Quando a polícia protege o patrimônio e não você Quando você se informa por um certo canal de TV
Tudo pode acontecer Quando você olha, mas não consegue ver Que um delírio coletivo colocou um genocida no poder
Tudo pode acontecer Quando um homem vê o filho sem ter o que comer E saqueia um lugar disposto a matar ou morrer
Tudo pode acontecer Quando o nosso direito não garante uma vaga na sala de aula Mas a falta dele nos reserva uma jaula
Tudo pode acontecer Agora que entendi que sou um paria na tua sociedade industrial digital E que a minha presença só não te incomoda em ano eleitoral
Tudo pode acontecer Quando o que eu ganho não paga uma cama no hospital Que saquei que fiquei fora do teu conceito de bem estar social E o que me resta do Estado é uma batida policial É eu sei, o teu pet é da família, mas eu sou tratado feito um animal
Tudo pode acontecer agora Quando um solo de trompete me transporta além do ser E o groove da batera faz meu core amolecer
Aqui onde eu moro vejo a neblina do morro caindo sobre a cidade Fazendo do blues a minha verdade Me fazendo perceber que o tempo pra sair dessa condição Vai durar uma eternidade
New Orleans é uma cidade magnética. Cheia de histórias e lendas que atraem pessoas de todo o mundo.
Jon Cleary era um garoto britânico que ouvia os discos de seus pais aficionados por blues e jazz e que conseguiu realizar o sonho de viajar em busca de seu eldorado musical.
Aos 18 anos, o que poderia dar errado? Quando a sorte está do seu lado, nada. De cara o pequeno Jon botou os pés em uma das casas de shows mais legais da cidade, o Maple Leaf Club. Entrou como pintor e saiu de lá como um dos grandes pianistas da melhor tradição de New Orleans.
O garoto que arranhava as cordas da guitarra e depois passou a se interessar pelo piano e órgão Hammond, conheceu os melhores no clube da Oak Street: James Booker, Henry Butler, Dr John, Walter Wolfman só para citar alguns da constelação de NOLA.
Como reza a tradição, jovens músicos têm de adquirir horas de voo com os velhos falcões para depois voar sozinho. Como sideman tocou com Eric Clapton, Taj Mahal, Bonnie Raitt, Maria Muldaur entre outros. E também Allen Toussaint, seu ídolo e mentor.
Hoje, aos 59, o cantor, compositor e pianista é um desses falcões e dono de uma discografia que inclui trabalhos magistrais.
Seu primeiro álbum solo, Moonburn (1999), já com a sua banda Absolute Monster Gentlemen, tem a colaboração do produtor John Porter. O ao vivo Mo Hippa (2008) dá a dimensão de quão envolvente é a música de Cleary, uma mistura entre blues, soul, funk e, como eles dizem lá, ritmos do pântano (rhytmns of the bayou). Ocapella (2012) é uma homenagem ao próprio Allen Toussaint. Go Go Juice (2015), premiado com o Grammy, e o mais recente Dyna-Mite (2018). Pode comprar qualquer um sem medo de errar.
Cleary esteve no Brasil em novembro de 2021 para três shows, um no Bourbon Street em São Paulo e dois no Rio das Ostras Jazz e Blues, onde foi realizada essa entrevista.
O show de Cleary no palco Costazul do festival carioca foi meu primeiro show internacional após o retorno das atividades com a queda de infectados pelo vírus corona.
Nunca podemos esquecer que milhares morreram infectados pelo vírus e milhões perderam seus empregos no Brasil, inclusive os músicos. Estar ali vivo e ouvindo aquela música maravilhosa foi uma das melhores sensações que já senti na vida. Saudaçoes ao Stênio e toda a equipe.
Eugênio Martins Júnior- Quando foi a primeira vez que ouviu o blues na Inglaterra?
Jon Cleary – Cresci com a o blues na minha família. Meu pai tocava em uma banda de skiffle nos anos 50. E costumava tocar músicas do Leadbelly, famoso cantor de blues da Louisiana. Lembro deles tocando Rock Sland Lines, Taking My Potatoes e Bring a Little Water, Sylvie. Eu estava sempre por perto.
EM - E quando tomou a decisão de mudar para New Orleans?
JC – Foi logo após deixar a escola. Sempre quis ir a New Orleans. Essa sempre foi a minha ambição. Foi quando tirei duas semanas de férias pela última vez há 40 anos atrás.
EM – Foi muita coragem pra pouca idade.
JC – Coragem ou estupidez? (risos). Quando você tem 18 anos também podemos chamar de estupidez. O que poderia dar errado. Acho que tive muita sorte.
EM – E você chegou e já foi direto ao Maple Leaf?
JC – Sim, eu tinha o telefone de uma garota que trabalhava lá e que me arrumou um trabalho.
EM – Viu muitos artistas se apresentando?
JC – Sim, muitas bandas. Rockin’ Dopsie estava sempre lá. Clifton Chenier, Neville Brothers Stevie Ray Vaughn, Fabulous Thunderbirds, James Booker, Roosevelt Sykes, muitos artistas.
EM – Nessa época você já tocava lá?
JC – Quando era pequeno já tocava um pouco de piano, mas comecei a aprender guitarra. Foi em New Orleans voltei tomar gosto pelo piano. No Maple Leaf havia um piano antigo e a minha primeira apresentação ao piano foi lá.
EM - Você conheceu Snooks Eaglin. Poderia falar sobre essa experiência?
JC – Na Inglaterra eu já escutava os discos de Snooks Eaglin do meu tio. Então já conhecia aquele som. A primeira vez que o vi foi em um festival em New Orleans. Anos depois passei a tocar piano na sua banda. Era uma grande banda com Smokey Johnson da banda do Fats Domino na bateria. Foi uma experiência incrível.
EM – Allen Toussaint foi uma grande influência pra você. Você gravou o álbum Ocapella com suas músicas. Gostaria que falasse sobre essa influência.
JC – Allen Toussaint, Dr John e James Booker são de uma geração antes da minha. Mas Allen Toussaint sempre teve muito a ensinar a qualquer músico. Com ele aprendi como arranjar, escrever canções e a disciplina para ser um líder. Os músicos de New Orleans são muitos desorganizados. E Allen Toussaint sabia como organizá-los para executar os arranjos que ele elaborava.
EM - Você se sente fazendo parte dessa que é uma tradição de pianistas de New Orleans, como Professor Longhair, Dr John, Allen Toussaint, James Booker, Fats Domino, Henry Butler, entre outros?
JC – Bem... acho que sim. As pessoas é que vão decidir. Mas tive sorte de poder ter aprendido com todas essas pessoas que você mensionou vendo-as no palco. É assim que a tradição é passada. A gente aprende com os discos, mas não há nada como estar em pé na frente de um palco vendo Toussaint ou Dr John ou James Booker. Essa é uma experiência preciosa. Espero que quando estiver velhos os jovens pianistas venham me ver. Seria perfeito.
EM – Vamos falar sobre Dyna-Mite, seu novo álbum que traz um bocado de ritmos como uma receita típica de New Orleans e seus sabores.
JC – Como você disse, New Orleans tem uma longa história, com muitos aspectos, muitas misturas. Com relação ao piano eu sigo a escola percussiva já existente com todas aquelas progressões de acordes. Mas mais do que isso, também tenho a atitude festiva que os artistas de New Orleans empregam em sua música. É a coisa real, não faz parte da indústria da música. Como a música brasileira ou cubana, que vem das ruas e não dos escritórios das gravadoras. Em New Orleans qualquer pessoa pode tocar percussão nas ruas, com vocês fazem aqui no Brasil, mas por outro lado essa música pode ser muito sofisticada. Transita nesses dois mundos. A forma como as pessoas em New Orleans tocam jazz e blues influenciou o mundo todo.
EM - Como tem sido a vida em New Orleans sob a pandemia de covid-19? Como as pessoas estão encarando mais essa tragédia? Você se vacinou?
JC – Bem, se você estava se referindo ao Katrina isso foi há quase 15 anos atrás. Quanto a isso o povo foi bem forte. Já tem experiência nesse tipo de desastre. A pandemia foi desastrosa para New Orleans porque as pessoas estão acostumadas a celebrar a vida. Como no Brasil, a música lá é muito importante. E os shows pararam e os músicos ficaram sem trabalho. Não só os músicos.
EM – Há nos Estados Unidos um grande movimento anti-vacina. Como você vê isso?
JC – Particularmente acho que se você se tiver a oportunidade de se vacinar vai poder proteger a você e outras pessoas. Então, aproveite. Mas há as pessoas que acreditam que as vacinas não foram testadas o suficiente, o que pra mim é uma loucura, mas tudo bem. É um país livre. Um me vacinei assim que eu pude. Acho que o perigo de pegar covid é maior do que o perigo que a vacina pode trazer.
EM – E como foi o show de ontem em São Paulo?
JC - Foi um grande show. Muito bom mesmo. A audiência estava empolgada. É muito importante que o público dance, faça barulho. Sou músico profissional e as vezes acontece de um show não ser tão bom. Acontece. Mas há shows que são especiais também. E essa gig foi especial.