terça-feira, 17 de maio de 2011

Os ecos do bandolim de Joel Nascimento fazem choro 3D


Texto: Eugênio Martins Júnior
Foto: Igor Daniel

O bandolinista Joel Nascimento é falante e conhece de música como quem viveu dentro dos estúdios nos últimos 35 anos. Sua discografia reúne mais de 20 trabalhos, incluindo as participações em discos de outros artistas. História invejável.
Tem risada fácil, mas não gosta de ser chamado de chorão. É músico, apesar de que sua trajetória muito tem a ver com o choro. Guarda aliás, algumas semelhanças com Ernesto Nazareth, um dos maiores nomes relacionados ao gênero criado no começo do século passado e que ele visita em Gotas de Ouro, em seu mais recente trabalho, o CD De Bandolim a Bandolim, parceria com Hamilton de Holanda. Em comum com Nazareth, a intimidade com o piano, a surdez e a característica peculiar da obra de ambos, localizada na fronteira do popular com o erudito.
Brejeiro, por exemplo, se executada ao piano é digna de qualquer sala de concerto. O mesmo pode-se dizer da Suíte Retratos, dissecada por Joel nas linhas abaixo.
Outra semelhança com Nazareth foi a sina de funcionário público. Os caminhos que os levaram a isso foram diferentes: o primeiro tinha filhos para sustentar. O segundo desgostou-se após ficar surdo por conta de uma doença degenerativa. Ambos tiveram o bom senso de retornar a música para nunca mais sair.
Nazareth, mesmo tendo o reconhecimento que merecia sofreu de problemas psicológicos até morrer afogado nas águas rasas de um córrego. Aí as semelhanças acabam. Joel está bem vivo e não foge de polêmicas. Solta o verbo, mas não perde o bom humor. Tem sempre uma história pra contar e antes de você falar que não dá mais tempo ele já está contando.
Joel veio a Santos em comemoração ao Dia Nacional e Municipal do Choro, 30/04. Tocou às 11 da manhã na praça Mauá e a noite no Teatro Municipal. Uma realização do Clube do Choro e da Secretaria Municipal de Cultura.
O dia anterior foi regado a muita cerveja. Começamos a entrevista ao meio dia e acabamos às três da tarde. O que deu pra publicar está aí, sem cortes.


Eugênio Martins Júnior – Houve um período que você diz que abandonou a música, mas a gente sabe que não se abandona a música simplesmente. Como foi isso?
Joel Nascimento –
Posso contar a história toda? Bom, comecei a estudar piano com 10 anos, despertei para a música através do filme de Chopin, A Noite Sonhamos, fiquei maravilhado com as Poloneses. Com 22 perdi um dos ouvidos em um processo irreversível e hereditário. Não dava para ser um concertista como eu queria, não ia conseguir. Abandonei muito triste, não dava. Você toca no grave aqui e o agudo mistura e você não ouve. Aí fui fazer um curso de técnica radiológica, prestei concurso e fiquei trabalhando com isso. Nessa época não tocava bandolim. Não sei como pegava no violão e tocava, pegava no cavaquinho e tocava. Não abandonei a música, abandonei os estudos da música. Depois dez anos meu irmão apareceu lá em casa com um advogado que tocava violão, já morreu. E ele: “Toca bandolim”. E eu chateado. Depois de muita insistência fui lá e peguei o cavaquinho com as cordas enferrujadas, passei uma palha de aço e toquei uma música com ele, que ficou maravilhado. Me convidou a participar das rodas de choro que ele tinha na Tijuca. O nome dele era Oraci. Passei a frequentar em 68. Essa roda contava com o Dino (7 cordas), César Faria, Déo Rian. 

EM – Só tinha cara bobo.
JN –
Pois é, e eu frequentando essas rodas de choro tocando cavaquinho. Isso era em 1969, um pouco antes de Jacob (do bandolim) morrer. Tinha um bandolim muito bom que ele mandou fazer sob encomenda e me deu de presente. A partir daí comecei a tocar bandolim nas rodas de choro. Só me profissionalizei em 1974.

EM – Como foi o desenvolvimento desse aprendizado?
JN –
Sinceramente, só fui estudar bandolim depois que disseram que eu tocava. O João Nogueira me descobriu, gostou de mim e eu gravei duas faixas com ele no disco E Lá Vou Eu. O produtor Adelzon Alves escreveu na capa do disco que estava lançando um bandolinista e tal. Fiquei conhecido como bandolinista e a turma me chamando pra gravar, só na EMI/Odeon tinha sete gravações para colocar bandolim. Pensei, vou ter de estudar. No meio de Dino, Paulo Moura, Geraldo Vespar. Mas a direção do estudo de música partiu do piano. Por exemplo, independência de dedos, escala, a pedagogia clássica, postura, encaminhamento, disciplina, tirei tudo do piano. Estudei métodos de violino, o resto veio de mim.


EM – Como foi o teu primeiro encontro com o Jacob do Bandolim?
JN –
O cavaquinista Souza, já falecido, que me levou. Chegamos lá às dez da manhã e ele estava de short com uma toalha no pescoço. Levei um cavaquinho e o Souza levou um bandolim igual ao dele. Fui muito bem recebido a ponto de sair de lá às seis da tarde. E ele com dois gravadores com rolo de fita, ele gravava tudo. Tenho a honra de dizer que A Santa Morena, que vou tocar hoje, fiz a terça. Ele disse que aquela ia pro arquivo dele. Peguei umas coisas dele. Peguei no violão e pedi pra ele tocar um choro, o Sempre Teu e começamos a tocar. E eu no violão fazendo uma porção de notas. Ele parou no meio e disse assim: “Quem é o solista, eu ou ou você?”. (risos). Ele falou isso pra mim de bom humor. Eu era um garoto, ele não ia me distratar. Eu entendi e continuei tocando. Agora, isso também leva a crer que o Jacob não seria um músico de câmara, não gostava de contraponto! Eu estava fazendo contraponto.



EM – Já que estamos falando em Jacob. Como ele influenciou sua música?
JN –
Outra coisa que ele falou que eu tenho que contar, conheci lá o Zé do Patrocínio, autor do Pardal Embriagado. Chegou o Velho, tocavas bem o bandolim, chegou o Evandro. Aí o Jacob disse assim sobre o Evandro: “Pô lá vem esse cara. Ele toca minhas músicas tudo errado”. Quando nós chegamos na casa dele, ele pediu licença para levar um amigo na estação e eu fiquei lá tocando e gravando. Quando chegou perguntou: “Quem é que está tocando, é o Jacob”. Fiquei maravilhado. A segunda vez que estive com ele foi em frente ao fórum, que ele trabalhava lá, estava eu e o meu irmão, e ele me convidou para ir à sua casa de novo. Na época era novo, uns 17 anos, e não me ligava muito nisso. Depois vi ao vivo e na verdade não me chamou muito a atenção. Nem a mim nem ao meu irmão, a gente conhecia de disco, mas ao vivo estranhamos aquele som. Gravação é um som preparado, um som ótimo, ao vivo é mais cru, mas ele foi o precursor da escola brasileira do bandolim. Na minha aula de bacharelado digo isso. O chorão pode tocar o que ele gosta, mas ele tem de ouvir tudo, ele é músico acima de tudo. Me sinto na obrigação de dizer certas coisas. Hoje você tem músicos que tocam choro que arranjam, escrevem, como Jayme Vignoli, Marcílio (Lopes), Josimar Carneiro, professor de universidade; Luiz Otávio Braga, professor de universidade, chorões. Esses músicos tem um lado cultural extenso. Aproveito e sou muito feliz de conviver com eles e aprender. É o caso de Radamés Gnattali que depois eu conto.


EM – Vamos a outra ponta da história. Como vê a música do Hamilton de Holanda? Ela representa a evolução do choro, se é que podemos dizer isso, ou a volta por cima desse gênero que possui mais de 100 anos?
JN –
Desde que eu me entendo o choro está aparecendo. O choro agora está em evidência, mas isso não existe. Ele sempre está em um patamar. É que vocês não prestam atenção. O chorão sempre se mantém ali. É obvio que antigamente se tocava mais choro, na época do Pixinguinha, é lógico que não tinha essa poluição sonora de música americana. Então, se tocava seresta, se tocava mais música brasileira em geral. A televisão que acabou com isso. Mas qual é a pergunta, mesmo? Ahh, o Hamilton de Holanda talvez seja o maior músico brasileiro. E como bandolinista não se fala. Só que ele, e isso é uma coisa que eu preciso ressaltar, toca um bandolim de dez cordas, não é um bandolim comum, mas também tocaria um de oito de uma maneira fenomenal. Ele me chama de professor e eu fico muito orgulhoso com isso. Dei uma aula em Brasília e ele se escreveu no curso e dei umas dicas a ele. Era muito novo, mas já tocando muito. Depois gravamos um disco e ele faz umas coisas que não é qualquer um que faz. Ele é gênio, o Hamilton é gênio. E outra coisa, ele não toca jazz, toca música contemporânea. Ele não toca choro, tem aquele conjunto dele, o violonista dele e o gaitista são jazzistas, mas eles seguem a linha do Hamilton, uma harmonia dissonante e contemporânea. E muito chorão não gosta daquele estilo, porque não percebe a profundidade. Mas é um músico com toda amplitude.  


  
EM – Você também tocou com o Egberto Gismonti. Fale um pouco sobre esse encontro.
JN –
É um músico que eu sempre admirei, fabuloso. E ele era contratado da Odeon na mesma época que eu. Certa vez ele foi convidado a fazer a trilha sonora de uma peça em Portugal, aí ele colocou uma valsa do avô. Ele pediu um guitarrista pra tocar, mas o guitarrista não conseguia tocar porque aquela música era com guitarra portuguesa e não dava. E o Mario Jorge que era o luthier dele sugeriu o meu nome. Um dia o telefone tocou em casa e era o Egberto Gismonti me convidando. Fui à casa dele e disse que ia pegar a partitura e ver qual tom seria o melhor para o bandolim e que ligava pra ele. O Sol menor era o melhor e ele fez os arranjos. Gravei no estúdio da casa dele, tinha um ventilador fazendo um barulhão e eu lá afinando e ele olhando e devia estar pensando: “Isso não vai dar nada”. Entrei em uma salinha com o barulho do ventilador e perguntei: “Egberto, isso aí vai ficar ligado?” Ele respondeu: “Isso eu tiro depois, na mixagem”. Ele colocou o playback e eu toquei. E ele ficou com os olhos marejados. Aí eu falei pra gente começar a gravar e ele disse pra eu não mexer em nada. Eu falei que tinha mordido uma nota e ele: “Depois eu endireito”. Aí ele me convidou para o Heineken Concerts, para tocar na mesma noite do John McLaughlin. Fizemos em São Paulo e Rio de janeiro, está no Youtube. Na platéia estava o Gilberto Gil o Caetano e tal. Peguei um autógrafo do John McLaughlin muito bonito no disco que ele me deu, falando das minhas qualidades como músico. Depois fiquei a tarde inteira tocando com ele no hotel. Tocamos bossa nova e choro e ele não saia do lugar. Mas tem uma musicalidade incrível.

EM – Você atuou como professor no Brasil e fora. Em Curitiba há uma Escola de Música Popular Brasileira, que parece que foi idealizada por você. Conta essa história. Como são essas aulas?
JN –
A Escola de Música Popular de Curitiba começou quando eu estava em uma apresentação da Camerata (Carioca) e estava almoçando com o prefeito da época, o Jaime Lerner. Aquilo bateu na cabeça dele. A mulher dele me disse que ele só pensava naquilo. Ele me pagou umas passagens para eu ir a Curitiba, me levava no Solar do Barão pra ver o lugar da escola. De repente o negócio ficou um branco, sem eu saber o Hermínio (Bello de Carvalho) fez um projeto tipo Berklee (College of Music, nos EUA)), muito caro. O Jaime achou inviável. E eu não sei porque houve uma divergência e eles deixaram de se falar. O Hermínio, em represália a isso escreveu um livro dizendo que a ideia foi minha e que Aquela escola deveria se chamar Aramis Millarch, um pesquisador de Curitiba. Hoje é uma coisa de primeiro mundo, mas estão botando jazz, estão deturpando um pouco. Antigamente quem dirigia aquilo ali eram pessoas ligadas ao choro e à música popular.  



EM – É claro que um músico com sua vivência há muito momentos memoráveis, mas eu destaquei dois e gostaria que você falasse sobre eles que é pra gente resgatar e eternizar essas histórias: O primeiro quando foi levado pela filha de Donga para gravar no LP "A música de Donga", juntamente com Elizeth Cardoso, Altamiro Carrilho, Abel Ferreira, Dino, Meira, Canhoto, Marçal, Jorginho do Pandeiro, Gisa Nogueira, Elizeu Félix, Luiz Paulo da Silva, Leci Brandão, Almirante e Paulo Tapajós, além do próprio Donga. E o segundo foi o lançamento do teu primeiro disco, Chorando Pelos Dedos, no Sovaco de Cobra. Sérgio Cabral escreveu que foi uma festa antológica.
JN –
Quem foi convidado para colocar o bandolim nesse disco foi o Déo Rian, mas ele não foi. Eu não era profissional, mas a Lígia Santos conhecia minha cunhada e sabia que eu existia, falou comigo. Então escolhi o repertório e quem produziu foi o Pelão. Aquele disco foi a minha primeira entrada em estúdio. Me vi de repente no meio desse pessoal que você falou aí. Meu deus, foi bonita a participação. Esse disco tem um som lindo, nesse bandolim que está aí hoje. A Elizeth (Cardoso) chorou. Foi gravado no estúdio da Copacabana, na Cinelândia, com todo mundo junto. Gravamos direto, não precisamos emendar nada, foi no primeiro take. A Elizeth fez playback depois. Eu não era conhecido na época, depois gravei e viajei com ela. E outra coisa, peguei o Donga vivo. Na época da gravação estive na casa dele, conversava. Quando a gente estava terminado o disco o Donga faleceu. Ele não chegou a ouvir.
Já o lançamento do meu disco foi em 1976, no Sovaco de Cobra, um dia de calor incrível no Rio de Janeiro. Pra você ter uma ideia, estavam lá o Sérgio Cabral, Clara Nunes, Beth Carvalho, Eliseth Cardoso, João Nogueira, Paulo Moura. Foi uma coisa antológica e a partir daí o Sovaco de Cobra virou ponto turístico do Rio de Janeiro. Virou o nosso ponto de encontro porque é o lugar onde eu moro. E o Seresterio que deu o nome ao barzinho de duas portas, Zé da Velha ia pra lá com o Silvério Pontes, meu irmão, Joyr Nascimento, que era músico. Era um moleque, morreu com câncer. Tem uma história dele, posso contar uma história do meu irmão?

EM – Claro.
JN –
Ele foi em uma seresta no morro e uma hora ele quis ir ao banheiro, aí tinha uma cortina e ele entrou lá. Aí sumiu. Demos por falta dele e ele estava lá embaixo todo sujo. Não havia banheiro, era uma rampa onde as pessoas faziam as necessidades. Ele escorregou ali e foi parar lá embaixo. Ele pegou um taxi pra ir embora e o motorista falou pra ele e o Zé que foi com ele: “ Pô, vocês não estão sentindo um cheiro de merda, não”. Ele dizia pro Zé da Velha: “Pode falar que sou eu”. Ele gostava de dar um tapa no beiço, ele e o Zé da Velha que bebe até hoje. Ele esteve comigo lá perto de casa há pouco tempo, ele e o Silvério Pontes, armamos um negócio lindo.

EM – Conta a história do Sovaco de Cobra.
JN –
O Sovaco de Cobra era um barzinho de um português que abria aos domingos , mas ele queria fechar ao meio dia, ele não visava lucro. A gente começava a tocar às 10 da manhã e saia de lá às duas da tarde. Ele podia ganhar um dinheirão e ficava enchendo o saco pra fechar. Têm várias reportagens sobre o Sovaco de Cobra. Tenho uma foto onde estão o Mozart de Araújo, o Dino (7 Cordas), o Jorginho. O bar ficou famoso por causa do Adelzon Alves, ele trabalhou muito tempo em rádio, foi produtor, marido da Clara Nunes. Ele que fez a Clara Nunes com aquela roupa de Iemanjá, aquela coisa. Ele tinha um programa na Rádio Globo chamado Amigo da Madrugada, hoje está na Rádio Nacional. Ele era produtor do  João Nogueira na época e o João me levou pra gravar duas faixas em seu disco. Aí ele colocou na capa que o disco estava lançando o bandolinista Joel Nascimento. Aí ele  falava no programa: “ Alô Joel do bandolim, alô Sovaco de Cobra”. Infelizmente um cara que era aposentado da polícia foi lá e registrou o nome que era um negócio folclórico. Armou um outro bar na esquina, em Vila Isabel, ele começou a cobrar e ninguém dava bola. Acabou com o Sovaco de Cobra. Eu falei pra ele que não ia apoiar, ele começou a botar jogo, mulheres, e aí a vizinhança... um picareta.

EM – Aparece no filme Brasileirinho.
JN –
Tu viu o filme brasileirinho!? Eu falo na porta do Sovaco de Cobra e fico até emocionado. Eu toco um Chopin ao piano, você sabe que por causa daquele prelúdio em Mi menor de Chopin veio uma moça da Polônia que veio ao Brasil me procurar. Ela está defendendo a tese sobre a influência Chopiniana no Brasil. Ela quer me levar pra Polônia, escreve pra mim por causa daquele filme.

EM – Você ainda toca piano?
JN –
Eu perdi muita técnica, mas ainda toco um pouco. Eu estudava doze horas de piano por dia, cara. Minha mãe levava o leite no piano e eu lá martelando. Era tarado.






EM – Como foi a sua parceria com o João Nogueira? Ele foi produtor de alguns de seus discos.            
JN –
Eu não era profissional. Estava em Paquetá e meu irmão sempre me levava nessas bocadas, Radamés, João Nogueira, arrumou aquele bandolim. Era mais velho que eu dois anos. O João Nogueira cantando Braço de Boneca, de Paulo César Pinheiro, meu irmão no violão e eu fiz um floreio no bandolim e o João ficou encantado e disse: “Vou começar a gravar essa semana e você vai gravar comigo”. Ele era o dono do disco e passou por cima do Adelzon. Aí toca o telefone da vizinha os caras da Odeon marcando o estúdio às nove horas da noite. Cheguei lá estava Dino, Geraldo Vespar, Paulo Moura, digo: “Meu deus, onde estou nesse meio”. A partir daí na Odeon já tinha sete faixas de bandolim pra botar e terminar as gravações. Porque o Zé Menezes dizia que não era bandolinista, ficou esnobando, naquela época só tinha ele. Mas Zé Menezes toca muito violão, cavaquinho. Comecei a ganhar por dia o que ganhava por mês. Como solista ganhava mais 20% e naquela época as gravadoras gastavam dinheiro. Meu estilo virou modismo porque comecei a gravar com sintetizador, piano elétrico em uníssono. Tem muita gravação que você não percebe. Tenho três novelas de Janete Clair com músicas arranjadas por Vespar.
Então, passei a tocar com o João Nogueira. O Violonista dele era o Guinga, fiz uma amizade grande com ele e ele fez a Valsa de Realejo pra mim. Gravei no meu primeiro disco. Ele não saía da Penha que o pai dele é de lá. O Cláudio Zoli que é cantor também, violão. E os ritmistas. Como o João era contratado da Odeon, propôs  a gravação do meu primeiro disco lá. A Odeon não quis aceitar, por que havia gravado um disco do Déo Rian que não havia dado certo. O João disse que faríamos uma coisa diferente. Gravamos Baden Powell, Chico Buarque, Tom Jobim e colocamos uma orquestra com arranjo de Geraldo Vespar. É uma perfeição em afinação e acabamento que Vespar é muito bom. Até hoje ganho dinheiro de direitos autorais na Alemanha, não é muito mais ganho. Já vendeu mais de oitenta mil discos. Não é essencialmente um disco de choro, mas é um disco de música instrumental.  O João Nogueira fez uma música pra mim que é Chorando Pelos Dedos que está no disco, muito bonita. Pô, foi ele que me lançou.

EM – Você tem contato com o Diogo Nogueira?
JN –
Um dia eu estava em um restaurante na barra e minha filha me apontou o Diogo Nogueira. Eu conheci o Diogo, mas depois que ele começou a cantar ficou pra lá eu eu pra cá. Fui lá falar com ele. Aí bati nas costas dele e ele ficou espantado. Eu disse: “Fui um grande amigo de seu pai”. Ele fez aquela cara e perguntou qual era o meu nome. Quando eu falei ele levantou na hora e me agarrou quase chorando: “Pô, meu pai te adorava”. Ele gravou um disco e chamou o Hamilton (de Holanda) e eu como participações especiais. Muita coisa da carreira do pai dele tinha ligação comigo. Eu e o Guinga fazíamos arranjos. Há uma foto antológica com o João Nogueira, o Cartola, eu e o Guinga cabeludo. O jornalista não pôs o nome do Guinga na legenda porque não o conheceu por causa do cabelo. (riso).

EM – Você tocou com o Paco de Lucia ou não? Conta direito essa história?
JN –
Eu não cheguei a tocar com o Paco de Lucia. Nós estivemos juntos, almoçamos juntos, bebemos cerveja. Ele tocou no mesmo festival que eu toquei, na Córsega. Foi ali que Rafael Rabello que estava comigo se transformou em Paco de Lucia. Ele se vestia com roupas espanholas, o cabelo era igual ao do Paco. Ele até gravou um disco de Tom Jobim “espanholado”. Ele acompanhava o Nélson Gonçalves espanholado. Depois o Rafael fez amizade com ele. Mas eu não toquei com ele, a imprensa que inventa essas coisas. Com o John McLaughlin toquei extraoficialmente, no aparatamento do hotel em São Paulo. O Egberto não colocou a gente pra tocar juntos. Tocamos na mesma apresentação do Egberto, mas não juntos. Muita gente confunde. Toquei com o Rafael Rabello na Rádio França pra toda Europa, o cara me obrigou a tocar piano. Tive de estudar um pouco, mas disse pra ele cortar quando eu fizer um glissando e ele começava a falar. (risos)

EM – Como surgiu a ideia de gravar um disco com o Hamilton de Holanda, o De Bandolim a Bandolim? Como foi a escolha do repertório?
JN –
Existe uma admiração mútua. Acho que foi o Hamilton que deu a ideia. Ele diz que a ideia foi minha. (risos) O nome do disco quem deu fui eu. Não foi escolhido o repertório, só as músicas clássicas. O Vivaldi, o Bach, a coisa mais linda do disco, ele toca perfeito. É a única música com três instrumento. O Hamilton toca o violão baixo. A gente foi tocando. Gravamos lá na barra. O título foi inspirado na música do Jacob, de Coração a Coração, muito bonita. 

EM – Mas você não disse que não gosta de misturar popular com clássico?
JN –
Espera aí. Eu não gosto de deturpar a música. Nós gravamos o original. O que eu não gosto é você pegar o Bach e botar no choro. Eu não faço isso porque toquei música clássica e é uma obra de arte que não deve ser mexida. Vai botar o que ali, porra, vai fazer arranjo? Desculpa a expressão (risos). Vou explicar tecnicamente pra você o que muita gente não sabe. Chorão não deve saber (risos). Beethoven escreveu pra bandolim, (Igor) Stravinsky escreveu pra bandolim, Vivaldi, Mozart, bandolim não é brasileiro. Bom, então Beethovem escreveu uma sonatina para piano e bandolim. Então eu peguei a parte do piano e o Hamilton fez o bandolim de dez cordas integral. Não pé arranjo, mudou só o instrumento. E o bandolim é o original.  A única coisa que mudou foi o timbre que em vez de piano é um bandolim de dez cordas que dá extensão pra tocar. Depois gravamos Vivaldi que aquela parte já é escrita pra bandolim, o primeiro movimento. E gravamos uma ária de Bach que eu ouço muito com o (Vladimir) Horowitz. É Linda. Aí comecei a pesquisar e vi que dava pra nós dois tocarmos integralmente, só faltava uma voz, que seria um baixo. Teve um jornalista que fez um boa crítica e no final diz que sentia falta de um acompanhamento (risos). Pô, como é que o cara pode dizer um negócio desse, será ele não viu que estava com acompanhamento? Ele ouviu falar que tinha dois bandolins e pensou em regional. Que ignorância.

EM –  Em vez de informar desinforma.
JN -
Por exemplo, eu toco Chega de Saudade com uma porção de notas diferentes. Tenho partitura com a música certa. Os cantores modificam muito. Tenho uma valsa que gravei chamada Valsa de Realejo, do Guinga, foi a primeira música gravada. Ele não saia lá de casa e fez essa valsa pra mim. Ele me deu a partitura e disse: “Essa eu fiz para o bandolim do Joel”. A Clara Nunes gravou e omitiu uma porção de detalhes e notas. É claro, a música instrumental, o cantor não percebe o dó sustenido, ele não dá, ele dá outra nota. Ele corta no meio da palavra. Aconteceu uma confusão uma vez com duas professoras. Uma era professora de música e de canto e a outra era só de canto. A professora de música disse ao aluno que estava errado o que ele estava cantando a de canto ficou na bronca, porque ela aprendeu como a Clara Nunes gravou. Voltando a Chega de Saudade, o Tom Jobim aceitou por que fez sucesso. Agora a música é cantada diferente da composição. Foi como a Rosa, a música do Pixinguinha que tem três partes. O cara que botou a letra omitiu algumas notas da terceira parte colocadas na melodia por Pixinguinha e são importantes e bonitas. O letrista tornou a música com a letra muito mais simples e tirou a arte da composição.  Funcionou porque a música é bonita: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa... pá, pá, pó, pó, pó, pó ”. Olha quanta nota tem aí.





EM – Qual é sua diferença com o José Ramos Tinhorão?
JN –
Eu não tenho bronca do Tinhorão. O tinhorão me botou na mídia. No Jornal do Brasil, o cara escreveu meia página sobre mim, mesmo falando mal estava divulgando. Posso contar a história?

EM – Pode. (risos)
JN –
É o seguinte, fui tocar com o Arthur Moreira Lima e o Rafael Rabello na sala Cecília Meireles. Vários jornalista foram convidados e o Tinhorão estava lá. Acabou a apresentação e nós fomos jantar, inclusive o Tinhorão. Ele me chamou de canto e falou que enquanto eu não tocasse choro ele ia falar mal de mim. Eu agradeci pela divulgação e ele ficou perplexo. Eu não sou de tratar ninguém mal. Tenho a fama de ser bonzinho. Tínhamos um amigo em comum o Dr. Valter que disse que o Tinhorão estava entendendo grego. Aí eu falei pra ele: “Pô Tinhorão, diante do teu conceito tu devia estudar guarani”. Disse: “Sou acima de tudo um  músico, sou obrigado a tocar tudo”. Muita gente não percebe , mas 95% dos discos do Jacob têm baixo acústico.  O Tinhorão não admite violino no samba. Disse a ele que nem caixa de fósforo é brasileira como você pode questionar sobre instrumentos brasileiros. Que coisa. O pandeiro é árabe. Não tem nada brasileiro.
Talvez ele escreva muita coisa por ingenuidade e mesmo falta de conhecimento. Reconheço como um ótimo escritor, pesquisador, um cara honesto, discordo dele em algumas coisas. Não vou dizer que é uma falta de dignidade, por que não acho que seja indigno, mas acho uma falta de consideração com o Tom Jobim ele colocar em um programa de televisão o Prelúdio em Mi  Menor de Chopin e depois colocar Insensatez e dizer que é plágio. Ele não entende de música, cara! O Tom se inspirava muito em Villa Lobos, Chopin, muito Bach, mas não era plágio. O cara tem de saber que a harmonia não é igual, a melodia não é igual. Insinua de longe, mas não é plágio. O Tom nunca reclamou sobre isso e nem tinha de questionar. Vai brigar com cara que não entende. Ele disse algumas coisas sobre mim, mas como assim? Ele não estava lá pra ver. Eu não fiz nada assim. Eu fiz um eco no disco e ele achou que era efeito, mas eu fazia no bandolim. Tem muita coisa que eu faço no bandolim que está escrito. Pra estudar. Não é efeito.  

EM – E a Camerata Carioca?
JN –
Comecei a amizade com Radamés Gnatalli em 1973 quando disse a ele que queria tocar a Suíte Retratos, composta por ele e dedicada a Jacob. Ela havia sido escrita em 1964 e estava esquecida. Uma música com orquestra e conjunto de choro. Eu que sempre gostei de orquestra e chorão não gostava dessa música, porque tinha cordas, radicalismo danado. Liguei pro Radamés e disse que era um bandolinista que gostaria de fazer a suíte e tal. Ele disse que eu podia pegar a grade, que é a partitura geral e a irmã dele desmembrou e deu a parte do solo pra mim. Ninguém tinha. Jacob tinha, mas levou pra sepultura, porque o Déo Rian procurou e não achou. O Radamés ficou maravilhado, era 1973. Aí eu percebi que o piano fazia parte da orquestra e que daria em um conjunto de choro. Eu não era profissional e deixei passar. Em 1979, eu já profissional, tive a ideia de pedir a ele a transcrição da orquestra para um conjunto de choro. A orquestra o que é que é? Violino uma voz, viola, violoncelo e contra-baixo. Em conjunto de choro fica um negócio camerístico. Aí que eu falo, não contribuí com o choro, contribuí para a nova formação o conjunto de choro. Peguei Rafael Rabello, Maurício Carrilho, Luciana Rabello, Celso Silva e chamei eles pra tocar. Ensaiaram pra caramba. Posteriormente, o Hermínio Bello de Carvalho após a gente ter gravado no meu disco, na EMI/Odeon, inventou o aniversário de dez anos da morte do Jacob, ficou Tributo à Jacob do bandolim depois que eu havia gravado . Ele me usou na EMI/Odeon e eu não sabia o disco era meu, não existia o nome Camerata. A EMI/Odeon proibiu, eles me mandaram um telegrama. A gravadora gravou e era obrigada a lançar, só que houve uma divergência entre o gerente de contrato e a produção artística. Depois de uma semana fui lá com o Hermínio e o cara queria que eu assinasse um novo contrato, olha a sacanagem. Ficou aquela polêmica. Eu já estava sob contrato. Encontrei com o Sérgio Cabral na rua e disse que havia lido no Globo que eu estava com problema com a gravadora. Naquela época ele era produtor da Warner. Eu contei tudo e ele me convidou. Eu ingenuamente , por amor à música, amor ao Radamés, amor ao trabalho eu topei. O advogado da Clara Nunes me disse que se esperasse dois anos ia ganhar uma nota preta, porque a Odeon descumpriu o contrato comigo. Nenhum músico hoje em dia renunciaria a isso. Ninguém. Essa é a minha indignação e isso nenhum deles conta. Isso aí nós fizemos o disco sem ser Camerata, fizemos três shows, tenho os programas. Fizemos Curitiba, São Paulo, sala Guiomar Novaes, e fizemos em Brasília. Depois disso tudo, o Hermínio sugeriu o nome de Camerata Carioca, ele foi produtor do disco. Foi lá na Warner fez o texto do disco e eu não vi, ele não me mostrou nada. Ele botou o nome do disco de Radamés Gnatalli, Camerata Carioca e Joel Nascimento. Pô, o disco é meu. O disco tem uma capa e o selo é outro. Qualquer advogado processava. Hermínio Bello de Carvalho fez isso comigo. Tem jornais que ele diz que fundou a Camerata. Ele foi muito desonesto comigo. Pode divulgar isso.

EM – Vocês romperam por causa disso?
JN –
Não, a gente tem uma amizade porque eu fui omisso e ele se deu bem. Eu sempre fazendo o que ele pediu, mas hoje vejo que me prejudiquei. Não ganho direitos autorais, porque na rádio diz assim: “ Vamos ouvir Radamés Gnatalli e Camerata Carioca”. Tá assim no disco, ele só fala na Camerata, mas ela não existia, era uma mentira. Isso é uma indignidade dele. Ele me evita porque sabe que está errado.

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