segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Roosevelt Collier e a slide da cura

  

Roosevelt Collier  - Rio das Ostras Jazz e Blues 2021 - Palco Costazul

Texto e fotos: Eugênio Martins Júnior

A forma como Roosevelt Collier fala contrasta com a forma como ele toca sua lap steel. No trato, Collier, o grandalhão de calça jeans, camisa de flanela e boné, é maneiro, fala baixo, é bem humorado e educadíssimo. Quase um hippie. 
No palco, o cara se transforma. Ele e banda tocam alto. Bem alto. Muito alto mesmo.
A própria estrutura do seu instrumento, feito de corpo e cordas de aço, ajuda. Somado a isso, decibéis e mais decibéis em amplificação e o estrago está feito.
Essa foi mais uma entrevista coletada na edição de 2021 no festival de Rio das Ostras. Perdi o primeiro show de Collier no palco da Lagoa de Iriry, mas assisti o segundo, no  Costazul. O show teve ainda a participação do Eric Gales pra acabar de deixar todo mundo surdo de vez. 
Nascido e criado dentro de um igreja batista e sulista como integrante da banda Lee Boys, Roosevelt Collier se tornou um dos grandes sliders do sul dos Estados Unidos. 
Para quem não sabe, slider é aquele músico que toca um  instrumento de corda qualquer, deslizando um aparado de aço ou vidro pelas cordas. E isso é bem legal. Os malacos do velho blues do Mississippi que começaram com essa história,  Blind Willie Johnson, Casey Bill Weldon, Tampa Red, Blind Willie McTell, Charlie Patton, Blind Boy Fuller e o grande Leadbelly. 
Parece que estamos contando uma história antiga, mas não é isso. Nesse estilo musical, as habilidades atravessam as gerações o que permite sua “lapidação” e, como consequência, sua evolução.
Somente em 2028 Collier lançou seu primeiro e excelente álbum, Exit 16, um petardo com 10 musicas autorais produzido por Michael League, fundador da banda Snarky Puppy, com quem Collier já havia trabalhado no projeto Bokanté – A World Music Star Band.


Eugênio Martins Júnior - Você declarou que acredita que a música tem o poder de tocar e curar as pessoas. John Lee Hooker gravou um álbum chamado The Healer com esse mesmo sentido. Gostaria que falasse sobre esse poder do blues.
Roosevelt Collier – Antes de qualquer coisa. Obrigado. Minha música vem de uma origem espiritual. Eu sou da igreja. Para mim a música sempre será feita para tocar o coração de alguém. Ajudar a alimentar as mentes. Ajudar a fazer bem. Ajudar o poder de cura que cada um tem. A música pode ser muito poderosa se você souber canalizar essa energia. Transmitir esse poder para o seu público. Seu instrumento sua voz. Veja, se alguém do público estiver em um dia ruim, talvez dentro daquela hora que esteja escutando minha música eu posso fazê-lo esquecer os problemas. Essa pessoa vai desfrutar somente da música. Essa é minha missão.  

EM - É por isso que o teu apelido é The Dr?
RC – (Risos) Sim! Cara! Bem, como muitos de meus fãs me chamam de The Doctor desde o começo, desde o tempo que eu tocava na banda da família The Lee Boys. Remonta de um festival na Flórida, em 2005. Alguns da plateia gritavam: “Playing for me Doctor. Heal me Doctor”. E eu não fazia ideia do que era aquilo. Com quem eles estavam falando? Mas em todo festival aquilo continuou. E o pessoal da banda disse que eles estavam falando comigo. Foi assim que o apelido apareceu.    

EM - Como foi a sua infância musical passada na igreja?
RC – Passei toda a minha vida dentro da igreja. Nasci e cresci em uma grande família e todos tocam ou cantam. Meu avô era um pastor, um líder em uma igreja. E todos os seus filhos eram da música. Minha mãe cantava. E meus tios me ensinaram música e a todos os meus primos. Então, passei toda a minha infância na igreja aprendendo como tocar a lap steel. 

EM - Foi lá que você teve contato com a lap steel. Fale sobre esse instrumento, pouco conhecido aqui no Brasil.
RC – Bom, espero poder voltar e introduzir esse instrumento no Brasil. Trazê-lo às escolas para as crianças. Ensinar a tocar, a ouvir. É isso que eu faço. Adoro tocar e levar a música nas escolas locais. Esse instrumento é originário do Havaí. 

EM - Li que SRV foi a sua primeira influência da guitarra. Mas existem grandes sliders como Earl Hooker, Elmore James, Dickey Betts e Duane Allman. Gostaria que falasse sobre essa grande escola. Você se sente parte dela?
RC – Cara, você fez uma boa pesquisa. Quando estava no ensino médio meu amigo Andy Cole, que era um jovem blueseiro, fã de BB King. Ele me deu uma fita onde estava escrito SRV e falou para eu ouvi-la. E o cara da fita arrasava. Eu perguntei o que SRV significava. Meu deus! Ele me introduziu ao blues. Mas isso foi natural porque o gospel e o blues são bem parecidos. Tocávamos a mesma coisa na igreja. Então, esses caras já tocavam slide em suas próprias igrejas. Veja, a nossa igreja teve origem em 1903. E a steel foi introduzida em 1930.

The Dr e Eric Gales

EM – Os Allman Brothers, Dickey Betts, Derek Trucks, todos vieram do sul.
RC – Sim, eles são da Georgia. Nossa igreja é baseada no sul. É muito profundo. Eu já toquei com o Greg e o Allman Brothers. Não conheci Betts e nem Duanne, mas sou fã de ambos. Derk Trucks é o cara. Para aa nossa geração ele é o rei da slide. 
      
EM - Florida não é exatamente um estado com tradição no blues como o Mississippi ou Tennesse. Mas há um forte segregacionismo que faz com que o blues e gospel ganhe contornos de música de resistência. Poderia falar sobre isso?
RC – Há uma coisa que preciso te dizer. As pessoas não conhecem a Flórida. Existe muito blues na Flórida. Ela faz parte do sul profundo. Não é tão conhecido quanto o Mississippi. É claro que o blues desses lugares que você citou é mais conhecido. Mas um dos juke joints mais antigos está na Flórida, em Tallahassee, o Bradfordville. É claro, as pessoas de fora não o conhecem. Mas ele sempre esteve lá. Estou feliz em te dizer essas coisas. 

EM – Eu também, aprendo muito com essas entrevistas. 
RC – Tenho de lhe dizer uma coisa. Eu agradeço por poder essas perguntas e poder divulgar a nossa música. Para mim, vir ao Brasil e tocar é uma grande coisa. 



EM – Exit 16 traz uma grande mistura de ritmos. Muitos muito grooves, mas o Hammond traz a atmosfera da igreja. Gostaria que falasse sobre isso.
RC – Exit 16 é meu primeiro disco. É quem eu sou. De onde venho. E para onde vou. Minha raiz é a música gospel. O Hammond é muito presente nesse álbum, ele ressalta a minha voz. Ele dá o som orgânico que eu preciso. Muito groove, com um som gospel, mas não o gospel tradicional. Tudo nesse disco foi feito da forma mais crua e pura que conseguimos.    

EM - Você fazia ideia que existia uma cena de blues brasileira?
RC – Bem, sabia que na América do Sul havia pessoas que tocavam blues, especialmente no Brasil. Já havia ouvido falar e até conheci alguns músicos. Não lembro os nomes. Mas eles tocavam blues muito bem. Não conhecia da cena no país. Estou totalmente surpreso com esse país. Preciso voltar mais vezes e explorar melhor o Brasil. A cena musical local. Tocar com as pessoas daqui. Vocês têm um povo maravilhoso aqui que eu quero conhecer mais.

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