Texto: Eugênio Martins Jr.
Foto: Lancaster
Foi um dia difícil para subir a Serra do Mar aquele 18 de abril de 2018, dia do show da banda Blues Beatles no Bourbon Street, em sampa.
Dois acidentes, um aqui na Anchieta, ainda em Santos e outro na Imigrantes, um carro pegou fogo interditando a estrada até a chegada dos bombeiros, ambulância, Ecovias. Três horas de viagem.
Paciência não é um dos meus defeitos e achei que ia perder, de novo, a entrevista marcada com o Lancaster, inventor de bandas legais como Serial Funkers e Blues Beatles. Além de sua carreira solo.
O Lancaster é guitarrista das antigas, da segunda geração do blues brasileiro e se hoje o Vale do Paraíba está cheio de músicos - Flávio Naves, Marcelo Naves, Danilo e Nicolas Simi, Bruno Falcão, etc. - isso se deve um pouco ao seu esforço.
Baseado em São José dos Campos, desde a época em que a cidade não tinha ninguém tocando essa música estranha, o Lan, como chamam os amigos, tinha de ir para São Paulo estudar as malandragens do Albert Collins.
Três horas de viagem indo e voltando da metrópole mais congestionada e barulhenta do Brasil. O blues é cheio desses caminhos, encruzilhadas, estradas, viagens e viagens.
Hoje sua carreira conta com mais de 25 anos, seis discos solo lançados e mais participações em discos alheios e projetos diversos.
Seu mais recente trabalho, após dez anos sem gravar um disco de blues, Say Goodbye to Trouble, foi produzido de forma independente com base no blues de Chicago e com os parceiros Maurício Gaspar (bateria, Izao de Oliveira (baixo) e Edu Souza (guitarra).
Eugênio Martins Júnior - Como você começou na música e na guitarra?
Lancaster – Comecei estudando violão erudito mas parei e decidi que ia tocar guitarra. Não sabia fazer nem acorde, mas de cara montei uma banda. Tentei achar um professor que dava aula de rock, mas não existia. Estou falando de 80/81. Em São José dos Campos ninguém tocava guitarra elétrica. Achei um professor meio confuso e depois vim estudar no CLAM, em São Paulo, com o Conrado Paulino e depois com o Fernando Correia.
EM – Espera. Você vinha de São José dos Campos só pra estudar guitarra?
Lancaster – Sim, fazia uma aula e voltava. O pior disso é que a aula de cinquenta minutos era cinco da tarde da sexta-feira e eu gastava três horas pra ir e mais três pra voltar para São José. Daí voltei a estudar música erudita, contraponto e harmonia no conservatório do Brooklin. Vinha três vezes por semana a São Paulo e em 87 mudei pra cá. Nessa época a cantora Bee Scott me chamou para a sua banda de soul music. Eu já tocava blues nos bares de São José, com sequenciador, fazendo as bases, porque não tinha ninguém pra tocar comigo. Eu só tinha uns CDs do Albert Collins e BB King. Os caras da banda conheciam mais blues e me mostraram vídeos que nunca tinha visto. Então me apaixonei forte e fui fundo nisso. Em 1994 fui pra os Angeles estudar no IG&T, para ter acesso ao material.
EM – E nesse meio tempo o blues no Brasil explodiu.
Lancaster – Sim. Vi o show do André (Christovam) antes de ir pra Los Angeles, onde tive acesso a muita coisa. Voltei com duzentos CDs na mala. (risos)
Montei minha primeira banda e toquei no Nescafé & Blues em 1996. Fui selecionado porque a banda era muito forte, tinha seis metais, com o Proveta, o Gil, Nahor Gomes, Maurício de Souza, só os feras do sopro de São Paulo. Tudo por intermédio do batera Tuto Ferraz que ajudou a produzir meu primeiro disco e que hoje toca com o Max de Castro, Simoninha e um monte de gente. Um disco bem de iniciante, onde toco todos os estilos de blues do universo. (risos)
EM – Mas você se especializou no Chicago Blues.
Lancaster – É, o segundo álbum foi mais roots. Percebi que gostava de fazer ao vivo.
EM – Você chegou a fazer aquele “estágio” em Chicago como outros músicos brasileiros?
Lancaster – Não. Como fiquei só tocando blues nunca tive dinheiro pra ir aos Estados Unidos (risos). Sempre quis ter sopro na minha banda, mas percebi que os músicos brasileiros não gostam muito de blues e eu tinha de colocar sub toda hora e tive que desistir. Sempre detestei tocar em trio. Gosto de banda com muitos integrantes, aquela riqueza sonora e a guitarra aparece de forma pontual. Não fica tocando o tempo inteiro. Fui para o formato quarteto. Acho que o meu terceiro CD, de 1999, é o que todo mundo conhece mais, o Beatiful Day For the Blues.
EM - Say Goodbye To Trouble é um álbum vigoroso que mostra esse caminho do Chicago sound. Tem música em homenagem ao BB King, Otis Rush. Gostaria que falasse sobre ele.
Lancaster – Já tenho material pra lançar outro que é uma mistura de blues com reggae. Estou gravando há um ano e meio com a banda do Igor Salify, um cantor lá da Bahia. São composições em conjunto.
O Say Goodbye To Trouble é roots. Foi gravado no quartinho da minha casa. É de Chicago blues, com a guitarra bem limpa, gravada direto da mesa. Quando mostrava para as pessoas elas diziam que eu tinha de distorcer a guitarra pra ter aceitação. Cara, sempre fiz o que quis e não vai ser agora que vou começar a pensar com a cabeça dos outros. O som que estou buscando é esse e pronto. Não faz muita diferença pra mim. Você muda o som e vende vinte CDs a mais. Essa é que é a verdade (risos). Tenho que dar uns pulos fora do blues pra ganhar uma grana.
EM – E caímos nessa pergunta. Você é um criador de projetos, fundou a Serial Funkers, tinha uma dupla de música eletrônica com o Flávio Naves, e agora o Blues Beatles. Foi a forma que achou para não depender só de blues?
Lancaster – Antes tinha uma banda com músicas autorais chamada Today. Foi nessa época que conheci essa galera (Blues Beatles). Consegui um patrocínio para gravar a banda seis meses lá no meu sítio. Nos intervalos o Viana pegava o violão e começava a cantar Beatles e achei a voz dele linda. Daí começamos a brincar com algumas músicas deles que já são blues. Aí pensamos em fazer algo assim porque Beatles já traz um público. Do que a gente mais sofre no Brasil? Por mais que seja desconhecido, um estrangeiro que venha tocar aqui toma o nosso lugar nos festivais e ainda ganha mais do que você. A Blues Beatles foi uma maneira de contornar isso e ainda levar mais público do que qualquer gringo. No exterior estamos ganhando cachê que esses caras que vêm pra cá nem sonham. E isso por causa do público que levamos. E na verdade, o Blues Beatles é uma banda de blues que toca Beatles e não ao contrário. Porque todo mundo é blueseiro pra caramba.
EM – O que você pensa sobre esse negócio de trazer um músico que nos Estados Unidos toca em boteco e aqui é vendido como a revelação do Blues?
Lancaster – Brasileiro tem a tendência a achar que o que vem de fora é melhor. Mas tem muita coisa boa vindo. Eu mesmo fui influenciado pelos grandes artistas que tocaram aqui no Bourbon Street.
EM – Voltando ao Blues Beatles. A trajetória da banda está em ascendência, vocês acabaram de voltar dos Estados Unidos e Europa. Como foi nesses lugares?
Lancaster – Sim. Fizemos uma turnê curta nos Estados Unidos, três shows. E ficamos quase um mês na Dinamarca com nove shows. Na recente turnê os Blues Beatles passaram pela Dinamarca e foram muito bem aceitos. No final dos shows formavam filas. E cada show que fizemos gerou mais dois ou três outros para esse ano. A Blues Beatles vai voltar agora em agosto, entre 18 e 25 para uma série de shows. Tem um que é um congresso internacional que é para vários produtores culturais e promotores de eventos. Imagina a quantidade de contatos que esses caras vão trazer de lá. É muito legal a seriedade deles. Eles te dizem que vão marcar uma data e marcam mesmo. Hoje é meu último dia na banda, mas eles vão continuar porque é um projeto muito vencedor.
EM – Porque vai sair?
Lancaster – Vou tocar os meus projetos pessoais. Lançar a carreira da minha filha que está cantando também. Em junho e setembro eles voltam aos Estados Unidos pra uma turnê, participando de festivais em New York e Tennesse.
EM – A tua filha canta o quê? Como é o nome dela?
Lancaster – É Ana Maria. Ela está sendo convidada por outros artistas. Um pessoal gostou dela cantando. Ela compõe também. Gosta de soul e pop. Gravei umas coisas com ela.
EM – Qual é o cuidado que vocês têm quando pegam uma música dos Beatles e modificam? Acho que tem duas coisas. Não fazer igual, porque já foi bem feito. Porém, fazer diferente, mas de forma original.
Lancaster - O segredo é soar natural. Nós pegamos as levadas de blues que gostamos e testamos pra ver qual música dos Beatles encaixa. Mas tem de tomar cuidado para não perder o impacto da música original. Por exemplo, nosso maior sucesso na internet, A Hard Days Night, toquei na forma original e é muito sem graça. Se você modifica aquilo ali, coloca uma coisa instigante, dá a impressão que você melhorou a música. Agora se você pega Why My Guitar Gentle Whips, que tem um solo perfeito não dá pra mexer. Nunca vi ninguém fazer melhor do que eles. Aí está mexendo na música errada. Tem algumas que eu morro de medo de mexer. A única que a gente mudou muito foi Yesterday, mas o fãs gostaram. É um risco tremendo porque o fã dos Beatles não gosta que mexa na melodia básica. E uma coisa que é muito legal, o Viana não imita nem o John Lennon e nem o Paul McCartney, ele canta com a própria voz.
EM – Sendo um dos pioneiros do blues no Brasil. Como vê a cena hoje?
Lancaster – Acho que em 1999 e 2000 foi a melhor época para o blues. Lembro de olhar na minha agenda e ter treze shows em um mês. Não era com banda de soul, funk, nada. Era carreira solo, show de blues. De lá pra cá teve altos e baixos. Não acho que está tão bom. Em São Paulo não tem tantos locais pra tocar. Que pagam um cachê razoável.
EM – Festival não conta?
Lancaster – Tem um número maior de festivais, mas alguns acabam. Fazem um ano, dois e no terceiro acaba. Grande parte dos festivais acabam por que as pessoas que fazem são amantes do blues, não são profissionais. Tem de ser um pouco mais frio na hora de pensar. Se uma banda foi um sucesso ano passado, porque não repetir esse ano? Ah, só daqui a cinco anos. Lá fora os festivais repetem os nomes. Deu certo? Traz gente? Por que não repetir. É um negócio, gente. Outra coisa são as pessoas amantes do blues que levam os festivais nas costas mesmo.
EM - Na primeira vez que te pedi uma entrevista você me perguntou se eu era um daqueles xiitas do blues. Fiquei intrigado, o que significa isso? Tem alguma coisa a ver com o teu trabalho eletrônico ou com o disco Bluesamba?
Lancaster – Sabe o que acontece? As pessoas tentam te colocar em uma caixa e definir você. Quando toco blues faço do jeito tradicional, mais do que muita gente. Então as pessoas não conseguem entender como um cara que toca da maneira tradicional pode produzir um disco de música eletrônica. Eu gosto de tudo, em casa ouço música erudita mais do que todas as outras. Mas quando toco o blues tenho o sentimento muito forte. As coisas são de verdade. Mas não acho que tenha de escolher uma coisa e ficar só nela. Me recuso a fazer isso. Tenho inspirações. Componho músicas românticas para cantoras. Soul, baladas.
EM – Mas houve alguma cobrança?
Lancaster – E não foram poucas vezes. Falaram em programa de rádio, me criticando. Não toco pra músico. Eu quero tocar do coração. O maior trunfo que tenho na vida é me apaixonar pelas coisas. Quando vi o Viana cantando Beatles a voz dele me inspirou. Veja, nossos ídolos fizeram isso. Nos anos 70, com o aparecimento do soul, do funk, a carreira do BB King foi completamente pra esse lado. O Freddie King se envolveu com o pessoal do rock. Acho que a partir do momento que você fica copiando as coisas não está sendo fiel àqueles caras que são os teus ídolos. Eles mesmos não copiavam ninguém, estavam sempre fazendo coisas novas.
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