sábado, 11 de outubro de 2014

André Christovam, fundador do blues no Brasil, fala sobre Mandinga e dos 25 anos que se passaram após seu lançamento


Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: Cezar Fernandes

Vinte e cinco anos se passaram desde o lançamento de Mandinga, disco seminal do blues feito na terra do samba.
Nesse período, André Christovam se consolidou como o maior artista de blues brasileiro, gravando outros discos importantes: A Touch of Glass, seu segundo trabalho, todo cantado em inglês e guitarra slide; 2120, primeiro disco de blues de um brasileiro gravado nos Estados Unidos com músicos americanos, no lendário estúdio da Chess Records, em Chicago.
Participou do primeiro festival de blues do Brasil, em 1989, em Ribeirão Preto e também abriu a primeira noite de blues do Free Jazz Festival em São Paulo, o show do grande John Lee Hooker.  
Seu mais recente álbum, André Christovam Trio Live in POA with Hubert Sumlim, foi gravado em Porto Alegre, além Hubert, traz Big Time Sarah e Coco Montoya. Por um problema técnico, Solon Fishbone ficou de fora.
Trata-se da realização de um sonho. O bootleg autorizado conta com Hubert, guitarrista de um dos maiores nomes do Chicago Blues, Howlin’ Wolf. Segundo André, o disco que mais o influenciou foi Howlin’ Wolf London Sessions, cujas guitarras são todas de Hubert.
Muita birita rolou debaixo da ponte até 2014.
Vinte e cinco anos após o lançamento de Mandinga, a população do Brasil chegou aos 200 milhões de habitantes e a população de bandas de blues também aumentou, bem como o número de festivais do gênero. Claro, não na mesma proporção, Blues is the backseat music, man.
Todas traçando o caminho que um dia André e Blues Etílicos ousaram traçar, mesmo o guitarrista declarando que o que faz atualmente nem é mais blues e sim um “híbrido” com muitas influências.
Se hoje existe uma cena nacional com artistas de blues e blues/rock em quase todos os estados do Brasil, ambos são os responsáveis.
Rodeado por sua coleção de discos de vinil, guitarras e pedais, André falou mais de duas horas sobre tudo relativo ao blues brasileiro e sua carreira, o começo nos anos 70, o estouro de Mandinga, seu amadurecimento musical, viagens boas e viagens ruins.



Eugênio Martins Júnior – Como foi que você começou na guitarra?
André Christovam
– Arrumei um emprego na Só Calças por causa de uma garota. O dono da loja era o pai do Bozzo Barretti, produtor musical que tocou com o Arrigo Barnabé, Capital Inicial. Meu amigo de infância. Então ela foi trabalhar na Av. Angélica e eu na Rua das Palmeiras pra estar perto. O dinheiro que ganhei era pra comprar um aparelho de som. Meu pai tinha um Grundig mono na sala, mas eu queria o meu. No dia que recebi tive de fazer um trabalho e deixei o dinheiro cair no esgoto. E não fiquei com a garota também. It’s is that a blues or what? Mas meu pai vendo esse esforço deu o dinheiro para comprar o aparelho. Na noite que o aparelho chegou em casa eu tinha só o Abbey Road e o Help dos Beatles e o Cosmo’s Factory e Willie and the Poorboys do Credence e muita música brasileira do meu pai. Ouvia isso constantemente, cantava junto. Naquela noite meu tio me deu um disco do Bread, cuja primeira faixa era Guitar Man, que achei um horror. Aí chegou o Sérgio Amaral, que hoje é um fotógrafo renomado, meu irmão de criação, com o volume nove da série Pop History do Eric Clapton. Na Alemanha era duplo, mas no Brasil saiu com um disco. Tinha Let It Rain e After Midnight, e ele também me falou sobre o Cream. No dia seguinte troquei o Bread pelo Pop History do Cream. Lembro da sensação física de ouvir aquilo. Todos os sonhos de adolescente foram embora, piloto de fórmula 1, espião da CIA, o desejo de meu pai em eu ser médico. Ouvi os discos e pensei: “Eu vou fazer isso. Mas não vou fazer na bateria porque não tenho coordenação, mas uma das outras duas vou fazer”. Quem me encantou foi o Jack Bruce. A forma como ele cantava. Num primeiro momento queria ser baixista. Mas se fosse baixista não conseguiria tocar com outro baixista. Então resolvi ser guitarrista pra tocar com o Jack Bruce.

EM – Mas você começou aprender pra tocar com o Jack Bruce?
AC –
É a mesma coisa que chegar para um esquimó e mostrar um vídeo do Pelé e depois dar uma bola pra ele. Você acha que ele vai querer jogar com uma foca, um urso polar ou com o Pelé? Era um sonho de menino. Em janeiro de 1973 pedi uma guitarra para meu pai e ele disse que não ia dar, disse que eu teria de ganhar. Já havia um violão em casa. Meu primeiro violão.

EM – Esse instrumento ainda existe, você usa?
AC –
Tenho, é mais velho do que eu. Só não está aqui porque meu filho levou para a escola. Levei no luthier Novais e ele reformou. É um Del Vechio 56 que ainda uso quando preciso de um som com nylon. Meu pai disse que arrumava um professor de violão e eu concordei. Na primeira aula o professor me perguntou o que queria tocar. Respondi que queria ser músico. Ele disse que para ser músico precisaria ler partitura e concordei. Ele disse que tinha de estudar bastante e concordei. Comecei a loucura de estudar violão clássico o dia inteiro. Ele me dava técnicas e mandava estudar meia hora. Estudava cinco, a ponto de colocar uma flanela entre as cordas para não atrapalha a novela da minha mãe. Durante um ano e meio de aprendizado toquei compulsivamente. Fizemos uma apresentação com todos os alunos acompanhando o Cauby Peixoto. Nessa época eu já estava tocando Villa Lobos. Lembro muito de Targa, que me deslumbrou como compositor. Nessa época já conhecia o King Crinsom, tinha o The Court of the Crinsom King.

EM – E esse disco aqui? Qual é a importância dele? (Tiro de uma embalagem o Howlin’ Wolf London Sessions).
AC –
Tenho aqui (vai na pilha de LPs na prateleira e saca o dele, original, importado e capa dupla). Naquela época jogava botão, futebol de mesa, com o Sérgio e com o Elton. A gente jogava bem. O Elton sempre ganhava as coisas, mas um dia eu ganhei esse disco dele. Apostei porque gostava do Eric Clapton. 
Quando cheguei a ter certa desenvoltura no violão comecei a tocar as coisas que gostava. Gostava muito de rock progressivo, Fragile e Close to the Edge do Emerson, Lake e Palmer; Yes Songs e Yes Album do Yes; Foxtrot do Genesis. Mas não dava pra tocar Robert Fripp, não dava pra tocar Steve Howe. Eu não tinha um bom ouvido para tirar as coisas. Sabia tocar e ler partitura, mas com aquele disco, por incrível que possa parecer, sabia onde estavam as notas. Em seguida veio a minha primeira Giannini, depois uma Strato, foi tudo muito rápido. De repente, entre 1974/75 tinha certa desenvoltura no instrumento. Esse foi o primeiro disco que consegui tocar junto.

EM – Quando o blues entrou na tua vida?
AC –
Conheci o Marcos Rampazo e ele me ensinou a tocar guitarra. Em 1978 mudei para o Pompéia e no meu quarteirão morava o Carlini e o Sérgio e o Arnaldo (Batista - fundadores dos Mutantes), o Made (in Brazil – banda paulistana pioneira do rock and roll nacional). Desde 74 atormento o Celso Vechione, meu parceiro de vida. Fui o primeiro aluno do Rampazo, convenci-o a dar aula. Ele me ensinou um monte de música, a tirar as coisas de ouvido, os intervalos, acordes, os maiores. Depois fui estudar no CLAM, no dia que passei no teste era o cara mais feliz do mundo. Estudei com o Cândido Serra, o maior presente do mundo. Ele morou em Chicago em 67 e gravava em um gravador K7 as rádios de blues de lá. Ele não tinha discos, mas tinha horas e horas de blues, Shuggie Otis, Paul Butterfield com Michael Bloonfield, BB King ao vivo. Ele me emprestou e tirei tudo isso obsessivamente. Ele dava os toques. Eu chegava mais cedo na escola e convivia com o Hamilton (Godoy) e com o Luiz Chaves do Zimbo Trio. A música brasileira começou a ter espaço: “André, toca Wave aqui com a meninas”. “Olha André, estamos escrevendo para quatro vozes de guitarra, toca aqui”. E toda a vez que tinha alguma coisa de blues eu me sobressaia. Em 77 prestei Faculdade Paulista de Arte e passei em segundo lugar em música. Fui muito bem no exame. Cai numa classe de malucos, João Canônico, Tuca Fernandes, Ivo Nobre. Foram dois anos de estudos e CLAM ao mesmo tempo. Vivia música 24 horas. E tinha as gigs com o Fickle Pickle que já estava por aí. Tinha uma banda com o Bruno Cardoso, baita pianista, eu tinha 18 ele tinha 15 anos. Minha primeira gravação dessa época foi com o Otávio Fialho. O Arrigo também, na primeira formação de Tubarões Voadorres. O Tavinho montou uma banda comigo, o Michel Freidenson e o Teco Cardoso, todos moleques, na RCA. A banda era um absurdo, tudo escrito e bem arranjado. De repente meu pai morreu, no dia o meu aniversário de 20 anos. O último presente que ele me deu foi o disco do Allman Brothers ao vivo no Fillmore East. Entrou pra fazer um check up e ficou. Tranquei a faculdade e comecei a estudar inglês com a mesma obsessão que estudava guitarra e um ano e meio já havia estudado tudo na escola. Passei a tocar em todos os lugares para por comida na mesa. Uma das maiores experiências foi tocar no Avenida Danças. Minha mãe vendeu jóias e coisas da casa.



EM - O que era o Avenida Danças?
AC –
Era taxi dancing na avenida Ipiranga com a São João, o cara comprava um ticket e podia dançar à vontade com as mulheres. Tinha uma banda ao vivo que tocava sambas, boleros, mambos. Imagina, eu era um cara que tocava de Les Paul, já tinha uma Brasília, um filhinho de papai que era executivo da Texaco. Vi aquela realidade e entendi que aquilo era ser músico.

EM – Você estudou fora do Brasil. Como foi essa experiência?
AC –
O Sérgio Dias me apresentou o John McLaughlin que estava aqui para o primeiro festival de jazz, semanas após a morte do meu pai. Disse a ele que queria ir para os Estados Unidos e ele me perguntou se eu queria tocar jazz. Eu disse que queria ser músico de estúdio e que gostaria de conhecer o GIT do Howard Roberts. Ele disse que se o Howard estava envolvido eu tinha de conhecer. O Howard é um grande guitarrista de jazz e estudioso, um guru. O GIT é o resultado de uma série de seminários criados por ele, foi criado em 77. Sou da quarta turma, de 80. Antes do Scott Henderson que foi meu calouro, o Frank Gambale e o Malmsteen, que não se formou, entrou e saiu. Vendemos um apartamento, quitamos a casa onde morávamos e sobrou dez mil dólares. Com três, paguei a escola e com o resto paguei o aluguel e vivi comendo pizza durante um ano e meio e tocando nunca menos do que 10 horas por dia. Vi Eric Burdon, BB King, John Lee Hooker, Clarence “Gatemouth” Brown, Muddy Waters, Big Joe Turner, Big Mama Thorton, Pee Wee Crayton, John Mayall, tocava com o Robben Ford todos os dias porque ele era professor da escola. E vi muito rock and roll.  Isso deu autenticidade ao meu som. Era um filhinho de papai que havia morado sozinho em um apartamento em frente a uma lixeira, não era lixo orgânico, mas era uma lixeira. Moravam eu, uma Les Paul, um violão, depois uma Strato e um (amplificador) Mesa Boogie. E tudo isso sem birita, sem droga e sem mulher.

EM – E quando voltou ao Brasil?
AC –
Voltei ao Brasil e retornei ao Fickle Pickle, tocamos muito durante dois anos, mas sai para viajar com o Rádio Taxi. Foi a coisa mais linda da minha vida. Era 1982, a turnê que estourou. Era o Rádio Taxi de Garota Dourada, que era a Mae East da gang 90. O Nelson Motta fez pra ela, apesar dela ser paulistana. O Wander me viu tocando no Vitória e queria o meu som de guitarra. Todo mundo ia ao Votória, o Peter Frampton, Queen, Jimmy Cliff. Eram dois palcos, nós em um e o Tutti Frutti no outro.

EM – Nessa época as bandas do rock nacional ganharam muito dinheiro.
AC –
Nossa, se eu ganhei dinheiro imagine os caras. A gente viajava o Brasil. Fiz muitos amigos, o Evandro da Blitz, o Frejat desde o começo. Mas logo me aborreci e fui para a Inglaterra por um ano com Fickle Pickle. Quando voltei, em 1985, desisti de ser músico. Havia muita gente ruim naquela época na Inglaterra. Tinha o Motorhead e o Iron Maiden que, com toda a sinceridade, naquele momento não era a minha. Estava totalmente envolvido com o John Coltrane, Miles Davis, que era o que queria tocar. Ou ia para aquela sonoridade que atraia o Paulo e o Nelson? Eu achava medonha, neandertal, todo o new wave of britsh heavy metal (NWOBHM). Achava ruim, mal tocado. O cantor do Def Leppard pelo menos cantava afinado. Até assisti o Iron Maiden em Cascais, mas achava ruim, fazer o que? Minha cabeça estava em outro lugar. A gente ouvia Smiths e o cantor era desafinado. Aí diziam: “Mas o Johnny Marrs é um gênio!”. Eu não conseguia ouvir porque a voz do cantor me incomodava. Ou seja, era um velho de 60 anos em Londres nos anos 80, cara! Então vendi uma guitarra para o Faiska, outra para o amigo dele, fiquei com a Strato, aquela que está na capa do Mandinga. O Faiska entrou no Magazine, mas odiou e saiu. Pediu para eu fazer os shows e me dei bem com o Kid Vinil. Acabou o Magazine, fizemos a banda Heróis do Brasil e foi quando comecei a compor, porque o Kid se recusava cantar Boy e Tique Tique Nervoso. Assinamos com a BMG/Ariola e chamamos o Roberto de Carvalho. A Heróis do Brasil virou uma banda cult. O primeiro show que fizemos no Chacrinha tocamos Conta da Light e arrancamos a calça dele. Alinhavamos uma calça velha que ele tinha e veio um pela frente e o outro por trás: “Se não voltar a luz, saio pelado tonight...”, e a gente puxava. O Chacrinha amou, o disco vendeu bem. Virei letrista. O Rádio Taxi começou pedir letra, a Rita pegou uma música que era para o Kid.

EM – Que música foi essa?
AC –
Foi Para com Isso do disco Flerte Fatal. É um blues, minha primeira gravação com a Rita. Entrei como convidado. Acabou a gravação e eu entrei na banda (risos). O disco saiu um mês depois. Mas uma coisa era tocar com o Kid Vinil nos lugares mais legais de São Paulo, o Rose Bombom, Projeto SP, Sesc Pompéia. Outra era ficar hospedado no Copacabana Palace com a Rita Lee.

EM – Aí você é gente.
AC –
Você é gente tocando com o Kid Vinil. Com a Rita você vira divindade. Eles tinham acabado de fechar um contrato de um milhão de dólares, dinheiro que não existia no Brasil. Assinei os direitos autorais com EMI por sugestão do Roberto de Carvalho. Não sabia nada disso na época. Olha só, fiz nove músicas para a Heróis do Brasil e ganhei um muito obrigado. Assinei uma música com a Rita Lee e ganhei um carro zero.

EM – Era uma indústria muito poderosa nessa época.
AC –
Era muito forte. Descobri que ser um bom guitarrista não faz você trabalhar. Garante gigs boas e fica seguro, mas o que dá dinheiro é ser um compositor. Fiquei esperto com isso e o Roberto era o meu mentor nesse período. Comecei a produzir e ele e a Rita avaliavam o que eu estava fazendo. Havia um tecladista que tocava muito, tinha o Roberto que tocava muito, ele é um músico acima da média. Você tem grandes músicos e tem o Roberto de Carvalho. E quando você toca com esses caras tem de ficar esperto, achar o teu lugar dentro da banda e na banda da Rita nunca consegui achar. Em disco sim, na banda não. Então saí antes de começar a turnê. Virei artista solo, compondo mais ainda. O André Geraissati me indicou para o Zuza Homem de Mello que me indicou para um show do Talento. De lá fui para o Espaço Off e o João Lara Mesquita me contratou para a Eldorado.


EM – O Mandinga estava germinando?
AC –
Já tinha o disco pronto. Ele achou que eu ia fazer um disco de blues solo. De repente montei a banda com o Márcio Vitulli e o Alaor Neves. A gente ensaiou quarenta dias sem saber que ia ganhar um disco. De repente virou.

EM – Onde entram o Herbert Lucas e o Flávio Guimarães nessa história?
AC –
O Herbert era padrinho de casamento do Alaor Neves. Não tínhamos empresário e deixamos o Herbert cuidar dessas coisas. Já estávamos na gravadora e ele pegou a produção executiva do disco. Conheci o Blues Etílicos através do Renato Arias, dono da loja Satisfaction, no Rio. Ele disse que iam tocar no Blues and Jazz e se eu poderia ver a banda. Gostei muito e como ia tocar na próxima semana chamei o Flávio para tocar comigo e depois eles me chamaram pra tocar no Rio. A gente sempre se deslocava para prestigiar o outro. Ninguém me conhecia no Rio de Janeiro, quer dizer, eu conhecia o pessoal do jazz, o Nico Assumpção, o (Carlos) Bala morava lá naquela época, e do rock conhecia o Frejat e o Lulu. Não existia cena de blues no Brasil.

EM – Aí finalmente saiu o Mandinga?
AC –
Quando fizemos o especial da Manchete recebemos os vinis que haviam acabado de ser prensados. Quando o Cesar Castanho montou o festival em Ribeirão Preto ele me convidou e ainda perguntou com quem eu queria tocar. Na ideia dele eu abriria o festival na quinta-feira para o Buddy Guy. Eu disse que preferia tocar com o Albert Collins. Ele me perguntou por quê? Eu disse que no sábado ia ter gente saindo pelo ladrão e o Albert Collins é meu maior ídolo e meu amigo. Havia sido roadie dele em Los Angeles. Ele me disse que ia dar a abertura do festival para o Blues Etílicos.

EM – Os discos Mandinga, A Touch of Glass, Água Mineral e San Ho Zay venderam como pãozinho quente.   
AC –
Venderam mais juntos do que toda a discografia internacional de todos os tempos, incluindo BB King e Robert Cray, de acordo com a pesquisa do Luiz Fernando Vitral que na época era da Veja. Ele disse que a gente havia acabado de bater o recorde de vendas de blues. Lembro do John Hammond jantando na minha casa na época do álbum 2120 e eu dizendo que havia vendido pouco, só 15 mil cópias, porque não pudemos divulgar por causa da morte do BB Odon. Ele me disse que se vendesse isso nos Estados Unidos teria virado divindade. Eu comparava com a Rita Lee que na primeira semana tinha 150 mil discos vendidos.

EM – Nessa época os artistas da MPB batiam em 800 mil a um milhão de cópias.
AC –
Existe uma coisa que a indústria não explica. Um milhão de discos vendidos eram um milhão de discos entregues. O quanto eles recebiam de volta era outra coisa. Um disco de ouro demorava entre 60 e 90 dias com, de fato, um disco de ouro.

EM - Os dois primeiros discos no Brasil que levaram o rótulo de blues foi o Mandinga e o Água Mineral. E vocês chegaram cantando blues em português. Gostaria que falasse sobre isso.
AC –
Toco blues ao vivo todas as noites desde 1981. Toda vez que chegava num dono de casa noturna o cara falava: “Blues é muito triste, André. É muito chato, dá sono”. Eu dizia que eles estavam ouvindo blues errado. Quando a gente tocava R&B levantava a casa, todo mundo começava a dançar. Só que ninguém conseguia escrever blues em português. No momento que você vai fazer uma música em português. Pega as letras dos Beatles, por exemplo, o Ronnie Von cantando Meu Bem. A língua não ajuda. Não dá para ser romântico em português sem ser brega, porque nós tivemos um excesso da breguisse melódica na Jovem Guarda. 
As letras eram muito melosas. Não importa que o Erasmo era um rocker ou que o Roberto em algum momento passou a fazer grandes letras. Nos anos 80 estávamos vivendo no Brasil um momento em que as letras haviam ficado inteligentes. 


EM – Nessa época havia uma profusão de letristas bons, Cazuza, Renato Russo, Lulu, Herbert e outros.
AC –
Exatamente. Falei ao Pena Schimidt que queria fazer um disco de blues. Minhas canções pops eram boas, Fútil Rock and Roll, Conta da Light e Assassinato Anônimo eram legais. A Rita gravou Para com Isso, do disco Flerte Fatal, depois de eu cantar para ela: Se não for olho gordo, deve ser a lua cheia/Cruzar a garçonete que serviu a santa ceia/Isso não é miopia, isso é praga de madrinha/Baby, baby para com isso/Baby, baby sai dessa lama/Baby assim você acorda o cortiço/Baby assim você quebra essa cama/Você foi na verdade um acidente de trabalho/Um porre sem bebida, um tremendo ato falho/Te vendo em minha cama procurei por meu arreio, gritei por São Genaro, você acha que ele veio. Quando acabei de falar isso, ela disse: “E você acha que essa música é do Kid? Não, é minha”. Ela me parou antes do segundo refrão dizendo que ia gravar. Tinha achado uma maneira que tem muito mais a ver com Noel Rosa, Ataufo Alves e Adoniram Barbosa.

EM – Ou seja, o lado bem humorado do blues.
AC –
Confortável roubei Built for Confort do Howlin’ Wolf, não pedi emprestado. O fato é que todas as nuances das letras de blues não haviam sido traduzidas. Quando comecei escrever essas coisas, usei os recursos que tinha. Usando o português que eu tinha. O Kid é um cara que escreve muito bem, não letras de música, mas textos. A Rita, o Raul, o Marcelo Nova.

EM – Se todo mundo elogiava as letras e a música, porque a Heróis do Brasil acabou não dando certo? Ou dando certo em termos?
AC –
Cara... tomei uma cantada do diretor da gravadora que queria me levar a uma lua de mel em Roma. Do nada o disco parou de vender. Vendeu 30 mil cópias até o dia que dei o fora nele.

EM – Aproveitando que você está falando isso. Se o Mandinga fez aquele baita sucesso com letras em português, por quê A Touch of Glass?
AC –
Sou virginiano e tenho uma visão muito clara daquilo que faço. Demorei cinco anos compondo Mandinga e tive sete meses pra fazer o A Touch of Glass. É impossível. Todas as letras do A Touch foram escritas em uma noite antes de começar por voz no disco.

EM – Porquê só sete meses. Foi por pressão da gravadora?
AC –
Foi um erro. O Mandinga tinha várias músicas de sucesso. Uma no Rio, uma em São Paulo e outras em outros lugares. Tinha mais um ano de vida. Matamos a duração do Mandinga. Qual é o disco de banda estreante que tem quatro músicas tocando em rádio, Confortável, Genuíno Pedaço de Cristo, So Long Boemia e Dados Chumbados. Tudo o que eu escrevia parecia resto do Mandinga. O tiro que matou a minha criatividade em português foi o Aldir Blanc. Na crítica ao Mandinga no jornal O Globo ou no Jornal do Brasil, não lembro, ele disse: “É um dos discos com as letras mais inteligentes do atual cenário brasileiro”. Travei.
Mostrei o disco pra Rita e perguntei o que ela achava e ela disse que achava que eu era um idiota (risos). Eu disse que estava travado. Havia produzido um disco para o Kid, escrito nove letras em 87, dez letras em 89, e tinha seis meses para escrever outras letras. A gente tem de ter história pra viver. Havia acabado de casar e as letras que havia feito eram com mulheres e enroscos do passado. Ela disse que eu tinha de aprender a contar as histórias dos outros.   

EM – Até que o A Touch of Glass não teve uma trajetória tão ruim.
AC –
Fizemos uma turnê com 97 shows. Conhece alguma banda de blues que teve esse volume? A turnê terminou em Belo Horizonte uma semana depois de fazermos quatro shows nos Estados Unidos, em Chicago. Foi quando conheci o BB Odon. Era o lançamento do Family Style, disco póstumo do Stevie Ray Vaughan. Havia comprado uns cinqüenta CDs de blues na Delmark Records pela manhã. Uns 25 caras dos meus discos estavam no show de noite. Quando acabou o show, atravessei a rua e o Zinner estava sentado na sarjeta. De onde a gente estava dava pra ler o letreiro: “Brazilian blues star. Tonight only. Guess only”. Ele estava torcendo a camisa e disse que havia sido o show que melhor me ouviu tocar em 17 anos. Na mesa da minha frente estava o Buddy Guy, Junior Wells, Dr John, Dave Mason. Toquei slide a noite inteira.


EM – Depois veio 2120, primeiro disco brasileiro de blues gravado lá fora, na terra do blues. Como foi que isso aconteceu?
AC –
Antes produzi um disco do Golpe de Estado, Nem Polícia, Nem Bandido. Fui quem levou o Golpe para a Eldorado. Era para ter produzido o Kães Vadius, mas eu acabara de produzir um single deles e os caras do Golpe eram meus amigos. O Nelson e o Paulo eram amigos de infância. Eles me apresentaram Filho de Deus e eu disse: “Pára. Isso vai tocar pra caramba, deixa eu produzir”. Ganhamos muito dinheiro com isso. 
O 2120 foi o último disco da história do estúdio da Chess, tombado como patrimônio histórico dois meses depois. Hoje é um museu. A ideia inicial era gravar em Vancouver com o Paul Horn. Ia ficar um mês lá. O Howie Albert havia montado um estúdio em Nashville e também queria gravar comigo. Disse que ia convidar aquele baixista do Toto, o David Hungate. Então ficou essa dúvida. Eu estava querendo gravar um disco acústico, o John Hammond havia me ensinado a tocar Hard Times Killing Floor e viajar para divulgar era mais fácil. Quando estou decidindo sobre as passagens e outras coisas, o Tony Hilgert liga me convidando para gravar no estúdio da Chess porque ele me faria um preço bom. A primeira semana gravei violão, conhecendo o estúdio, saindo pra jantar, trabalhando três a quatro horas por dia. Bem low profile. Em uma segunda-feira estava tomando uma cerveja com o Buddy Guy, estava rolando uma jam e o baterista dele, Jerry Porter, me chamou pra tocar. Tocamos até às quatro da manhã e o Mark Salzman falou que a gente precisava gravar um disco. Esqueceu que estava pagando um hotel pra eu ficar lá. Deixamos para gravar na sexta e no sábado. A jam foi na segunda e na outra segunda o disco estava gravado.

EM – Depois de dois discos bem sucedidos, como foi a recepção no Brasil de 2120?
AC –
O BB Odon veio ao Brasil e a TV Cultura fez um especial de uma hora. A merda é que falei para o pessoal da gravadora que estava indo embora do Brasil. Os caras concordaram. A ideia era começar uma carreira internacional, mas aconteceu uma coisa que não esperava. A turnê acabou dia 02 de dezembro e o BB Odon morreu em 21 de dezembro. Aí perdi o chão.

EM – Não haveria condições de continuar sem ele?
AC –
Ele era a voz. Para os Estados Unidos eu era bom, mas ele era uma lenda. Havia se retirado após a morte do Earl Hooker, trabalhado por 11 anos no departamento de esgotos de Chicago. Ele era cantor do Earl. Não tem depois disso. Perdi meu pai no dia do meu aniversário e você sabe bem o que é isso. A morte do BB Odon dizimou a minha vida. 

EM – Mas o que aconteceu então?
AC –
Montei uma banda quinze dias depois. Se não tivesse montado uma banda... na verdade, o Fernando Naylor que estava tocando comigo com o BB Odon indicou uns caras para a gente continuar tocando, o Izal de Oliveira no baixo e o Cláudio Tchernev na bateria.  Tinha muita demanda de show. Consegui virar um guitarrista de blues de Chicago, era o diretor musical, o único branco, era a força de composição. Pela primeira vez eu era a grana. Tinha um empresário do Junior Wells que também havia acabado de deixar o Buddy Guy e... o trem passou. A banda durou mais dois anos e o meu casamento acabou.
Lembro que em algum momento de 1995, última vez que esteve no Brasil, o Junior Wells me ligou às quatro da manhã dizendo que havia demitido o guitarrista e queria que eu entrasse na banda dele. Disse que faria o show de sábado com ele, mas ele me queria na banda de verdade. “Quero que você vá comigo para Chicago e cuide da minha banda”. Tinha 28 shows agendados e dois músicos que viviam do dinheiro que eu pagava. O que poderia fazer?       
        
EM – O Junior Wells estava em uma boa condição financeira como o Buddy Guy que estava começando a ficar rico com o blues?
AC –
Tava bem. Me convidou para morar na casa dele até arrumar um lugar. O Buddy ficou rico, mas quando o conheci era durango. Só tinha muitas guitarras.

EM – Após 25 anos o lançamento de mandinga, como vê a cena hoje?
AC –
Não existia, agora existe. Os instrumentistas são excelentes, mas o que estão fazendo com a habilidade deles é patético.

EM – Não entendi. Eles são excelentes, mas o que estão fazendo é patético?!
AC –
Talvez, três ou quatro exceções no Brasil inteiro. Grande parte dos músicos brasileiros toca o mesmo repertório. Estou errado? Não têm direcionamento. Quem tem talento não se aprimora porque acha que é melhor do que é. Vou falar dos caras que realmente gosto. Conheci o Marcos Ottaviano há 25 anos quando ele tocava muita guitarra. Hoje ele toca melhor do que qualquer músico de blues americano na minha opinião. Ouve o Flávio Guimarães e ele está cada dia melhor. Vejo o Adriano Grineberg tocar e acho que está procurando caminhos e entregando um bom produto. Vejo o Edu Gomes tocar uma linguagem com frescor que também não vejo nos americanos. Não vejo nenhuma cozinha no Brasil com a competência da americana. Os caras não fizeram a lição de casa. Tem de aprender que o blues tem um jeito de tocar. Tiro a minha banda porque a gente tem um diálogo. E o que toco virou um híbrido tão complexo que não dá pra colocá-los nesse contexto. Principalmente o Fabio Zaganin que está comigo há 16 anos. O que faço não é mais blues. Tem uma brasilidade. E não vejo ninguém tomar uma liberdade com isso. Com a veemência de quem está tocando algo que é seu. É muito difícil dizer “eu te amo” e não ser brega. E é muito fácil dizer “baby I love you”, e não dizer nada.

EM – Talvez porque o DNA do blues brasileiro seja classe média? 
AC – Ele é branco. Como o blues americano de hoje. E classe média. Onde um menino americano vai comprar uma Strato 63 por trinta mil dólares? Onde vai tocar um Bassman 59? Tocando em bar? Não, papai bancou. É a diferença entre eu em 76 e em 2014. Estudei e ganhei equipamentos bons porque papai podia pagar.

EM – Depois dessa caminhada você não pode dizer que tem um trabalho? A tua história não te legitima? Esses músicos não estão buscando o mesmo caminho que você já buscou?
AC –
Então para de copiar! Para de tocar o mesmo repertório. Para de se preocupar com o amplificador do Eric Clapton, o violão do Robert Johnson, o pedal do Robben Ford. Para de imitar a marca do microfone do Little Walter. Vai buscar o porquê de o Little Walter ser o Little Walter. Se O Robert Johnson estivesse vivo provavelmente estaria usando uma guitarra dessas modernas, sem headstock. Por que ele era o mais moderno da época. Quando olho o John Mayer me dá vontade de volitar. Ele é o Eric Clapton de hoje, mas que não cresceu em uma garagem, ele saiu do BBB, cara! Minha crítica não é só ao blues brasileiro. É ao blues americano. Você sabe que blues é uma música que veio dos africanos que usavam essa estrutura musical e melódica pra contar a história da África, os griots. Essa molecada não está contando história nenhuma. Deus do céu, estamos vivendo uma revolução social no Brasil. E não tem um cara de 23 anos que saiu na Paulista no ano passado que vai contar o que ele viu? Genuíno Pedaço do Cristo foi composta porque estava indignado com a CBF que permitiu que roubassem a taça Jules Rimet. Só que em vez de dizer isso diretamente, contei uma história sobre aquela estrutura de poder montada no Rio de Janeiro, do poder da política, do poder do futebol, e que deixaram roubar o maior patrimônio que a gente tinha. E derreteram. Roubaram um pedaço da nossa história, uma coisa preciosa. Me lembro da comoção de 1970.

EM – Você está dizendo que o blues brasileiro sofre de crise de identidade crônica?
AC –
É isso. Temos bons guitarristas, baixistas, bateristas, gaitistas e pianistas, mas muito pouca gente tentando contar uma história própria. Não têm onde desenvolver essa arte.

EM – Foi esse o caminho que buscou na pareceria com o Heraldo do Monte?
AC –
Ele foi o meu mentor. Era professor dos meus professores. Só cheguei a conclusão de que o Heraldo tocava uma música com origem moura... aí tenho de entrar em questão teórica. A escala que a gente usa pra criar essa música nordestina tem a sétima menor. Uma mixolidia, o quinto grau das escalas do campo harmônico. Isso é genial. Quando você ouve Asa Branca, uma sonoridade africana, do blues, da música nordestina, dos negros que subiram para a Europa e colonizaram os países ibéricos, um pedaço de Portugal, Espanha e Itália. O Heraldo domina isso por natureza e criação. O Joe Pass me disse que o Heraldo era o guitarrista mais interessante que já ouvira tocar.

EM – Qual foi a maior alegria que teve com o blues?
AC –
É a hora em que você está tocando e faz o mundo parar. Faz o olho daquela mulher bonita da segunda fila brilhar.



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