O blues nasceu muito longe, há muito tempo e é cheio de histórias, como os afluentes do rio Mississippi. Daria uma letra de música, não é verdade? Ou serviria de paralelo para uma outra história de vida.
Falo do Paulo Meyer, surfista das antigas e blueseiro da pesada. Gaitista, cantor e long boader. Nem sei se é nessa ordem. Malaco velho daqueles que conhece cada pico de surf do litoral de São Paulo e cada buraco de uma diatônica, Meyer foi um dos pioneiros da gaita blues por ter tocado na banda de Nuno Mindelis no início dos anos 90.
Esteve em momentos chave da história do blues no Brasa e conta algumas delas aqui: como trabalhou nos dois festivais seminais, Montreux Jazz Festival e Rio-Monterey Jazz Festival e ficou amigo do lendário Champion Jack Dupree, figuraça que andava por aí tomando birita e gastando dinheiro em diversão. E os anos passados em suas duas bandas, Expresso 2222 e Burning Bush.
Atualmente à frente da Thunderheads - Paulo Resende (bateria), Caio Góes (baixo), Alexandre Spiga (guitarra e voz) - com quem gravou Kombi 71 e Kombi 72, Meyer escolhe o repertório como quem escolhe as melhores ondas da série. Ambos com músicas autorais cantadas em português e inglês, trazendo blues, rock setentista e alguma surf music.
E numa época em que a juventude parece estar desconectada com o passado recente do país, Meyer também discorre sobre outros paralelos musicais e ideológicos. Porque Bob Dylan, compositor de músicas de protesto é cultuado em seu país e premiado pelo conjunto da obra com o Prêmio Nobel de Literatura enquanto Chico Buarque e Caetano Veloso vêm sendo achincalhados por parte da sociedade brasileira, aquela da meritocracia e do pato amarelo?
Leia as histórias do coroa – são tantas que ele vai e volta e a gente tem de ficar ligado - com a experiência de quem já surfou, já tocou, já viveu em tempos sombrios, um verdadeiro storyteller. Depois transforme sua história de vida em um blues.
Texto: Eugênio Martins Júnior
Foto: Paulo Meyer (divulgação)
Eugênio Martins Júnior - O que veio primeiro, a música ou o surf?
Paulo Meyer - A música como trilha sonora. Mas não com instrumentos musicais. No rádio, com Ciro Monteiro, Louis Armstrong, Elza Soares. E nos discos, Lamartine Babo, Judy Garland cantando Over The Rainbow. Aí vieram juntos a prancha de jacaré, de madeira fina, com o bico arrebitado e buracos para enfiar as mãos, nas ondas da praia de Itararé, em São Vicente. E as músicas do trio folk Peter, Paul & Mary. Tinha uns oito anos de idade, o ano era 1963 e passava férias de verão com minha mãe num apartamento alugado. Daí inventaram as pranchas de jacaré de isopor, mas nunca tive uma porque conseguia colocar a minha de madeira bem mais de lado na onda do que os garotos com prancha de isopor que iam reto.
Em 1969 veio uma nova trilha sonora na minha vida e um novo lugar com ondas e uma nova forma de surfa-las. Meu amigo Nini tinha uma casa em Itanhaém e uma prancha Surf Champion - as primeiras pranchas de espuma de poliuretano cobertas com fibra de vidro e espuma de poliéster feitas no Estado de São Paulo - lá na Prainha dos Pescadores. Ainda não havia outros surfistas para a gente olhar e ver como eles surfavam e ainda não tinham inventado o leash, a famosa cordinha. A trilha sonora da época era a Tropicália, Os Mutantes. Também faziam parte dessa cena, o disco triplo do Festival de Woodstock, o disco Abbey Road dos Beatles e os discos da banda Steppenwolf. Nesse mesmo ano de 1969 vi um show de rock no MASP com a banda Made In Brazil tocando Sympathy For The Devil dos Rolling Stones. Mais ou menos nessa época comecei a ouvir os blues de Lightning Hopkins e tudo misturado com Caetano e Gil, Cream, Janis Joplin, Jimi Hendrix e John Mayall e toda a trilha sonora daquela época maluca. No início dos anos 70 comecei a tentar tocar violão e tanto o surf quanto o blues ficaram cada vez mais importantes na minha vida. O blues estava presente na guitarra de Lanny Gordin, que tocava com Gal Costa, e na música O Meu Refrigerador Não Funciona d’Os Mutantes, no primeiro disco de Luiz Melodia. Havia muita influência do blues em algumas coisas da música popular brasileira daquela época, Jards Macalé, Jorge Mautner. Daí pra frente o estilo de vida era o do surf e a trilha sonora era o blues.
EM - Você conhece o pessoal do Quebra Mar aqui de Santos?
PM - Pegava jacaré em 1963/64 e nunca vi ninguém surfando de pé em uma prancha. Não ia a Santos ou São Vicente nos anos 70. Nessa época conheci em Itanhaém as pranchas feitas pelo Homero e pelos irmãos da Twin, mas nunca os conheci pessoalmente. Em 1975 voltei de uma viagem de surf pela Califórnia, México e Peru e conheci o Lequinho, irmão mais velho do Almir e do Picuruta, na praia de Pernambuco, em Guarujá. Ficamos amigos, conversamos sobre ondas, ele me contou sobre a Porta do Sol, e logo depois ele fez uma surf trip com alguns amigos de Santos a Ubatuba. Eu ficava direto na Praia do Félix e estava lá no primeiro dia em que meu amigo Claude, das pranchas Acqua, levou o Lequinho ao Félix. Ele se entocava de uma forma naqueles buracos, esquerdas, frontside para ele, do Félix de uma forma que nunca vi ninguém fazer, nem antes nem depois. Ele tinha uma monoquilha wing-pin que funcionava muito bem naquelas ondas tubulares, foi para mim um espetáculo de surf. Inesquecível ver o Lequinho, que hoje já está do outro lado da vida, surfar as ondas triangulares e tubulares do canto do Félix, que eram as minhas favoritas naquela época, mas eu de backside não me entocava tão fundo como o Lequinho fazia com a maior facilidade.
Das antigas conheço o pessoal Itanhaém, Guarujá e Ubatuba, que eram os lugares que eu frequentava. Recentemente através da música e do Facebook tenho contato com o Sidão, do website TemOnda, de São Vicente. Acho muito legal ele sempre tocar as músicas da banda Paulo Meyer & The Thunderheads quando faz suas transmissões ao vivo no Facebook. Tem no youtube um clip que ele fez em um dia de ondas muito boas na praia do Itararé, todo mundo na água mandando muito bem. A trilha sonora é a nossa música Hang Five.
EM - Como era o blues no Brasil nos anos 70 e 80?
PM - Nos anos 70 o blues estava presente, até um certo grau, na música d’Os Mutantes, nos discos Legal e Fatal da Gal Costa, com Lanny Gordin na guitarra, no primeiro disco do Luiz Melodia, na música do Jards Macalé e do Jorge Mautner. Nos anos 70, pelo tanto que eu tinha conhecimento, não havia "bandas de blues” no Brasil. A exceção era a banda Ave de Veludo em São Paulo. Imagino que havia outras bandas em outros estados, mas a gente não ficava sabendo. O (Carlos) Calanca do selo Baratos Afins lançou um LP da Ave de Veludo e outro chamado Bagga's Guru, mas eu só vivia nas praias e nem tinha conhecimento disso. Em 1975 comecei a tocar blues com meu amigo José Serra, irmão mais velho do guitarrista Cândido Serra, e com o Steve Baranyi. Nosso som era acústico, sem amplificação, tocava também com o pianista Silvio Gallucci, que foi quem emprestou a primeira gaita de blues para eu tentar tocar, na estrada, dentro da Kombi do Papiga, indo para Trindade, um vilarejo na praia, entre Ubatuba e Paraty. Nos anos 80 continuei tocando e só me lembro de duas coisas bem blues que me causaram impacto: a gaita do Zé da Gaita, numa música num LP do Lobão e uma slide guitar que ouvi no rádio do carro e até parei a Brasília para ouvir melhor de tão bom. Era o André Christovam solando na música Sem Whisky E Sem My Baby Me Jogo Embaixo do Trem. Não lembro se era com a Rita Lee ou com o Kid Vinil, só me lembro que era uma slide que nunca havia ouvido antes no Brasil. Antes disso, ou na mesma época, surgiu um cara com blues no nome, o Celso Blues Boy, mas a música dele que tocava no rádio era Aumenta Que Isso Aí É Rock'n'Roll. Os blues não tocavam no rádio. No final dos anos 80 apareceram dois LPs de blues, da banda carioca Blues Etílicos e o Mandinga do André Christovam. Em 1989 o produtor Cesar Castanho inventou de fazer um Festival Internacional de Blues no Ginásio da Cava do Bosque em Ribeirão Preto, com Buddy Guy, Junior Wells, Albert Collins, Magic Slim e muitos outros. As participações brasileiras foram justamente Blues Etílicos e André Christovam, e logo na sequência desse festival apareceram muitas bandas de blues brasileiras, inclusive a minha, Expresso 2222, e o blues pipocou aqui e ali e explodiu no Brasil na década de 90.
EM - Fale sobre as bandas Expresso 2222 e The Burning Bush.
PM – Carregava sempre uma gaita Höhner Blues Harp no bolso desde os anos 70 e a vontade de ter uma banda de blues e achar que isso seria possível só veio forte depois do Festival Internacional de Blues em Ribeirão Preto. Assisti todos os shows, durante cinco dias, e o Magic Slim tocou em todos. Em 1990 o Brother Bill me apresentou ao Nuno Mindelis e o acompanhei na gaita em alguns shows acústicos. Em uma apresentação com o Nuno na pracinha que tem na entrada do Sesc Pompéia um cara veio falar que queria formar uma banda de blues e rock, era o baterista Paulo Resende, tocamos juntos até hoje. O nosso primeiro ensaio foi no segundo andar de uma loja de roupas, no número 2222, da rua Teodoro Sampaio. Então encanei que o nome da banda tinha que ser Expresso 2222 porque a gente tocava a “música do trem” e essa música do Gil chamada Expresso 2222 tem uma coisa mística que eu achava bacana. O baixista era o Leo Richards, um sósia quase perfeito do Keith Richards, e o guitarrista era o Paulo Acedo, que hoje faz os excelentes amplificadores valvulados - eu uso um de 6 watts, o Acedo Áudio 276 – 12’). Tocamos na Feira da Vila Madalena, fomos a primeira banda a tocar no palco principal. Nossa primeira gig fixa foi num bar do bexiga chamada Dona da Noite. Chamei meu amigo Tarcísio Lopes (sax tenor) para participar do primeiro show, e ele acabou entrando na banda, que sempre teve essa formação: bateria, baixo, guitarra, sax tenor e eu cantando e tocando gaita. Durou de 1991 a 1995. As backings que ficaram mais tempo foram a Telma Lovato, a Alessandra Grani e a Marisol Jardim. Tocamos no Pour Quois Pas, Blue Note, Café Piu-Piu, Aeroanta e nas Feiras da Vila Madalena e Pompéia.
Depois que o sonho acabou para a banda Expresso 2222, o baterista Paulo Resende tocou blues em São Paulo por algum tempo, na Black Dog, e depois resolveu marcar shows em Ubatuba (SP) e Paraty (RJ) e me chamou para fazer vocal e gaita. Nossas apresentações no Café Paraty começaram em 1995 e marcaram a história musical da cidade, que hoje tem um fantástico Festival de Blues e Jazz. Mas em 1995 só Paulo Meyer & The Burning Bush tocavam blues e rock dos anos 60 e 70. A banda começou com o Paulo Resende (bateria), Fabio Zaganin (baixo), Marcelo Watanabe (guitarra) e eu. Eventualmente Mateus Schanoski no piano e mais tarde nos teclados. Fui apresentado ao Pete Woolley pelo dono do Café Paraty e desde então ele passou a participar dos shows, junto com o americano David Richards (sax) e Fábio Siri (guitarra). Gravamos o CD Cleansed In Muddy Waters, produzido de forma independente pela banda em 1998. E um DVD com o Pete Woolley, até que ele resolveu morar naquela outra dimensão da vida que todos nós iremos conhecer um dia.
EM – Você esteve presente nos lendários Festivais de Jazz de Montreux e no Rio-Monterey Jazz Festival, ambos em 1980. Deve ter histórias para contar.
PM - Trabalhei na equipe de produção dos dois festivais e conheci muitos dos músicos bem de perto. Fiquei bastante amigo de alguns, entre eles Champion Jack Dupree, Barney Kessel - ouvi a guitarra dele no rádio hoje, acompanhando a Billie Holiday - Raul de Souza, John McLaughlin e Jaco Pastorius. Não havia um bar no hotel onde poderiam rolar umas canjas noite toda, como haveria mais tarde nos Festivais Internacionais de blues de Ribeirão Preto, em 1989; no Ginásio do Ibirapuera, em 1990; e depois em todas as edições do Nescafé & Blues, no qual trabalhei em todas as edições. Todos esses Festivais foram produzidos pelo Cesar Castanho. A partir da segunda edição do Nescafé o Cesar pediu que eu indicasse uma banda de blues brasileira para tocar no bar do Hotel Transamérica, para eventuais canjas, e indiquei meus amigos da banda Calibre 12. O guitarrista era o Fabio Siri, que tocou muitas vezes na Burning Bush, minha banda nos anos 90. O trabalho nesses festivais é exaustivo. A gente pegava os músicos no aeroporto nos horários mais malucos e levava para o hotel, às vezes o voo atrasava e era a maior canseira, depois levava todo mundo para passagem de som, depois todo mundo para o show, várias pessoas na equipe, depois levava de novo para o aeroporto. Os momentos especiais de tocar com outras pessoas no palco foram talvez os mais inesperados e os que mais empolgavam. Dois momentos bem especiais que deixaram marcas na alma foram tocar gaita com a guitarrista/cantora Joanna Connor, que viveu em Massachussets e Chicago; no Jazz & Blues de Santo André e em outra ocasião com o Larry McCray, de Detroit, que estava no Brasil para fazer shows e também uma gravação com o Nuno Mindelis. O tecladista era o Tony Z que depois tocou com Buddy Guy. Outra participação inesquecível rolou num show meu com a banda Paulo Meyer & The Thunderheads num fim de ano na Praça da Matriz em Paraty. Convidei a argentina Julieta Burgos para cantar blues com a gente quando a conheci cantando em Trindade na noite anterior. Mas em matéria de jam session nada se compara ao time dos blueseiros do Brasil.
Em todos esse momentos de contato privilegiado com músicos incríveis, fiquei muito impressionado com a imensa tranquilidade, simpatia e humildade de BB King. Sempre disposto a conversar com os fãs com muito boa vontade. Naquela época, 1980, ainda não havia selfies. (risos)
Também achei muito curioso o estilo de vida do Champion Jack Dupree e um hábito peculiar que ele tinha sempre que visitava um país. Ele vivia na Alemanha e era dono de um nightclub e tinha uma sobrinha endinheirada, então toda vez que ele visitava um país trocava 1.000 dólares, o cachê dele era mais ou menos isso, em moeda local para ter dinheiro no bolso, beber cerveja à vontade, gastar à vontade e dar presentes para as pessoas que ele conhecia e das quais gostava. Quando ele ia embora, se sobrasse dinheiro, trocava em dólares o que havia sobrado, mesmo perdendo no câmbio. Só na União Soviética ele não conseguiu gastar muito o dinheiro e nem trocar o dinheiro russo. Era proibido comprar dólares, então ele comprou umas botas muito lindas de couro, com pelo de algum bicho, que ele usava todo dia e um diamante que usava na orelha. Isso não era muito comum em 1980. Acordava cedo, fazia um workout de boxeador no quarto - seu apelido Champion veio do boxe - e às 10 horas da manhã já estava no escritório da produção tomando cerveja, dando risadas e contando piadas. Ele gostava de estar sempre no meio da garotada, das pessoas mais jovens, ele já tinha uns 70 anos de idade. Na sua apresentação no festival, só piano e voz, rolou uma canja com o Claude Nobs, organizador do evento, que tocou uma gaitinha de blues.
Antes disso aconteceram algumas coisas na minha vida, pessoas que me levaram ainda mais perto do blues. Em 1980 trabalhei na equipe de produção do Festival de Jazz São Paulo – Montreux, era a segunda edição, houve outra em 1978 - e fui a primeira pessoa a apertar a mão de BB King assim que ele chegou ao Brasil. Era a sua primeira viagem à América do Sul, ainda no aeroporto de Congonhas. Nessa ocasião conheci também o pianista Champion Jack Dupree. Havia nos anos 80 uma banda de blues bem underground chamada SS-443, eles eram baianos, de Vitória da Conquista, mas estavam morando em São Paulo, o bandleader, cantor e gaitista era o Marco Aurélio, o Mazinho, eles só tocavam músicas próprias, tinham um compacto-duplo gravado e tocavam no Personinha, no Bexiga. Fiquei amigo deles e lá pelas tantas me deixavam participar do show que sempre começava às duas da madrugada. Eu tocava gaita, era uma canja, em uma música. (risos)
EM - Você está na cena há quarenta anos. Me fale o que é melhor e o que é pior entre a cena atual e daquela época.
PM - O que acho melhor hoje é que há uma qualidade técnica indiscutível entre os melhores músicos brasileiros de blues. Tem gaitistas que eu nem conheço que tocam maravilhosamente bem. Há músicos brasileiros tocando blues nos Estados Unidos e no mundo todo, como o Igor Prado, Artur Menezes, Celso Salim, a gaitista Sarah Messias, além de André Christovam, Big Gilson e Nuno Mindelis que já tocam fora do Brasil há muito tempo. E existe uma nova geração que tem excepcional domínio técnico de seus instrumentos e isso é muito bom. Creio que o pior hoje, comparando com a década de 90, é que não existe mais uma geração de fãs de blues. Eu era um deles que levavam seu amor por esse estilo de música a um nível quase místico. Para essas pessoas o blues era sagrado e cada show de blues era uma celebração, na qual o som do blues era o que nos unia.
O que havia de pior antigamente na cena do blues? Havia para as bandas a enorme dificuldade de registrar o trabalho musical, com imagens boas e nítidas e som de boa qualidade. Era difícil conseguir equipamento profissional e o que existia de equipamento amador era muito ruim nas apresentações ao vivo. E também as demos, que eram as fitas cassete, produzidas e usadas pelas bandas para tentar tocar em lugares melhores, que tinham que ser entregues "em mãos", eram uma desgraça. A sonoridade da minha banda Expresso 2222 só pode ser conhecida nas duas faixas do CD Blue Night Collection, da Gravadora Roadrunner, porque foram produzidas em estúdio. Quase todo o material daqueles anos ficou registrado em fitas cassete que não existem mais ou em apresentações em programas de TV que eram de boa qualidade, mas ficavam ficavam uma desgraça quando gravadas nos de vídeo-cassete daquela época. Isso nos anos 90, antes ainda, nas décadas de 70 e 80, nada sobrou de registro do som que a gente fazia na época.
E o que havia de melhor naquela época? A atmosfera de loucura e empolgação nos shows de blues em bares como o Pour Quois Pas, Blue Note, Café Piu-Piu e nos shows maiores para nós, o Centro Cultural São Paulo, por exemplo. Alguns deles em ruas e praças, feiras culturais como as da Vila Madalena e da Pompéia. E outros que para nós eram sempre megaeventos, hoje os shows são eventualmente maiores ainda, mas eu considero o público de hoje um tanto frio, se for para comparar com a loucura dos eventos do anos 90 e do Festival Internacional de Blues de Ribeirão Preto em 1989.
Outra coisa que aconteceu em 1985 foi o show do Buddy Guy e do Junior Wells no 150 Nightclub do hotel Maksoud Plaza. Quem trouxe foi o Cesar Castanho e foi isso que o possibilitou fazer os festivais de blues. Fui a esse show do Buddy Guy com minha mulher que estava grávida de nove meses, nosso primeiro filho nasceu dois dias depois - ficamos na mesa do meu amigo jornalista Luiz Fernando Vitral, que se empolgou bastante e resolveu fazer um programa de blues na Rádio Brasil 2000. Esse programa foi muito importante para a cena do blues em São Paulo, no final dos anos 80, começo da década de 90. Meu amigo adotou o nome de Brother Bill para fazer o programa de rádio e todo mundo que gostava de blues ouvia o programa do Brother Bill. Foi através da amizade com o Brother Bill que fiquei sabendo da existência do bar Jazz & Blues em Santo André, onde o André Cristovam já tocava há algum tempo com a sua banda, a Fickle Pickle. Creio que foi nesse bar que a cena do blues começou pra valer, no final dos anos 80. Fui lá com o Brother Bill e vi o show do André Cristovam, o Brother Bill me apresentou ao André e toquei gaita em uma música. Fui ficando cada vez com mais vontade de tocar blues pra valer. O que aconteceu logo a seguir quando conheci, também através do meu amigo Brother Bill, o Nuno Mindelis e toquei com ele como gaitista em alguns shows, meus primeiros como músico profissional. E logo a seguir, isso em 1990/91, comecei a tocar blues com a minha banda, a Expresso 2222.
EM - Você é fã de Bob Dylan, um dos compositores norte americanos mais respeitados do mundo. Aqui no Brasil existe um achincalhamento do Chico Buarque, Caetano e outros, como um artista mais experiente que passou pela ditadura vê isso?
PM - Essa é a pergunta mais instigante e inteligente que poderia ser feita a um grande fã de Bob Dylan que também acompanhou a carreira musical de Chico Buarque e Caetano Veloso, durante a ditadura militar e no tempo da redemocratização. Eu traço claros paralelos entre as carreiras de Bob Dylan e Chico Buarque e de Bob Dylan e Caetano Veloso, coisa que faço há décadas e vou tentar fazer de maneira sucinta na resposta a esta pergunta que tem uma imensa profundidade de significados. Tal como Bob Dylan, que veio antes em ambos os casos, Chico Buarque é um fantástico contador de histórias: “Para ver a banda passar cantando coisas de amor" tem imagens claras e líricas invocadas e reproduzidas no inconsciente de cada um que ouve a música Mr. Tambourine Man do Dylan) e Mr. Bojangles - que não é de Dylan. Dylan também é mais claro ainda que Chico Buarque na “defesa dos fracos e oprimidos e na denúncia da opressão e dos opressores", quando conta as histórias do índio bêbado Ira Hayes e do boxeador negro Hurricane, injustamente condenado à prisão. E também quando escreve e canta a música Masters of War, que é a maior denúncia que pode existir do sistema que nos mastiga, tritura e cospe fora. Engole e defeca continuamente nossas almas e nossas vidas. Blowin' In The Wind virou um hino contra todas as guerras como nenhuma outra música produzida no século 20. E, da mesma forma que Bob Dylan faz, Chico Buarque usa e abusa das poéticas e sublimes expressões idiomáticas que estão na boca do povo: "o que será que será?", "the times, they are a-changin' ". Já entre Caetano e Dylan existe o incrível paralelo da ruptura na carreira que o uso da guitarra elétrica trouxe: o que aconteceu com Dylan no Festival Folk de Newport em 1965, onde Bob Dylan foi hostilizado e vaiado por boa parte do público, por ter tocado plugado, eletrificado e ALTO, com a Butterfield Blues Band. A aconteceu o mesmo com o Caetano quando ele apresentou Alegria, Alegria no Festival de Música da TV Record, em 1967, com a guitarra elétrica de Tony Osanah. Tanto Caetano como Dylan tinham o status de "representantes da esquerda" no cenário musical. Caetano fazia musicas que a “juventude tradicional anti-ditadura" que gostava do CPC, aprovava. E de repente passa a usar guitarra elétrica, símbolo do imperialismo cultural ianque. Bob Dylan era considerado um cantor e compositor de músicas de protesto cultuadas por pessoas politizadas de uma geração em tempos difíceis e, subitamente, se vendeu à guitarra elétrica, identificada como ligada a interesses comerciais. Na minha carreira musical pessoal, sempre contei a história do blues que veio dos escravos negros no sul dos Estados Unidos e utilizou instrumentos da música européia, violão, piano, instrumentos de sopro, e também criou a "blue note" que é uma justaposição das escalas musicais africana e ocidental. Imagino que se eu for contar hoje a história do blues como sempre fiz, dando crédito aos escravos negros no sul dos EUA, é possível que ouça gritos de "B... 2018! Ou apropriação cultural. Considero isso uma desgraça, eu achava que o blues era uma forma de superar preconceitos raciais e culturais, pois pessoas de qualquer raça amavam e amam ainda hoje o blues. Mas nestes tempos de divisão e radicalismo tudo mudou, recentemente já fui até acusado de entoar hinos imperialistas por cantar músicas dos Rolling Stones ou sei lá de quem mais, quando tudo o que eu queria era paz e amor e superação de preconceitos de qualquer espécie. Os tempos seguem sendo cada vez mais difíceis, e eu sigo sendo cada vez mais um admirador da arte de Caetano Veloso e de Chico Buarque e principalmente Bob Dylan, e também sigo sendo cada vez mais fiel na minha admiração pelo autêntico blues em todas as suas múltiplas formas, inclusive no Brasil. The blues is alright.
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