível, fiz duas turnês no Brasil. E o Aki Kumar. Um grande amigo e parceiro. Estamos conversando pra eu ir fazer alguns shows na Califórnia. Ele realiza esse mesmo trabalho que eu faço aqui, produzindo shows e eventos. 

Nota 1: A amizade acabou no mesmo dia, após o Aki ter pego uma carona comigo na volta pro hotel.   

Nota 2: Nunca convidem Flávio Naves e Bruno Falcão para uma churrascaria se for você que for pagar.

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