Margareth Menezes (Ministra da Cultura) e Lula
Texto: Eugênio Martins Jr
Foto: Ricardo Stuckert
Quando Aldir Blanc Mendes nasceu, em 02 de setembro de 1946, no Rio de Janeiro, o mundo já estava se livrando do cheiro de pólvora da II Guerra Mundial e o Brasil do Estado Novo de Getúlio Vargas. A Terra era redonda.
Apenas 16 dias após o nascimento de Aldir a constituição de 1946 que assegurava o direito de voto para presidente, deputados e senadores foi promulgada. Desse lado do mundo, o Brasil começava a respirar ares democráticos.
Mas a mesma Constituição, alardeada como liberal, trazia alguns problemas, restrição dos analfabetos ao voto, exclusão dos trabalhadores rurais aos direitos trabalhistas e reforma agraria incompleta, o que anos mais tarde traria sérios problemas ao presidente empossado legitimamente, João Goulart, deposto em 1964 por um Golpe de Estado apoiado pelas elites, meios de comunicação e Estados Unidos. Mas a Terra continuava redonda.
Na metade da vida, quando completou 37 anos, em 02 de setembro de 1983, Aldir Blanc já era compositor consagrado ao lado de seu principal parceiro, João, um dos maiores violonistas e cantores do Brasil, o Bosco.
Ao longo da década de 70, João e Aldir não só compuseram canções, eles construíram a crônica diária dos brasileiros, com a sensibilidade de quem repara nas coisas da vida do cidadão comum. E mais, ressaltaram os personagens africanos e aspectos do folclore nacional: Incompatibilidade de Gênios, De Frente Pro Crime, Tiro de Misericórdia, Escadas da Penha, Mestre Salas dos Mares, Corsário, Linha de Passe, Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, Falso Brilhante, O Bêbado e a Equilibrista, hino que precipitou a anistia de centenas de brasileiros desterrados com o Golpe de Estado que depôs João, o Goulart, em 1964. Mesmo com os militares, a terra ainda era redonda.
Curiosamente, também em 1983, Mary Sá Freire passou a tomar conta do Vida Noturna, bar em Niterói homônimo à composição de Aldir e Bosco, cujos itens do cardápio eram batizados com os versos de O Bêbado e a Equilibrista¹.
Casaram em 1988 e viveram até receberem juntos a notícia que estavam com covid-19, em 2020. Mary sobreviveu, mas Aldir Blanc não resistiu, morreu em 04 de maio.
Só que nessa época, a Terra, que sempre foi redonda, passou a ser plana e um dos maiores compositores brasileiros passou a ser um zé ninguém. Aldir Blanc não recebeu nenhuma homenagem do governo brasileiro constituído desde 2018. O governo de Jair Messias Bolsonaro.
Coube à classe artística apontar a falta que faria Aldir e celebrar a sua vida e obra. O mesmo desdém para com outros artistas foi observado ao longo do mandato de Jair terra plana: Beth Carvalho, morta aos 72 anos, em 30 de abril de 2019; João Gilberto, aos 88 anos, em 06 de julho de 2019; Morais Moreira, aos 72 anos, em 13 de abril de 2020; Elza Soares, aos 91 anos, em 20 de janeiro de 2022; Marilene Galvão (Irmães Galvão), aos 80 anos, morta em 24 de agosto de 2022; Rolandro Boldrin, 86 anos e Gal Costa, 77 anos, mortos no mesmo dia, 09 de novembro de 2022; Erasmo Carlos, aos 81 anos, em 22 de novembro de 2022. Nem uma menção, um tuit, uma lembrança, nada.
Presto aqui uma singela homenagem a todos esses grandes artistas.
É certo que nenhum deles era simpático ao governo que promoveu a maior, mais sistemática e virulenta guerra cultural contra seus artistas, cientistas e professores em toda a história do país. Mais do que isso, contra seu próprio povo.
Mas o silêncio da maior autoridade do país, aquela que tem por obrigação resguardar seus símbolos nacionais, e o maior deles é a cultura, já que dela deriva a identidade de um povo, foi estrondoso. O homem que vendeu a imagem falsa de patriota provou que odeia a cultura de seu país.
A essa altura vocês se perguntam: “mais política, Eugênio?”. Sim amigo, a música brasileira é resistência. Ou você acha que foi fácil para o Cartola? Para Dona Ivone Lara? Para Clementina de Jesus e Elza Soares? E além do mais, é preciso estar atento e forte, não é verdade Gal?
E, além de uma celebração a uma das músicas mais belas do mundo, feita pelo povo e para o povo, uma forma de arte comparada à literatura russa, às mais belas sinfonias europeias, ao jazz norte americano, esse texto também é um protesto.
Contra a política genocida do governo Bolsonaro e os políticos brasileiros em todas as esferas. Contra a elite econômica e oligárquica, mantenedora do status quo vigente no Brasil. Contra os cinco canais abertos da TV brasileira que sempre optam pelo lucro fácil e por manterem seus privilégios econômicos por meio do monopólio, apoiando governos e atos totalitários quando lhes convém.
A maior emissora do país que detona governos em detrimento de seus interesses, incorpora sua programação ao grande balcão de negócios que virou a “indústria do entretenimento”.
Esses conglomerados de mídia ditam as regras de quem aparece ou não na programação voltada às massas, ignorando a pluralidade de cultura brasileira, uma das mais ricas do planeta. Com seus programas de auditório medíocres, direcionados apenas aos artistas sob os grandes contratos das gravadoras coligadas, girando a roda da fortuna do sertanejo agro. Mais do que pop, agro is money.
Trata-se de uma homenagem aos artistas que construíram a nossa identidade cultural ao longo do século passado e ainda a constroem, diariamente.
É uma exaltação ao choro, ao samba, à bossa-nova, ao samba-jazz, ao baião, ao maracatu, à MPB desse país continental.
Muitas formas de arte musical, ritmos, batuques, moda de viola do interior paulista, guitarrada do Pará, funk carioca, xote do Nordeste, axé da Bahia, reggae e o blues - os dois últimos não são nossos, mas fazemos bem também.
Artistas que levam o nome do Brasil a todas as partes do planeta. A despeito de política, são os nossos maiores embaixadores. Mostram a outros povos a genialidade do brasileiro. Fazendo a música que cantamos e assobiamos todos os dias sem nos darmos conta, andando na rua, no ônibus, em casa.
Aquela música que nos toca aos ouvidos e, principalmente, ao coração. Melodia, ritmo e poesia preenchendo nosso duro dia a dia.
Ao morrer em plena pandemia de covid-19, que interrompeu a história de milhões de pessoas ao redor do mundo, Aldir Blanc deu o nome a uma lei que beneficiou milhares de artistas brasileiros de todas as vertentes.
Não sem muita luta. A Lei Aldir Blanc de apoio à cultura, apelido da lei nº 14.017, iniciativa da deputada Benedita da Silva, atendendo ao pedido da classe profissional que foi a primeira a ficar sem o sustento, quando as cidades e os estados pararam devido ao lockdown, proporcionou a muitos fazedores da cultura uma chance de subsistência, ainda que temporária, inclusive livrando alguns da fome. Literalmente.
Foi apenas um começo de reação contra o governo que desprezou a saúde da própria população e usou um vírus para fazer sua política nefasta.
O fechamento de casas de shows, teatros e bares deixou milhares de artistas relegados à própria sorte no biênio 2020/21.
Quando ensaiava uma recuperação em 2022, o setor recebeu outro golpe do governo que em quatro anos trocou cinco de vezes seu ministro da educação, quatro vezes o secretário de cultura e colocou um policial militar para cuidar das políticas culturais do país.
As leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo foram vetadas pelo presidente Bolsonaro sob a alegação de que impactariam negativamente nas contas públicas, enquanto a Câmara dos Deputados comandada por Arthur Lira e o Senado por Rodrigo Pacheco se lambuzam na orgia do orçamento secreto.
Diante dos bilhões distribuídos sem critério algum e que com certeza irão impactar a vida do país nos próximos anos, até partidos do campo progressista participaram da farra das emendas de relator.
Com Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil anunciando a reconstrução do Ministério da Cultura (MinC) o povo da cultura respira aliviado.
Nos anos em que governou o Brasil, entre 2003 e 2010, Lula foi responsável pelo fortalecimento do MinC, colocando o cantor, compositor e músico Gilberto Gil no comando da pasta.
Em 2002 os recursos para a cultura somavam R$ 770 milhões, após o primeiro mandato de Lula o orçamento chegou a ser multiplicado por cinco, atingindo uma faixa próxima dos R$ 4 bilhões em 2015, já sob o governo Dilma.
Gil e sua equipe implementaram o CPF cultural: Conselhos de Cultura em cada cidade e estado da federação, compostos por agentes culturais da sociedade civil e dos poderes locais, discutindo a melhor forma do uso de recursos; os Pontos de Cultura, visando o mapeamento dos locais e iniciativas culturais que poderiam e deveriam receber recursos públicos; e finalmente os Fundos de Cultura, de onde deveriam sair os recursos propriamente ditos para a implementação das políticas nas três estâncias, municipal, estadual e federal.
Um plano inédito foi criado para divulgar e orientar como todas essas pontes seriam construídas entre a sociedade e as respectivas Secretárias de Cultura. Em alguns municípios as atividades já estavam bem adiantadas quando Jair Messias chegou com seu rolo compressor.
Aqui em Santos, minha cidade, todas as etapas para a implementação do CPF foram vencidas e continuaram funcionando independentes da diretriz de Bolsonaro. Graças à forte cena cultural e o entendimento do poder público local de que toda linguagem artística é patrimônio dos cidadãos santistas, hoje podemos contar com políticas sólidas que já contabilizam muitos resultados positivos. Mas isso não aconteceu nas outras oito cidades que integram a Baixada Santista. Muito ao contrário, as outras prefeituras, que já não faziam muita marola pela cultura, botaram de vez o remo dentro da canoa. Aqui na Baixada só o que tem valor é cantor neosertanejo.
Agora reeleito, em seu primeiro discurso logo após o resultado das urnas confirmarem sua vitória, Luiz Inácio Lula da Silva acenou para a cultura como nenhum outro dirigente já o fez.
No seu primeiro discurso e no subsequente, em um trio elétrico na Avenida Paulista, Lula incluiu a cultura em suas falas oito vezes.
E como sabemos, cultura também é educação. Lula falou em “cultuarmos livros em vez de armas”, “que o povo brasileiro quer acesso ao teatro, cinema e aos bens culturais”, porque, segundo ele, “a cultura alimenta a nossa alma”.
Falou sobre o enfrentamento do racismo e preconceito. Sobre um Brasil onde brancos negros e índios tenham as mesmas oportunidades.
E falou enfaticamente em recuperar o Ministério da Cultura e os conselhos estaduais de cultura. E mais, que a cultura seja uma indústria geradora de emprego e renda.
A futura ministra da Cultura, a cantora baiana Margareth Menezes, de 60 anos, que assumirá o MinC em 1º de janeiro irá administrar o maior valor já destinado para o setor, mais de R$ 10 bilhões.
Para o ano de 2023, R$ 5,7 bilhões já estão incluidos no orçamento. Mais os R$ 3,8 bilhões da Lei Paulo Gustavo e R$ 1,2 bilhão para a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), financiadora de ações na indústria do audiovisual.
Para se ter uma ideia do desmonte, em 2022 último ano sob o governo Bolsonaro, o setor recebeu R$ 1,67 bilhão. Um forte contraste entre visões antagônicas sobre a cultura.
O dinheiro reservado para o orçamento em 2023 não deve ser destinado apenas aos que possuem influência e estrutura para participar de editais, mas sim, deve ser disponibilizado na criação de pontes para que os pequenos produtores atravessem o fosso da desigualdade. Cabe aos agentes do setor cultural ficarem atentos e cobrando. Porque, afinal, a arte é rebelde, é desbocada, é transgressora, é abusada, é de protesto, é crítica, é reflexiva. É tudo isso ao mesmo tempo. E por isso é odiada e perseguida pelos que a desprezam.
Ela pode ser linda, mas também pode ser feia. Pode vir do luxo ou do lixo (Joãozinho Trinta). A arte pode ser tudo. Só não pode ser covarde.
É isso. Disse tudo. Abraços
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