Foto: Cezar Fernandes
Só mesmo em um festival como o Rio das Ostras Jazz & Blues, onde público, produção, imprensa e artistas convivem por cinco dias no mesmo local, poderia acontecer uma cena como a que será descrita.
O cantor e guitarrista de blues John Hammond, e sua mulher, Marla, seguiam um ritual todas as manhãs em que estiveram hospedados no hotel: sob o sol do Rio de Janeiro, bebiam café, fumavam cigarros e conversavam tranquilamente à beira da piscina.
Músicos brasileiros e gringos, todos, sem exceção, puxavam papo com o casal e ficam por ali, aproveitando a oportunidade de estar frente a frente com um dos maiores nomes do blues dos últimos 40 anos.
Foi numa dessas oportunidades, à beira da piscina, que consegui a entrevista exclusiva para o Mannish Blog com John Hammond e com Coco Montoya (ver abaixo). Também foi numa dessas que o gaitista Jefferson Gonçalves e o multi-instrumentista Kleber Dias protagonizaram um dos momentos mais bacanas da sétima edição do festival: uma pequena jam-session com os três músicos tocando How Long, o clássico de Leroy Carr. Jefferson na harmônica, Kleber no bandolin e Hammond cantando.
A coisa toda começou quando Jefferson presenteou o guitarrista com seu novo CD, Ar Puro, e Kleber Dias aproveitou pra mostrar um bandolin construído por ele. De quebra, Jefferson ainda conseguiu com que Hammond passasse a ser representante da fabrica brasileira de gaitas, Hering Harmônicas, nos Estados Unidos. O veterano bluesman pirou no som da gaita desenvolvida especialmente pela fábrica com a assinatura de Jefferson Gonçalves.
A Jefferson Gonçalves Blues Band apresentou-se duas vezes no Rio das Ostras Jazz e Blues, que aconteceu no balneário carioca entre os dias 10 e 14 de junho.
No segundo dia, mesmo com uma chuva torrencial a partir da metade do show, foi a Jefferson Gonçalves Blues Band que fez um dos grandes shows dessa sétima edição do evento. O repertório, baseado no Ar Puro, roubou a cena no Palco Costazul que tinha ainda como atrações o grupo Pau Brasil, que embora competente como sempre, não funcionou no palco grande e ao ar livre; e a banda do tecladista Jason Miles, com o DJ Logic.
No show do sábado, dia 13, na lagoa, a Jefferson Gonçalves Blues Band também arrebentou no palco da lagoa, mandando as clássicas Help the Poor, How Long, Crossroads, All Along the Watchtower, Room to Move e outras. Confira abaixo entrevista com Jefferson, que também foi na beira da piscina. Ehh, vida dura.
Eugênio Martins: Como foi o teu primeiro contato com a harmônica?
Jefferson Gonçalves: Comecei a tocar gaita com vinte anos, comecei até tarde, sempre gostei. Todas as bandas que eu escutava na época eram bandas de rock and roll, Led Zeppelin, Deep Purple, Jethro Tull, e o som da gaita era o que mais me agradava. Depois Bob Dylan e Neil Young, comecei na gaita pela influência do som folk e rock and roll, depois é que fui descobrir o blues mesmo.
EM: E depois a música brasileira misturada com blues.
JG: Eu nem digo que faço música brasileira, porque é uma mistura de ritmos. Harmonicamente eu continuo fazendo blues. Música brasileira o buraco é mais embaixo, tem tanta gente fazendo tão bem por aí, Hermeto, Carlos Malta, Quinteto Violado, são as minhas referências. Eu nem me atrevo muito nessa praia, busquei fazer só esse mix da harmonia do blues, que é a minha praia. Improviso pensando como se tivesse tocando blues. Não me considero um artista de música brasileira, só fiz essa fusão de ritmos brasileiros com o blues e com a música nordestina. Acho que foi isso que me deu certo destaque em relação ao meu modo de tocar, que saiu um pouco do tradicional do blues e do virtuosismo que rola em relação à harmônica. Eu me preocupei mais com o conjunto, tem hora que eu nem toco porque estou mais preocupado com o som da banda. Tem hora que eu faço só frase, tem hora que eu faço só o tema. Não é porque a banda leva meu nome que vai ter de ter gaita o tempo todo. Faço o CD pensando em colocar no carro e pegar estrada sem me preocupar com que escala está sendo usada ou qual harmonia.
EM: Você disse que tem gente fazendo música brasileira melhor do que você. Na harmônica, quem você recomenda?
JG: Da geração antiga tem o Jehovah da Gaita José Staneck, Mauricio Einhorn, que foi o cara que pegou o samba rock e a bossa nova, o maestro Rildo Hora. Dos novos, Gabriel Grossi, Paulo Fagundes de Brasília, que também está tocando muito bem, tive o prazer de tê-lo tocando no meu CD. Tem um garoto novo, no Rio de Janeiro, que está “cromatizando” a gaita diatônica, o Otávio Castro, é impressionante o que ele toca, o senso de improviso dele, de conhecimento harmônico e a técnica que ele está usando na música brasileira com a gaita diatônica. Com uma gaita só ele toca em todas as tonalidades. Têm vários, mas dentro da música brasileira, esse pessoal está em destaque.
EM: E no blues?
JG: No blues eu adoro o Robson Fernandes, pra mim ele tem um gás que é muito bom. Gosto do Big Chico que mantém aquela escola tradicional. O Marcelo Naves tem um disco muito bom, o Flávio (Guimarães) que foi meu professor. Ele foi o cara que começou com o virtuosismo e agora está voltando pra escola antiga. Está tocando bem a onda do Little Walter, gravou um CD com o Igor Prado que está sensacional. É muito difícil você dar nome aos bois, porque a cada hora aparece um gaitista novo. Antigamente era mais difícil, hoje você vai pro interior do Ceará e aparece um cara tocando gaita de uma forma que você não imagina.
EM: Quando foi que você começou a fazer essa mistura de ritmos? Quando foi que caiu essa ficha?
JG: Comecei tocando gaita cromática, porque quando fui na loja pra comprar o vendedor quis me vender uma gaita que custava 200 reais e eu não sabia. Fui ter aula com um senhor chamado Sebastião Dornellas e aprendi a tocar valsa, chorinho, bossa nova. Aprendi a escola antiga da gaita cromática, aprendi a usar acordes, efeitos de língua e achando que um dia ia tocar blues naquela gaita, mas um dia descobri um curso com o Flávio e foi aí que aprendi a tocar gaita diatônica, fazer os bends e comecei a estudar. Nessa época o Flávio formou muita gente e você fechava o olho e parecia que era ele que estava tocando, todo mundo com o mesmo timbre e com as mesmas idéias. Eu falei, não vou por outra praia, pequei um pouco da bagagem que tinha da cromática e da minha discoteca em casa, que tem desde Little Walter a Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro e comecei a misturar. Na verdade, desde o início quando comecei a tocar com o Baseado em Blues a gente já não era uma banda de blues tradicional. Era uma banda de funk blues e soul music que já não era muito dentro do padrão que o pessoal da época tocava. E depois com o Blues ETC a gente fez um trio acústico, o Big Joe Manfra, o Pedro Quental e eu, que também já mudei um pouco, porque estava todo mundo com a gaita elétrica.
EM: Fazendo um som acústico, só no microfone?
JG: Sim, foi quando eu conheci o Peter Madcat, e decidi que era aquele som que eu queria. Foi uma das minhas grandes influências com o Sonny Terry. Quando fui gravar o meu primeiro CD, o Gréia, comecei a ver essa ligação, foi até um amigo, o Giovanni Papaléu que me mostrou: “Cara você já toca, porque não pega um pouco desses ritmos”. Ele me mostrou muita coisa dos ritmos que não estão na mídia. Além do coco, baião, maracatu, há também o maracatu rural, samba rural, caboclinho, banda de pífanos e eu comecei a ver essas coisas, comecei a pirar naquilo ali e a ver que tudo vai se ligando.
EM: Você acabou de vir do Senegal, como foi essa experiência?
JG: Foi a segunda vez, passei onze dias, fui eu Kleber Dias e a minha esposa Juliana. Fomos dentro de um projeto do Itamaraty em parceira com a gente e com a Embaixada do Brasil, no Senegal. Levamos três músicos e um dançarino pra dar oficinas para crianças e fazer alguns shows com um trio local. Dei aula para crianças carentes durante quatro dias e fizemos duas apresentações, o Kleber deu para aulas de lutheria e guitarra para adolescentes e minha esposa se apresentou em um festival de dança de lá e deu aula para crianças excepcionais. Então foram onze dias. Essa foi a segunda viagem, mas valeu como se fosse a primeira, porque eu participei ali, dentro do contexto deles. A primeira vez eu fui com o Kleber e a gente fez apenas dois shows e voltamos em seguida. Dessa vez interagimos com os músicos, com a comunidade, com as crianças, foi maravilhoso. Estava vendo as fotos no notebook e fiquei com saudade, foi muito bom. Nosso projeto é voltar pra lá no ano que vem e ir ao Mali.
EM: Tenho visto que a sua agenda está sempre cheia no Brasil também.
JG: Sim, no ano passado trabalhei muito com a banda e também em muitas participações.
EM: Quem faz a tua programação?
JG: Eu e minha esposa. Estamos sempre correndo atrás de projetos. Não tem como ficar esperando o telefone tocar, o músico tem de correr atrás. Sempre buscar com trabalho novo com projetos diferentes. Agora eu estou indo para o Ceará com um projeto que terá eu o Kleber e um sanfoneiro, vamos fazer um trio misturando blues com sanfoneiro. Já gravei duas músicas novas para o próximo CD com uma formação completamente diferente que tem uma viola de dez (cordas), pífano, gaita, percussão, sanfona e rabeca. Está bem brasuca.
EM: Você e o Kleber fazem bastante coisa juntos. Há quanto tempo ele é teu parceiro musical?
JG: Conheci o Kleber num show da banda que ele tinha e que era chamada Experimental Blues, ele tocava com o Mimi Lessa, eles abriram um show do Baseado em Blues num lugar lá no Rio chamado Espaço Néctar. Eu vi o cara cantando essa onda folk que eu sempre curti, tocando bandolin, viola de doze e nessa fase eu já estava começando a colher idéias par o primeiro CD. Eram coisas que não se encaixavam nem no Baseado em Blues e nem no Blues ETC, ele comprou a briga e foi uma química perfeita.
EM: Quando foi isso?
JG: Foi em 2000, em 2004 a gente lançou o CD. E ele compra o barulho. “Kleber, vamos para o interior do Ceará dar aula pra criança”. E ele diz: “Vambora!”. Já passamos várias roubadas na estrada, mas também várias coisas boas, como essa do Senegal. Não existe cachê que pague você ver aquelas crianças felizes em te ver. Foi uma troca de informação, aprendemos muito com eles, voltamos cheios de instrumentos de percussão. Cheio de idéias de canto, de melodias.
EM: Uma pergunta que faço a todos. Existe uma cena de blues brasileira?
JG: Existe. Se você for ao Ceará, a quantidade de projetos ligados a blues é grande. Tem um projeto chamado Casa do Blues, cada hora que eu vou lá tem uma banda nova, tem uma formação nova. Em São Paulo você vê gaitista a dar com pau, em cada esquina, em cada escola de música. Guitarrista também. O que eu acho é que falta um pouco de união, sempre aparece gente dizendo: “Pô, fulano não toca igual ao Little Walter, fulano não tem o espírito do blues”. O blues ainda tem essa coisa de banda cover, o cara quer tocar uma realidade que não é a nossa. Quando a galera parar com esses preconceitos, com esses radicalismos de você poder entrar com pandeiro e berimbau, como já fez o Blues Etílicos, o André Christovam também, ou o Nuno, que gravou outro tipo de música, mas que também é blues. Nego torce o nariz, sempre quer um, quatro, cinco e doze compassos e cantando a realidade do negro americano. E tem também de parar com esse negócio de o maior, o melhor, o mais rápido. Quem entra em música almejando isso é melhor sair, vai fazer esporte e tentar as olimpíadas, música não tem isso, não! Tem quem bate melhor no seu ouvido e quem bate melhor no coração.
EM: E lugar pra tocar?
JG: Festival de blues tem no Brasil todo, eu viajo o Brasil todo e sempre vejo banda nova. Não adianta ter briguinha entre bandas novas e mais antigas, porque a realidade é igual para as duas, a dureza da estrada é igual. Já vi muita banda que se acha um pouquinho mais pisando nas bandas que estão começando: “Você é a banda de abertura, você é isso, você é aquilo. Meu palco tem de ser assim”. Tudo besteira. Tem de rolar união. O pagode, a música sertaneja e o funk deram certos porque há união. No encontro dos amigos um puxava o outro e hoje é isso que gente vê. Enquanto o Blues Etílicos e o André Christovam estouraram nos anos 80, muitas bandas se implodiram por causa de ego, eu falo isso porque eu vivi esse momento. No Baseado em Blues era um querendo comer o outro e se continuar com esse pensamento não vai se dar bem. Tem de ter união, fazer projeto junto, sem ter medo de abrir agenda. Tem gente que quer monopolizar o mercado que já é pequeno. Não quer renovar e se não renovar não vai ter oxigênio.
EM: Falando em oxigênio, está vindo outro trabalho depois do Ar Puro?
JG: Já estou com duas músicas prontas e várias na mente, mas também em pré produção, só falta entrar em estúdio e gravar. Dou um prazo de dois anos pra trabalhar o meu CD, mas também não tenho aquela coisa de lançar de dois em dois anos. Lanço quando acho que já está legal. Tenho muita sobra de estúdio, idéias que tenho de formatar. Estou pensando em lançar ano que vem. O Ar Puro eu lancei em março do ano passado e já vendi cinco mil cópias.
EM: Cinco mil cópias é um bom número para um trabalho independente. Foi lançado pelo selo Blues Time, parceria sua com o Big Joe Manfra.
JG: Na verdade o selo é do Manfra. Quando ele começou eu havia acabado de voltar dos Estados Unidos e na época estava na (gravadora) Velas com o Baseado em Blues e só tomei cano, só me ferrei. O Manfra estava querendo lançar o CD dele e eu sugeri que ele abrisse um selo. Ele deu a idéia de cada um bancar o seu CD, porque pra chegar na loja é muito mais fácil vender dois títulos do que um só. Um puxa o outro e é esse tipo de união que eu falo. Acabou dando certo e o Manfra acabou continuando com o selo e eu fiquei meio que o diretor, mas na verdade eu só indico. Foi o que eu fiz com a Jamie Wood, o Peter Madcat, várias pessoas. O que eu tenho é o privilégio de ter roído o osso desde o início e que o Manfra está roendo até hoje, é fazer o meu CD e tenho um lucro maior. Não ganho em nenhum outro artista. Então tenho um controle maior. Através do selo, consegui pegar os canais com relação aos valores pra fazer a capa, a prensagem. É tudo muito difícil. O Manfra faz aquilo com maior carinho. Dentro da realidade dele, que também não pode descuidar da carreira dele.
EM: Está difícil pra todos. Acabou esse negócio de o artista esperar pela gravadora.
JG: Claro. A maioria dos artistas quando entram pra uma gravadora pensa: “Agora eu vou esperar o meu telefone tocar”. E não é assim. Tem de trabalhar dobrado, tem de divulgar o seu trabalho. Eu trabalho bem a minha mala direta, meu site, respondo todo mundo que me manda e-mail. Vê o exemplo de bandas de heavy metal, ninguém conhece, mas eles vendem discos que nem água na internet e fazem carreira internacional. Os caras se profissionalizaram nisso. Tem até fanzine. O blues tem um pouco de achar que é música de elite, mas não é. Tem de cair na estrada sem ter vergonha, eu respondo todos os meus e-mails. Tem gente que me liga querendo saber como faz pra comprar minha vídeo aula e eu mesmo vendo. Os caras não acreditam quando digo que sou eu que estou falando no telefone. Não tenho vergonha, não. Acho até que ganho muito mais público. Tem gente que tem vergonha de vender seu produto, mas é o cartão de visita do artista. Eu acabo o show e vou lá. O Peter Madcat faz isso, o John Mayall fez isso o ano passado aqui em Rio das Ostras. Pô, o John Mayall, que tem uma história. Ele mesmo montou a banquinha dele lá no meio do povo. O meu CD tem forró, tem baião, tem blues e eu não tenho vergonha disso, não.
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