Entrevista: Eugênio Martins Júnior
Texto: Fábio Cezanne
Fotos: Jeff Janczewski
Com apresentações pela Europa, América do Sul e Estados Unidos, o contrabaixista e compositor capixaba Andrey Gonçalves vem alçando invejáveis vôos no cenário do jazz internacional, temperando ainda mais o jazz contemporâneo com ingredientes brasileiros e iguarias capixabas. Radicado nos Estados Unidos há oito anos, onde cursa Doutorado em Jazz e Educação Musical pela Universidade de Illinois - instituição onde também ensinou práticas de contrabaixo e big band por três anos – Andrey mostra ao mundo o seu primeiro disco solo, Nocturnal Geometries, já disponível nas plataformas digitais.
Nestes oito anos lá na gringa, Andrey acumulou experiências tocando com Frank Gambale, Chuchito Valdés, Alain Broadbent, Willy Thomas e Denis DiBlasio, entre outros. Em orquestras, atuou com a Orquestra Cívica de Champaign-Urbana, Orquestra Sinfônica de Champaign Urbana, a Orquestra de Sopros Sacred Winds e a Milikin-Decatur Symphony Orchestra.
Nocturnal Geometries é composto por músicas que o baixista criou ao longo de um ano sob a orientação de seu professor de composição Jim Pugh, ex trombonista de Chick Corea e que atualmente toca com Steely Dan.
Utilizando técnicas modernas sugeridas por Pugh, a forma de composição conferiu aos temas uma roupagem mais contemporânea. “Nos anos de 2016, eu iniciei meu doutorado em Jazz e Educação Musical na Universidade de Illinois. Eu decidi fazer aulas de composições com extraordinário trombonista e professor Jim Pugh. Foi um processo de aprendizado muito bonito e pude desenvolver novas formas de comunicar minhas ideias e expandir os caminhos harmônicos e melódicos de minhas músicas”, revela Andrey.
“Durante um ano, eu compus todas as semanas, geralmente a noite, no silêncio do meu quarto. Era eu, o piano, o lápis e a partitura. Reparei que as técnicas que estava estudando tinham nomes ou conceitos geométricos: quadrad, pentatonic, ocatonic. Além disso, o silêncio noturno foi um elemento essencial para instigar a minha criatividade enquanto eu lidava com o caos e o estresse do primeiro ano de doutorado”, explicando o conceito e o título do álbum.
Dois anos depois, seus parceiros musicais abraçaram o projeto e a pordução teve inicio. Segundo Andrey, as sessões no estúdio foram rápidas, realizadas ao vivo, com a leitura à primeira vista. “Para gravar tudo ao vivo, foi um desafio colocar seis músicos na sala de gravação. Estávamos tão próximos que podíamos escutar as batidas do coração e a respiração de cada um”, comenta Andrey para, em seguida, ressaltar a experiência fantástica e um grande momento de comunhão musical, cada vez mais raros em estúdio.
Os arranjos, elaborados em parceria com o trombonista Ethan Evans, deixam o sexteto livre para promover uma fusão de música brasileira, jazz e ritmos caribenhos. Gravado em janeiro de 2019 com músicos ativos nas cenas jazz de Chicago, Utah, Detroit, West Virginia e Denver, o CD teve seu lançamento suspenso no ano passado por conta da eclosão da pandemia do coronavirus.
Atualmente, Andrey é professor de contrabaixo acústico e elétrico na Olivet Nazarene University ao sul de Chicago, na cidade de Bourbonnais, Illinois.
Eugênio Martins Júnior – Como se deu sua ida definitiva para os Estados Unidos? Foi para ganhar a vida tocando ou especificamente para estudar as formas de jazz?
Andrey Gonçalves - Me mudei para os Estados Unidos com a ideia de aprender a tocar o contrabaixo, porque eu só tocava baixo elétrico. Estudar jazz e “ganhar a vida” foram consequências de eu estar aqui. Eu vim aos Estados Unidos em fevereiro de 2012 para tocar com meu professor Fábio Calazans (guitarrista) no Festival de Jazz da Universidade de Louisville, no Kentucky. Durante o período que estive tocando por aqui, expressei meu interesse em fazer mestrado e aprender a tocar o contrabaixo. Depois da apresentação no festival recebi um convite para fazer mestrado em contrabaixo na Campbellsville University, também no Kentucky, com bolsa de 100%. Voltei ao Brasil, vendi minhas coisas, arrumei a papelada e voltei aos Estados Unidos para estudar.
Chegando aqui em agosto de 2012, notei que o mestrado era muito mais voltado para a música clássica. Aceitei o desafio e me joguei de cabeça. Foi muito bom porque aprendi a técnica do instrumento. Ao fim do mestrado, meu professor sugeriu que eu fizesse audição pro mestrado em jazz na Universidade de Louisville. Fiz a audição, passei e ganhei bolsa de 100% também. Foi lá onde dei meus primeiros passos bem firmes no aprendizado do jazz. E foi lá também onde conheci minha esposa, que é americana. Aí... a vida aconteceu e eu fiquei... rs
EM – Costumo dizer que a música instrumental é o patinho feio da música brasileira. E por que digo isso. Alguns grandes nomes do jazz brasileiro imigraram para os Estados Unidos para desenvolver sua arte. Airto Moreira e Flora Purim, Dom Um Romao, Romero Lubambo, Claudio Celso, Eliane Elias, Dom Salvador são alguns desses artistas. Você concorda ou discorda?
AG - Concordo. Existem artistas que precisam mudar de cena para conseguir ter foco naquilo que almejam para suas carreiras. Quando mudei pros Estados Unidos, eu tocava basicamente música pop: samba rock e pop rock. Quando reparei que não estava indo para onde eu queria na minha carreira resolvi apostar numa quebra com a minha realidade e começar minha trajetória profissional na música do zero novamente.
EM – A música é uma linguagem universal, nesse sentido, como se dá a integração entre as duas escolas de jazz, a brasileira e a norte-americana? Quero dizer, você chegou aí pra aprender, mas também tem muito a ensinar.
AG - A integração se dá pela disposição de fazer o som acontecer, de se comunicar e de ter paciência com quem está aprendendo algo novo. Se você tiver paciência de explicar o que você quer e onde pretende chegar com a música, acho que dá muito certo! Me comunico muito cantando as minhas ideias ou explicando através de referências fonográficas.
Sobre aprender e ensinar, eu sempre conversei sobre música brasileira com músicos daqui porque existe muito interesse pela nossa cultura. Um dia você está numa mesa de bar e, do nada, seu colega te pergunta sobre o Guinga, sobre o Toninho Horta, ou sobre o Egberto Gismonti. Aí a troca de informação é muito bonita e gera assuntos bem legais.
Em outras ocasiões, maestros de big band paravam ensaios e pediam pra eu explicar para meus colegas de banda como tocar bossa ou samba. É muito legal as pessoas reconhecerem em mim a autoridade de poder explicar a minha cultura. Ainda bem que nunca me pediram para eu dançar samba porque eu ia pagar mico! rs
EM – É que ouvindo Anna and the Moon e Tree of All Inventions, que são temas mais lentos e viajantes em contraste com Mancada (que já é uma gíria brasileira), um jazz batucada, fica a impressão dessa troca de ideias bacana entre os músicos.
AG - Anna e Tree são duas músicas que partem de ideias rítmicas brasileiras, mas não são música brasileira. Quando gravamos Anna, eu pedi ao baterista pra imaginar que tinha um bumbo de bossa ao fundo, mas deixei claro que não era pra tocar bossa. “Andy, imagina um bumbo de bossa ao fundo e improvisa uma balada jazz em cima.”
A ideia rítmica de Tree gera ao redor de uma ciranda e depois um frevo. Mas, isso não fica claro na música. Eu expliquei ao baterista o que queria e pedi pra ele tocar da forma dele.
Mancada é um samba duro mesmo, sem nenhum segredo (apesar de ter modulação métrica e 2 ½ compassos de solo de bateria na intro).
EM – Como você explicou para os gringos o que significa “dar uma mancada”?
AG - “Sabe o que fizemos nos primeiros takes daquele samba estranho? Pois é, aquilo foi uma mancada e significa que mandamos mal!” rs
EM – Chicago tem uma prolífica cena jazzística e é também a terra do blues elétrico. Gostaria que falasse sobre esse ambiente musical.
AG - Na verdade, eu moro a 2h30 min ao sul de Chicago. Quando vou lá, é para tocar, porque evito dirigir naquele trânsito doido. Então, chego em Chicago, toco e vou embora. Em raras ocasiões, vou lá para exposições em museus ou shows. Mas concentro mais minhas atividades em Champaign-Urbana, onde moro.
A cena de Chicago é bem diversificada, mas também muito tradicional. Tem gente de todo o mundo e isso traz diversidade para as manifestações culturais na cidade, mas nem sempre a cena está aberta às novas tendências musicais, isso acontece mais em Nova Iorque.
Os clubes de jazz focam, em sua grande maioria no jazz neoclássico e o estilo mais comum de se ouvir na noite é o Hard Bop. Alguns clubes mais alternativos estão abrindo mais espaço para as bandas de hip hop e os grupos de neosoul. Portanto, acho Chicago uma cidade muito importante na manutenção das raízes do jazz, mas que participa pouquíssimo na função de fomentar novas manifestações de jazz, encorajando pouco as novas gerações a inovar no estilo.
EM – Existe um bairro, ou um “quadrado” onde a cena jazzística da cidade se desenvolve atuamlmente? Por exemplo, há os clubes de blues de Chicago, o Kingston Mines, o Buddy Guy Legends, o Bluesd on Halsted. E o South Side Chicago ainda abriga uma cena forte de blues underground. Onde eu escuto o bom e velho jazz na cidade ventosa?
AG - A maioria das casas de jazz de Chicago ficam próximas à costa da cidade - Rio Michigan -, mas não no mesmo bairro.
Dentre essas casas, as mais tradicionais são a Green Mill, a Jazz Showcase e Andy’s. Todos esses bares ficam próximos. Se você estiver de carro ou metrô, é tudo bem próximo, 20 ou 30 minuto.
EM – Após oito anos vivendo no país que originou o jazz você lança seu primeiro trabalho. O que tem de brasileiro nele e o que você incorporou de todos esses anos aprendendo e ensinando música nos EUA?
AG - As melodias são o que há de mais brasileiro no álbum. Mesmo que eu tente fazer algo bem jazz, angular, bem curtido na tradição do bebop, minhas melodias acabam partindo de ideias que eu assobio enquanto caminho na rua.
A porção jazz mais óbvia incorporada na música diz respeito à harmonia, o arranjo e a instrumentação. Como esse disco é uma compilação de músicas que compus quando fiz a matéria Jazz Composition no meu doutorado, o disco tem muita influência também das técnicas que aprendi durante esse período, que fogem muito do jazz tradicional.
EM – Houve um atraso nesse lançamento devido à pandemia do corona virus. Aqui no Brasil estamos na eminência de uma terceira onda devido a falta de vacinas. Mas parece que a cena artística já está voltando por aí. Pelo menos são as notícias que a gente tem recebido.
AG - Aqui está tudo voltando ao normal. Toco em locais cheios de pessoas e todo mundo sem máscara. O meu município já atingiu a cota de 60% de pessoas vacinadas.
Este fim de semana passado, de 20 de junho, foi dias dos pais aqui. Eu, minha esposa e nossa filha de 4 meses fomos comemorar e almoçar num restaurante. Estava lotado, mas a sensação era de paz e segurança.
EM – Gostaria que falasse sobre o time que te acompanha nesse trabalho. É teu conjunto fixo?
AG - É o meu dream team! Rs. Todos os músicos que gravaram esse disco eram estudantes do programa de doutorado em Jazz Performance na Universidade de Illinois, com exceção do Ethan Evans, que estava fazendo seu mestrado. É um grupo de músicos que eu admiro muito e sempre tive vontade de fazer algum trabalho com eles. Quando pintou a oportunidade de gravar o disco, já sabia que eu os queria na banda. E a afinidade não era só musical. É um grupo de pessoas super agradáveis, que fazem o trabalho fluir com leveza. É uma galera que joga pra ganhar!
Atualmente, apenas o pianista continua morando aqui em Champaign-Urbana. O resto dos integrantes foram para outros estados para investir em suas carreiras acadêmicas.
Portanto, hoje o meu sexteto funciona da seguinte maneira: se for show local, eu toco com músicos locais. Mas se for festival de jazz que banca passagem de todo mundo, aí eu levo os músicos que gravaram o meu disco.
EM – Pra ouvir um álbum com os termos quadrad, pentatonic e octatonic precisamos ter antes aulas de geometria? Brincadeiras à parte, como se dá a fusão dos teus sentimentos com o mundo racional da matemática dos acordes e das escalas musicais?
AG - Eu gosto muito de padrões sonoros, viajo muito nos conceitos das escalas e na racionalidade da organização dos intervalos. Antes de começar a trabalhar em algumas das composições do Nocturnal Geometries, eu passei dias tocando a escala no piano e extrapolando os padrões de suas sonoridades.
EM – Você acompanha a política brasileira nos últimos anos? Como é visto o Brasil aí de fora? AG - Acompanho até onde consigo manter um nível de sanidade mental. Tá difícil!
Durante os meus 8 anos aqui, eu nunca vi o Brasil ganhar tanto espaço na mídia como atualmente. Sempre tem alguém que me pergunta sobre as insanidades que ocorrem todos os dias no meu país. Sempre tem alguém que compartilha um novo fato sobre o Brasil que até então eu desconhecia. Sempre tem gente falando sobre as loucuras dos bastidores da política brasileira. Portanto, o Brasil está sendo visto conforme a mídia o retrata: basicamente um país em constante convulsão.
Aqui o próprio Andrey explica faixa por faixa Nocturnal Geometries:
1 – Quadrad: “o nome vem de uma técnica que eu utilizei pra compor, você coloca 4 dedos posicionados aleatoriamente no piano e a partir dessas notas constrói-se uma escala sintética com modos e acordes. Quadrad começou como uma salsa, mas migrou para o que foi gravado”.
2 – This is Not a Blues: “meu professor me pediu pra compor uma música usando a pentatônica blues, mas a música não poderia ser um blues. Num fim de semana, fui visitar a tia da minha esposa em Crestwood, Kentucky. O local é paradisíaco, todo rodeado por mato e vida selvagem. Sentei-me na varanda da casa e comecei a esboçar umas ideias. Com 20 min a música estava pronta. Em 2018, quando estava fazendo uma temporada com um pianista em Ouro Preto, mostrei a composição e o cara leu e comentou “Nossa, isso soa muito como Art Blakey.” Acabei arranjando na estética do Art Blakey. Essa é a música mais “jazz tradicional” do disco”.
3 – Anna and the Moon: “Essa faixa a única que tem uma história longa a respeito dela. Também utilizou a técnica “quadrad”, mas simplifiquei bastante na concepção de melodia e harmonia porque queria uma balada mais melancólica. Usei essa faixa para homenagear uma enfermeira chamada Luanna. Em dezembro de 2018, fui visitar minha família no Brasil com minha esposa. Estava atravessando uma rua de Vitória com minha esposa e uma moto me atropelou. Fui parar na UTI com traumatismo craniano... foi foda. A minha sorte é que uma enfermeira estava passando na hora do acidente e me socorreu, chamou a ambulância. O nome dela é Luanna, nunca a vi, não sei como é o rosto dela... só sei que ela existe porque minha esposa me conta dela. Estou vivo por causa dela. O nome da música é uma “brincadeira” com o nome dela: Lua e Anna. Aí fiz de uma forma que fizesse sentido em inglês. O título também é um palíndromo, com palavras com 4 e 3 letras - Anna (4), and (3), the (3), Moon (4). Anna e Moon também repetem a letra do meio (nn - oo). Anna também é um palíndromo”.
4 – Waterfall for a Cubist Passion: “fiz essa música inspirada por uma pintura do Picasso que vi no Guggenheim de Nova Iorque em 2012. A pintura não representava uma fase clássica do Picasso, mas me marcou muito. Compus tudo como se fosse uma história de uma paixão, usando a técnica de through-composed (onde as seções da música raramente se repetem e seguem para uma nova parte). Essa música já estava arranjada para octeto há anos, mas adaptei para o disco. É a faixa que obtém mais comentários positivos do público”.
5 – The Tree of All Inventions: “Fiz essa música baseada numa ilustração que explica a riqueza da cultura brasileira. A ilustração é um totem com elementos que são muito peculiares à nossa cultura. A música em não tem nada de brasileira porque eu não queria soar tão óbvio. Preferi a inspiração para compor e, na hora da gravação, sugeri ao baterista que incluísse elementos da ciranda brasileira”.
6 – Ocatonic Lullaby: “eu tive que compor uma música usando a escala octatônica, uma escala simétrica de oito notas, às vezes organizada em meio tom e tom... ou tom e meio tom, o que confere um bem angular, duro. Peguei uma das formas de organização e fui analisando até quebrar o padrão e compor uma canção de ninar. Acho que compus essa música em 1 hora. Quando acabei de compor, tive uma sensação muito forte, liguei pra minha esposa e comentei “acabei de compor a canção de ninar pro nosso primeiro filho.” Sophia só nasceu em 2021, mas ela acompanhou o processo de mix e máster do disco dentro da barriga da barriga da mãe”.
7 – Mancada: “sambinha duro pra fechar o disco porque eu sou brasileiro e queria pelo menos ter uma faixa que fosse mais um “lugar comum” pra mim. Mancada foi composta usando fragmentos de frases e com a ideia de deixar bastante espaço pra bateria solar. Além da intro, que é bem chata de tocar, o “refrão” de Mancada tem uma modulação métrica entre 2/4 e 6/8 que entorta a cabeça de quem tenta tocar. Essa foi a única música que tivemos que repassar na gravação porque geral mandou mal na primeira passada... portanto, rolou a maior mancada no estúdio... rs”
A produção e todas as composições são de Andrey Gonçalves (Kopishawa Music).
Os arranjos são de Ethan Evans.
O álbum foi gravado em 18 e 19 de janeiro de 2019, no Unit One Studios em Urbana, IL.
Engenheiro de áudio: Derick Cordoba.
Mixado por Joe Corley, Pint Size Studios (Crystal Lake, IL).
Masterizado por John Tubbs, Jetman Music Services (Champaign, IL).
Fotografias por Jeff Janczewski.
Arte por Leonardo Zamprogno.
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