4ª Mostra Blues de Santos
Texto: Eugênio Martins Jr
Fotos: Tiago Cardeal
Porém, há sete anos dedicando-se exclusivamente aos bends, trinados e tongue blocks, Abdo também compra e vende amplificadores, microfones, conserta e customiza gaitas, dando aulas do instrumento para interessados em todo o Brasil.
Além de tudo isso, todas as segundas sextas-feiras do mês mantém uma jam session com músicos profissionais e amadores no Tchê Café, em São Paulo.
O projeto é similar às blues jams que acontecem nos bares da Califórnia, estado chave no desenvolvimento da harmônica cromática no blues e que Abdo visita regularmente.
A banda oficial é sempre a Abdo Blues Band, que faz a abertura e as boas vindas. Depois os jammers começam a ser chamados e a blueseira pega fogo. Todo músico que chega na casa coloca o nome na lista dizendo se é cantor ou qual instrumento toca. Os times são montados ali mesmo e ao subirem ao palco tocam entre três e cinco músicas. O legal é que muitos dos músicos nunca tocaram juntos e têm a chance de improvisar ali na hora. Músicos do interior de São Paulo, Chile e Estados Unidos já passaram por lá.
Além de músico hábil, que canta em português e mostra em seus discos algumas das técnicas criadas em Chicago e a Califórnia, os dois berços das harmônica blues, Abdo é um profundo conhecedor da gaita cromática e de seus personagens de São Paulo e Rio.
Ele esteve aqui em Santos com sua banda, Mr John (guitarra), Victor Busquets (bateria) e Pedro Ferreira (baixo), dentro da 4ª Mostra Blues de Santos produzida por mim e pelo Sesc, onde ministrou uma oficina sobre a história e técnicas da harmônica, fez um show baseado no seu mais recente trabalho, Plano B, e concedeu essa entrevista.
Eugênio Martins Jr – Como foi parar no Blues? Já começou direto na harmônica?
Márcio Abdo – Não. Queria ser guitarrista como o Jimmy Page do Led Zeppelin. Em 1986, aos 16 anos e com toda aquela cena do rock nacional, vi um cara tocando bateria e fiquei fascinado, logo comprei uma. Entrei num conservatório e comecei a tocar rock nacional nos bailes do bairro, mas ficava com inveja dos meus amigos guitarristas que ficavam na linha de frente. Quando se é jovem você quer tocar para impressionar a mulherada. Aos 19 anos conheci o Paulo Carvalho, um tremendo baixista que já havia ido aos Estados Unidos e que tinha uma banda de blues chamada Blues Dogs, ou alguma coisa assim. Ele também tocava saxofone, então vendi a minha bateria e comprei um saxofone e iniciei meus estudos de blues no saxofone. Esse cara me levava aos shows de blues no Bixiga, no Café Piu Piu, existia uma cena forte de blues em São Paulo. Comecei a curtir mais blues, mas nunca deixei o rock and roll. Um dia liguei a televisão e vi uma banda de blues com um cara tocando o que eu nem imaginava que seria uma gaita. Na hora percebi que aquele era o som que estava buscando, o saxofone tinha algo semelhante, mas a gaita gritava e chorava, era isso que eu precisva. Contei pro Paulão que tinha visto um cara tocando um negócio que parecia a bunda de um ventilador. Ele: “Cara, isso é gaita”. Gaita? (risos)
EM – Quem foi que você viu na TV?
MA – O Blues Etílicos. O Flávio Guimarães, o Otávio novinho com camisa de surfista e tal. Eles estouraram com o discos Água Mineral e San Ho Zay e vinham muito pra São Paulo. Comecei a acompanhar a agenda desses caras que geralmente iam ao Centro Cultural Vergueiro, ao Aeroanta, onde tocou muita gente famosa da época e em outros lugares da cena.
EM – Você, por exemplo, usa a cromática pra tocar blues no Brasil. E também conhece muito a história do instrumento e seus personagens. E teve passagens com alguns deles, fale um pouco sobre isso.
MA – Era difícil ter acesso a informação quando comecei. Precisava arrumar um professor de gaita. Na rua 24 de maio existia uma casa de instrumentos musicais linda, a Casa Manon, que tinha gaita de tudo quanto é modelo, alguns nem existem mais hoje, muita gaita mesmo. Comprei a minha primeira gaita diatônica de corpo de madeira e no mesmo balcão tinha lá um cartão escrito "Aulas de gaita com Omar Izar". Na minha opinião, o melhor timbre de gaita cromática do Brasil e um dos melhores do mundo. Liguei pra ele e disse que queria aprender a tocar gaita blues. Ele disse que sua especialidade era gaita cromática, mas poderia me ensinar o básico da gaita blues. Tive apenas três aulas e como na época não tinha interesse em cromática, sai em busca de um outro professor. Anos mais tarde, Omar foi o cara que me ensinou a afinar gaita blues. Ele foi o gaitista que mais apareceu na televisão antigamente. Quando falei que queria aprender a tocar gaita, minha mãe já disse logo, “tem o Omar Izar”.
Depois das aulas iniciais descobri outra loja, a Irmãos Vitalle, e lá tinha um cartão escrito: “Kley Willians, professor de gaita blues e cromática”. Ele dava aulas na 24 de Maio, ao lado do Teatro Municipal. Nunca esqueço, número 35. Quando cheguei ele me pediu pra tocar e disse que eu não fazia os bends. Perguntei o que era aquilo, não imaginava o longo caminho que tinha pra percorrer. Era um inferno aprender os bends. Consegui um afinador e ficava naquilo o dia inteiro. Um dia meu irmão mais velho abriu a porta no quarto e disse: “Ô meu, joga isso no lixo. Vai tocar violão. Vai aprender outra coisa. Isso aí parece um pernilongo bêbado”. Foi meu primeiro incentivo. Ele se formando em engenharia, cinco anos mais velho e eu tatuado querendo ser músico. Me formei em jornalismo para agradar a minha mãe e porque gostava de escrever. Então o Kley Willians, que na verdade era o Zezinho de Lima, e hoje, aos 93 anos, mora em Peruíbe, foi o meu segundo professor de gaita e quem me abriu os olhos para o universo do blues. Ele havia ganho um prêmio da loto e pegou uma pequena bolada, comprou uma casa em Peruíbe, viajou para a Europa pra conhecer a fábrica Hohner, comprar gaitas e parou de dar aulas.
Naquela época não existia internet e a gente demorava muito para descobrir as coisas, um tempo depois, em 1991, conheci o Clayber de Souza, um dos grandes improvisadores da gaita cromática do Brasil. Comprei uma gaita cromática e comecei a estudar com ele. Na segunda aula o Clayber me convidou pra ser um dos monitores do método de ensino dele. Tinha muita coisa a aprender ainda e tive muitas aulas já nesse sentido.
Nelson Barbosa também dava aula no Largo do Paissandú, ao lado da igreja, ao lado do prédio da polícia federal que desmoronou recentemente. Lá ele formava pequenas orquestras, que era a onda dele. Tocava harmonetta como ninguém, ele tocando tango na harmonetta era uma coisa incrível. Mas quando iniciei meus estudos na gaita ele já havia falecido.
EM – Teve a história com o Ulisses Cazalas também.
MA - O Ulisses me ajudou muito. Era do sul, membro da Orquestra de Harmônicas de Curitiba e dei sorte dele vir morar perto da minha casa, lá na Vila Matilde. Na época eu tinha um caminhão e já tocava. Sempre quis aprender a consertar gaita. Perguntei se ele me ensinava a consertar gaita e ele disse sim. Disse ainda que se eu não tivesse dinheiro pra pagar as aulas ele me ensinava de qualquer jeito. Viramos muito amigos. Todo sábado ia a sua casa. Ajudava-o a vender seus métodos de gaita blues para as lojas de instrumentos de São Paulo. A gente saia direto, fomos ao show do Flávio Guimarães no Bourbon Street, na época tinha o Mr Blues, outra casa de blues de São Paulo. No final ele voltou pro sul e morreu por lá. Fiquei muito triste. Ele foi como um pai pra mim.
Tem também o Haroldo Gonçalves lá de Osasco. Conheci no início dos anos 90 quando fui fazer aulas com o Clayber. O Haroldo é uma pessoa incrível, sempre disposto e animado. Tomamos muitos conhaques juntos e falamos horas e horas sobre gaita. É sempre muito bom estar com ele, sempre aprendo histórias da gaita e da vida . Ele continua consertando gaitas e tocando.
Na Lapa existia um lugar chamado Tendal onde todos os sábados tinha aulas de gaita gratuitas. Era um galpão com uma sala enorme, um monte de gente aprendendo a tocar gaita. Lembro que tinha dois professores lá, mas não me recordo os nomes. Um deles tinha apenas uma parte de um braço, mas segurava a gaita do jeito dele. Lá conheci um japonês que já fazia o cromatismo na gaita diatônica, pedi pra ele me mostrar como fazia aquilo e e ele me enrolou. Tinha um senhor cego com um timbre fantástico de gaita cromática e um super ouvido.
EM – Você falou de São Paulo. E no Rio?
MA - No Rio acredito que ninguém gravou gaita cromática antes de Edu da Gaita. Acho que ele foi o pioneiro da gaita no Brasil. A maioria dos gaitistas mais velhos dizem que escutaram o Edu da Gaita. Ele também não lia uma nota musical. Mas nos anos 40 já tinha coisa gravada. Gravou o Moto Perpétuo de Paganini com aquelas milhares de notas que o músico tem de tocar em um tempo mínimo. Uma loucura. Ouvi falar que o Edu passou onze anos estudando aquela música. Tudo de ouvido e quando resolveu gravar teve até equipe de reportagem para registrar. Não me lembro direito, mas que quando ele estava na 17ª tentativa um jornalista derrubou uma máquina de escrever no chão e o desconcentrou bem no final. Parece que conseguiu na 38ª tentativa.
Depois do Edu da Gaita apareceram outros caras como o Manuel Xisto - mais conhecido como Fred Willians - Maurício Einhorn e o Rildo Hora. E no blues tivemos os pioneiros Zé da gaita, Carlitos Patrone com a banda Atlântico blues e o mestre Flávio Guimarães.
MA – Eu não cheguei a ver tocar, mas já fiz muitos consertos de gaita para o Mazinho, Marco Aurélio, de uma banda chamada SS 433, que era blues rock. Parece ter sido o pioneiro da gaita blues em São Paulo. Depois veio o Paulo Meyer na banda expresso 2222, um dos primeiros que vi tocando em São Paulo, junto com o Fernando Naylor, o Dr Feelgood, que tocava com o André Christovam e depois com o Nasi. Mas o Flávio Guimarães, sem dúvidas foi o cara que abriu as portas da gaita blues no Brasil. A segunda geração veio com o Sérgio Duarte, o Vasco Faé, Flávio Vajman, o Ed Blues, da Calibre 12, uma das bandas paulistanas mais antigas. Essa nova geração começou a viver de gaita e dar aulas. A partir daí foram surgindo tantos outros nomes e me incluo nessa terceira geração de gaitistas paulistanos. Fiz aulas com o Sérgio Duarte, ele conheceu o James Cotton, o Willian Clarke e aprendeu muita coisa com os caras, principalmente na questões de embocadura e timbre. Foi o Sérgio que me empurrou para o mundo do blues e me abriu muitas portas. Produziu meu primeiro CD, o Na Melhor Hora.
EM – A tua escola de blues é Chicago, West Coast ou as duas coisas?
MA – Acredito ser as duas. Meus estudos e referências estão voltados aos gaitistas de Chicago e Califórnia. Em Chicago tem a old school com os dois Sonny Boys (I e II), os dois Walters Little e Big Horton), Junior Wells, James Cotton, Jerry MacCain, Carey Bell. Esses caras são os reis. Na Califórnia a old school é George Harmonica Smith que, na minha opinião, foi o mestre da gaita cromática no blues e que deixou um legado de grandes gaitistas naquele estado. Se você analisar, hoje temos na Califórnia a nata da gaita blues. Além do falecido Willian Clarke, temos Rod Piazza, Mark Hummel, Gary Smith, Rj Mischo, Kim Wilson, Rick Estrin, David Barret e Aki Kumar.
EM – Qual é a melhor hora para a cena do blues nacional? Hoje ou há 20 anos?
MA – Acho que há vinte anos, hoje e sempre. Há 20 anos não faria o que faço hoje. O disco Na Melhor Hora foi lançado em 2011. Tenho muita satisfação de escutar esse disco. Tem solos que eu coloquei da melhor forma naquele momento. O Plano B lançeu em 2015 e já tem sonoridades bem diferentes.
EM - Você acha que está acontecendo uma renovação?
MA – Ano passado pude constatar em uma viagem para a Califórnia que o público de blues de lá é composto por pessoas mais velhas. Acredito que os músicos e público não estão se renovando na proporção que deveria, tanto lá como aqui no Brasil. A gente percebe que isso vale para todos os outros estilos musicais. O mundo está mudado e caminha de forma esquisita com relação à música.
EM – Sem citar nomes, hoje temos uma linhagem de gaitistas de todo tipo no Brasil. Você acha que a gaita blues brasileira atingiu uma linguagem ou são todos imitadores?
MA – Hoje percebo que tem uma galera aqui no Brasil que formou uma linguagem. Pode até soar como alguém lá de fora, não tem como fugir disso. Não vai tocar nada a mais do que o Little Walter, Sonny Boy ou gaitistas da Califórnia, mas colocam elementos brasileiros dentro de um estilo que é americano.
EM – Estávamos há pouco no boteco falando sobre as mudanças na música. Você teve a idéia de gravar dez vídeos que acabou virando um CD. Hoje é mais importante fazer música e mostrar no Youtube do que gravar um disco?
MA – Com toda certeza, a imagem hoje é muito mais importante do que a música em si, infelizmente. As pessoas não compram mais só a música. Elas consomem músicas que estão acopladas a algum movimento, moda ou visual. Por isso tantos artistas estouram na mídia sem ao menos terem gravado um único CD. Com apenas um vídeo na internet conseguem atingir a fama.
Tinha algumas músicas novas e me ocorreu a idéia de gravar alguns vídeos como material de divulgação com um time novo. Mostrar como o projeto Blues PraPular Brasileiro funciona no palco. Foram quase seis horas de gravação. Gravar com imagem é bem mais complicado. Se você erra não dá pra refazer apenas onde houve o erro, tem que tudo de novo.
EM - Por quê o nome Plano B?
MA – O plano A era gravar apenas os vídeos. Mas quando fui na técnica gostei do resultado. É um disco totalmente ao vivo ,sem emendas e correções. Só fizemos mix e master. Achei a execução muito boa. Por isso coloquei o nome de Plano B.
EM - Você também dá aulas e conserta gaitas pra viver. Viver de blues no Brasil engloba tudo isso?
MA – No meu caso sim, eu não vivo de blues, vivo de gaita. Conserto, dou aulas, toco e compro e vendo gaitas, microfones e amplificadores. Se eu não fizer tudo isso fica difícil. Pouquíssimos no Brasil conseguem viver de gaita, mas com certeza o Brasil é atualmente um dos maiores consumidores de gaita do planeta. Acredito termos mais amantes de gaita no Brasil do que nos Estados Unidos.
EM – Gostaria que falasse sobre a importância de ter um bom timbre, já que você sempre enfatiza isso.
MA – Little Walter como tantos outros mestres da gaita blues deixaram um legado de timbres. O Omar Izar me disse que estudava timbre há muitos anos. Tem um DVD do Gary Smith que ele mostra muitos microfones e amplificadores, mas ele enfatiza: o som está na sua boca e na sua garganta. Você tem de moldar a sua musculatura, a tua forma de respirar para produzir volume e som de qualidade, para depois colocar em um bom microfone e amplificador. Minha opinião é que a gaita tem basicamente sua construção feita em cima de latão. Se você não se preocupa em tirar um bom timbre estudando embocadura e respiração, vai ter um som de lata. Vai ser um latista e não um gaitista. (risos)
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