Choro de Bolso na Rua XV de Novembro, Centro Histórico de Santos
Sinto um pouco de dificuldade de escrever sobre o Choro de Bolso aqui. Além de amigos queridos, nós trabalhamos juntos sempre que possível. Portanto, já entrego logo: há conflito de interesse aqui. Jornalismo sem isenção.
Em 2024 Débora Gozolli e marcos Canduta completam 25 anos tocando juntos e sem interrupção. O primeiro show foi no Sesc Bertioga, em 1999. A conexão foi imediata e nunca mais pararam.
O nome Choro de Bolso surgiu cinco anos mais tarde, quando começaram a tocar na Livraria Realejo, onde estão até hoje. Toda sexta-feira eles abrem oficialmente o final de semana em Santos, com cerveja da boa e cachaça amarelinha.
De lá para cá, amadureceram como músicos e como pessoas. Alcançaram um estágio de companheirismo e respeito mutuo que transcende o fazer musical.
Débora apresentou Canduta ao Choro. Ele a iniciou no jazz.
Viajaram muito, gravaram discos, fizeram vídeos, viraram uma “entidade”.
Em algumas ocasiões podem ser vistos e ouvidos ao lado de outros grandes músicos, além de amigos, da Baixada Santista.
Tocar juntos por 25 anos não é fácil. Os atritos são muitos. Mas como diz o próprio Canduta: “Lembrem-se, a prata quanto mais polida, mais brilhante”.
Choro de Bolso lançou Os Choros e Canções Que a Gente Mesmo Faz (com Julinho Bittencourt, em 2014) e Entidade (2017). E Marcos Canduta gravou Canções de Amor Caiçara (2019) com o poeta Manoel Herzog.
Choro de Bolso, Digo Maransaldi e Fabiano Guedes, no Carioca Café, Centro de Santos
Eugênio Martins Júnior – Como nasceu o Choro de Bolso?
Marcos Canduta – Eu tocava com o (José) Simonian e a Débora tinha sido aluna dele. Quando ele lançou o primeiro CD no Sesc Paulista, o Ouvi do Brasileiro, montou um quarteto de flautas para fazer uma participação especial e a Débora estava nele. Na verdade, o encontro foi nos ensaios da Companhia Instrumental, essa banda grande que o Zé tinha. Mas no dia do show de São Paulo ela voltou comigo para Santos e surgiu a idéia de fazer alguma coisa. Tínhamos a idéia de misturar choro com música barroca, a maior loucura. Ou fazer um grupo de serenata, enfim. Montamos primeiro um trio com o irmão dela.
Débora Gozzoli – Eu não tinha a menor experiência em tocar em grupo. Tocava só na escola. Mas tocar na rua, na noite, show nada. Só em participações especiais.
MC – Eu já tocava na noite de Santos desde sempre. Então o nome do trio ficou Trio Chorata por causa da idéia de tocar Bach e choro. Mas logo depois fizemos o duo. Eu era da turma do jazz e Débora tinha uma vivência em choro. Acabei conhecendo o choro através dela. Assim como mostrei um monte de coisas de jazz para ela, de Beatles. O primeiro show que fizemos juntos foi no Sesc Bertioga. Depois tocamos num bar chamado Almanaque.
DG – Não rolava muita grana, mas foi legal porque foi ali que comecei a montar um repertório.
MC - Com o Trio Chorata fizemos até serenata em aeroporto. Mas investimos no duo e cinco anos depois do Sesc Bertioga começamos na calçada de uma livraria e estamos até hoje.
EM – Isso eu já ia perguntar. Vocês tocam há 20 anos numa calçada aqui em Santos. Ao mesmo tempo que ficam perto do publico recebendo o carinho, também está sujeito às intempéries do local. E também já ouvi gente desdenhando desse trabalho pelo simples fato de se estar tocando numa calçada. Gostaria que falassem sobre essa experiência.
DG – Gosto muito de tocar lá. É um grande laboratório de testes. Temos muita música, muita partitura. Muitas eu sei de cor.
MC – Todas as músicas que compus nós estreamos na calçada. O nosso repertório, que hoje é gigantesco, foi testado e montado lá.
Choro de Bolso, Digo Maransaldi e Fabiano Guedes, no Carioca Café, Centro de Santos
EM – E o lance de tocar na rua? Quer dizer, não é um ambiente controlado. Tudo pode acontecer.
DG – Teve um dia que um cara começou a nos afrontar? Eu me levantei e fui tocando na direção dele.
MC – Sim. A gente estava tocando e ele passou falando que aquilo não era música de rua, que a gente recebia e que estava tirando lugar de quem era músico de rua. E gritava. Aí a Débora levantou e começou a encarar o cara. Eu já estava levantando quando uma pessoa da platéia tirou o indivíduo de perto. Mas lá não começamos na rua. Tocamos dentro da livraria durante três anos. Um dia aconteceu um lançamento de livro e surgiu a idéia de tocar na calçada.
DG – Quando tocávamos dentro as pessoas não chegavam porque achavam que deveriam comprar livros ou consumir alguma coisa. A partir do momento que fomos para a rua a coisa explodiu. Ultimamente um morador do prédio em frente atirou feijões na gente. É um cara que está morando lá há pouco tempo, mas a gente está lá há 20 anos.
MC – Sim. Tem um pessoal que já vai para nos ver. Fizemos muitos amigos. Já dei aula para criança que chegou lá na barriga da mãe e depois, aos dez, doze anos, passou a ser meu aluno. E quem desdenha é quem queria estar ali. Um dos pontos mais nobres da cidade, coração do Gonzaga (bairro comercial de Santos perto da praia). Um monte de gente sai do trabalho e para ali.
EM - O trabalho Os Choros, Sambas e Canções que a Gente Mesmo Faz, de 2015, tem temas como a miscigenação, racismo, violência contra a mulher, etc. É quase um disco de samba protesto. As letras foram compostas pelo Julinho Bittencourt. É um disco gravado antes da hecatombe política a qual sobrevivemos.
MC – As músicas começaram ser compostas em 2013. Esse disco também é fruto de tocar na livraria. O Julinho trabalhava em Brasília, mas quando voltou para Santos passou a freqüentar. Certo dia, tocamos um choro que eu havia feito em homenagem ao Jacob (do Bandolim), que se chamava Outras Noites. Toquei com o Julinho por quarenta anos e a nunca havíamos feito música juntos. Digo parceria de composição. Então ele ouviu o choro e perguntou se podia colocar uma letra. Ficou bom demais e não paramos mais. Fizemos um show só com músicas autorais. Quando abriu o FACULT¹ nós escrevemos o projeto de um álbum completo e passamos no primeiro lugar. O lançamento foi no Teatro Guarany. Nesse disco tem um choro chamado Escadaria, um dos mais difíceis que já fiz, e que ele também colocou letra.
E tem uma música que é assim: “Patroa diz que cabelo ruim não pode/Mas qual cabelo é bom e qual cabelo pode?/ Patroa diz que cabelo ruim não pode/ Mas qual cabelo bom que pode e não sacode?”; que é em cima de uma notícia de jornal da época. Uma professora que foi impedida de dar aula porque ela usava o cabelo solto.
EM - Para mim o Entidade é um disco que se pode escutar em qualquer ocasião. Cozinhando, bebendo cerveja, trabalhando em casa ou até só relaxando, ouvindo música. Ouço muito em casa. Fale sobre ele.
MC – Esse disco foi interessante. Essa época a gente vivia na estrada e as pessoas perguntavam se tínhamos disco para vender. Quando a gente mostrava e falava que era cantado ninguém queria. Queriam o que a gente havia acabado de tocar, música instrumental. Mas gosto dessa coisa misturada, instrumental com cantado. O Entidade tem 15 músicas e 10 são instrumentais.
E então eu já estava com um monte música. Faço música todos os dias. Se No Samba Choros e Canções temos um monte de gente legal, aqui de Santos, o Rogério Duarte, o Edinho (Schmidt) o JR (que agora é Mano Jota) no Entidade a gente conseguiu um pessoal que têm carreira internacional. O André Mehmari no piano em uma faixa e o Siqueira Lima em outra. O Aleh Ferreira tocando em três faixas; Mateus Sartori cantando em uma e o Lincoln Antonio tocando sanfona.
Somos fãs do Mehmari há muito tempo. Íamos a muitos shows dele. Num desses fomos conversar com ele e nos tornamos conhecidos. Um dia que ele veio tocar aqui em Santos e eu disse que a gente ia gravar um disco e gostaria que ele tocasse piano em uma faixa. Ele concordou na hora. Aí eu disse que não tinha verba e que íamos pagar com pão². (risos)
Naquele ano a grana do edital demorou uma eternidade. Quando finalmente saiu o dinheiro, mandei uma música e ele curtiu. Gravamos as bases e ele gravou duas versões em seu estúdio caseiro e me mandou de volta. Mas quando a gente ouviu resolvemos regravar a nossa parte em cima do que ele havia feito.
EM – E o Duo Siqueira Lima, como foi?
MC – O Siqueira Lima tem uma história interessante. Estávamos tocando em São Paulo e depois do almoço fomos tomar um café na Av. Paulista, em frente ao MASP. Estamos no café e cutuco a Débora e falo: “Ali tem um duo e meio de violão dos mais ferrados do Brasil”. Estavam o Siqueira Lima e o João Luiz, que forma o Brazilian Guitar Duo, com o Douglas Lora. Não nos conhecíamos, mas pedimos para tirar uma foto com eles. Um ano depois pintou o primeiro e único festival de violão de Serra Negra. Era num hotel legal e a gente foi. Era um fim de semana de final de Libertadores, Santos e Peñarol. Quando chegamos demos de cara com o Siqueira Lima. E a Cecília torce para o Peñarol. Aí rolou aquela brincadeira e tal. A partir daí nos esbarramos várias vezes até que veio o convite.
DG – Mas aí entra a Débora. A música que foi gravada não ia entrar no disco. E era uma das músicas que eu mais gostava.
MC – É que mandei duas músicas. Um baião e uma valsa. Mas eles entraram numa turnê européia que ia durar um mês e ficaram três. Atrasamos o disco inteiro para esperá-los. E se o André gravou no estúdio dele, o Siqueira Lima gravou ao vivo com a gente. E aí foi foda. Sou fã deles. Antes de conhecê-los já tinha disco, etc. Quando começamos tocar eu nem olhava para o lado. Estava com dois monstros ali. O Fernando escreveu um arranjo lindo. Cada dedo começou a pesar quinhentos quilos. Foi um dia lindo. Depois saímos para almoçar. Essa é a história.
EM – Como nasceu o álbum Entidade?
MC – Fazíamos um curso de arranjo e regência com o mastro da Orquestra Sinfônica de Santos, o Luís Gustavo Petri (Guga). Um dia não pude ir ao curso e quando a Débora chegou o Guga perguntou: “Ué, cadê a entidade? É que vocês dois são uma entidade, né?”. Falei: “opa, isso dá música”. Fiz a primeira parte da música e mandei para ela fazer a segunda parte. Mas ela acabou não fazendo e fiz a segunda parte também E pouco antes de gravar fiz uma introdução meio louca, remetendo à Espanha.
EM – O álbum Canções de Amor Caiçara, não é do Choro de Bolso, é uma parceria sua, Canduta, com o escritor Manoel Herzog, mas teve um dedo da Débora também. Fale sobre esse trabalho.
MC – A parceria com o Herzog também começou na livraria de Santos. Quando completei um ano tocando na porta dessa livraria compus um choro sobre isso. O Herzog ouviu e perguntou se podia colocar letra. Eu disse sim e a partir daí a gente começou a fazer música com certa freqüência. Canções de Amor Caiçara surge como?
DG – É que a cidade é extremamente musical. Ela tem pontos interessantes. Tem história. A cidade de Santos é muito interessante. Então a gente estava andando na praia e falei que poderíamos fazer um disco instrumental sob alguns pontos da cidade. Tem os canais, que são históricos, tem as garças, a Vila Belmiro, os Morros, o Engenho dos Erasmos. Essa levou dez anos para crescer.
MC – Mas no meio do caminho pensei outra coisa. Isso não poderia ser um disco de música instrumental, tinha de ser cantado”. Aí veio a ideia inteira na minha cabeça: “O cara mora aqui em Santos, trabalha em São Paulo. Ele conhece a mina no ônibus e o romance acontece.” Quando contei essa história para o Herzog os olhos do cara pularam para fora. A primeira a ser composta foi Descendo a Serra, que é quando o cara conhece a mina.
EM - E como foram as participações do Zeca Baleiro e Chico Buarque em Descendo a Serra e Futebol na Praia, respectivamente?
MC – As quatro participações especiais, o Zeca, o Chico, o Carlos Careqa e o Alberto Salgado foram por causa do Herzog. Ele estava falando por e-mail com o Chico, que havia lido e adorado seus livros. Eles tinham esse contato. O Chico até chegou a gravar um vídeo elogiando os livros do Herzog. E o Zeca a mesma coisa. Então falei para o Herzog chamá-los para participar. De cara o Herzog hesitou, mas no fim chamou e eles toparam.
EM - Ambos os trabalhos foram produzidos com recursos públicos oriundos do Fundo de Assistência à Cultura de Santos (FACULT). Poderiam falar sobre a cidade ter essa possibilidade? Digo, sobre essas e outras leis de fomento à cultura.
MC – Veja, é muito importante. Estamos agora entrando em um estúdio para gravar um quarto álbum com o Julinho Bittencourt. O disco vais se chamar Pão de Cará. E também é FACULT. Na verdade é quase impossível você pensar em arte regional sem políticas públicas. Isso é de agora? Não, isso vem desde Johann Sebastian Bach, que era bancado por mecenas daquela época. Como fazer grandes festivais de cinema, música, teatro sem políticas públicas, sejam elas incentivadas ou não? Você não faz. E olha que o nosso Facult é genial, mas a verba é pequena. Por isso envolveu toda uma camaradagem, Siqueira Lima, André Mehmari, Chico Buarque, Zeca Baleiro que nunca cobraram nada. O Pão de Cará vai ter uma maior parte cantada e outra menos instrumental. Ainda quero fazer um disco esse ano só instrumental. Eu e Débora.
EM – Também gostaria de falar um pouco de política cultural no macro, em âmbito federal. Como analisam os quatro anos de governo Bolsonaro e com vêem hoje?
MC – Virou uma chave, né? Chegamos a ter um secretário de cultura, que na época nem tinha status de ministro, um nazista, como era o nome?
EM – Sim, Roberto Alvim.
MC – Isso, agora não mais. Sobrevivemos seis anos de terror. Agora está bem interessante. Começaram a pipocar trabalhos e editais que não existiam. Mas, também é assim... vamos ver.
EM – Estamos cada vez mais vendo mulheres instrumentistas no palco. Gostaria que a Débora comentasse.
DG – Sim, geralmente as mulheres estão somente atrás do microfone, cantando. Eu sinto falta. Vimos há pouco tempo um show da Luísa Mitre em que a maioria era de mulheres nos instrumentos, uma pianista, uma vibrafonista, uma flautista, um baixista e um baterista. Entendo quando as mulheres questionam os festivais com poucas mulheres no line up. Para os homens é difícil entender certos questionamentos porque sempre estiveram no papel de protagonistas.
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